Antes mesmo da Humanae Vitae, os Códigos de Malines já apontavam para a imoralidade do neomalthusianismo (controle de natalidade) e de suas políticas , o que inclui, entre outras coisas, oposição a prática voluntária do aborto. Vejamos o trecho do Código Familiar em seus números 124 e 125.
Direitos secundários da sociedade conjugal à proteção da livre procriação
a) Contra o neomalthusianismo e a falsa eugenia.
A sociedade conjugal tem o direito de ver a sua liberdade de procriação natural protegida pelo Estado, tanto contra as propagandas nefastas e perversoras de um neomalthusianismo favorável aos meios anticoncepcionistas, como contra os ensinamentos errôneos de uma falsa eugenia.
Salvo levar em conta as circunstâncias de tempo e de lugar (cf. supra, n. 54), “a autoridade pública tem o direito e o dever de impedir a difusão das doutrinas neomalthusianas e a propaganda dos métodos anticoncepcionistas”. Tem o direito e o dever de “reprimir a cooperação ativa nos atos de neomalthusianismo, de proibir o tráfico dos produtos e instrumentos anticoncepcionistas” (Código Social, n. 43).
[O número 54 alerta aos profissionais católicos sobre a cooperação em relação a políticas de controle de natalidade dizendo: “um problema particularíssimo de cooperação ou de não cooperação nessas licenças apresenta-se inevitavelmente à consciência dos médicos, higienistas, demógrafos, etc., católicos. Nesse terreno como alhures, mister se fará recorrer aos princípios gerais que regem, em moral, a questão da cooperação com ações em si más. Dever-se-á recordar que nunca é permitido aconselhar positiva e diretamente uma ação má; que é sempre desejável, e às vezes mesmo fácil, orientar os espíritos e os corações para o ideal último da perfeição e para suas exigências mesmo as mais árduas; que muitas vezes pode ser aconselhado deixar à liberdade e à lealdade dos interessados o cuidado de definirem a si mesmos as etapas sucessivas de um esforço progressivo de perfeição, como também o meio de apropriarem ao seu caso particular um tal ideal”].
Por outro lado, pode a sociedade legitimamente fazer com que todos os seus membros sejam, tanto quanto possível, sadios, e equilibrados de corpo e de faculdades. A este respeito, longe de ser verdade toda espécie de eugenia, uma há, ao contrário, que a sociedade deve promover por todos os seus meios: a eugenia positiva que visa, não afastar maus nascimentos, mas provocá-los bons, dentro do respeito das regras da moral. Neste terreno, é desejável sejam difundidos os ensinamentos de uma ciência honesta e esclarecida.
b) Contra o aborto.
A sociedade conjugal tem o direito de ver proteger a vida intrauterina de seus filhos concebidos, de vê-la proteger contra os médicos e as parteiras pouco escrupulosos, contra as fraquezas ou as covardias da natureza humana, sobejas vezes tentada de suprimir uma vida nascente, ou contra condições antihigiênicas da vida.
Em consequência, tanto quanto possível instituirá o Estado uma legislação ao mesmo tempo preventiva e repressiva do aborto voluntário.
Legislação preventiva, por exemplo pela instituição de abonos pré-natais, suscetíveis de aliviar, em proveito das mulheres grávidas de poucos recursos, os encargos econômicos de um novo nascimento. Legislação ainda preventiva pela criação de casas maternais onde os nascimentos ilegítimos possam ter lugar com a discrição e no segredo queridos.
Igualmente desejável é que a lei organize visitas médicas pré-natais obrigatórias, bem como, em certos casos, férias de maternidade, com os seguros e as prestações queridas.
Legislação repressiva. No estado atual dos costumes, deve o Estado cada vez mais organizar a perseguição aos abortadores profissionais, a vigilância das maternidades, e, em geral, de todos os estabelecimentos públicos ou particulares onde são prestados cuidados médicos e cirúrgicos; a criação da licença de inumar.
Enfim, o Código Penal cominará penas severas contra os abortadores quando forem terceiros, mormente quando, pela sua profissão, deveriam estes, ao contrário, proteger a irrupção da vida (médicos, parteiras, farmacêuticos).
O aborto terapêutico jamais pode ser autorizado, a não ser quando for apenas uma aplicação particular da lei moral do duplo efeito [1]. Assim, poderia suceder que uma operação tal como a ablação de um útero doente, a qual pode comportar um aborto, se torne lícita.
[1] Lei do duplo efeito: Lei segundo a qual pode ser permitido, em condições mui determinadas, praticar uma ação da qual resulte, ao lado de uma consequência boa, uma consequência má. Estas condições são em número de quatro: a) a própria ação que é praticada deve ser boa ou, quando menos, moralmente indiferente; b) cumpre que, da ação boa, resulte igualmente, e de maneira outro tanto imediata, uma consequência boa; c) a intenção só deve incidir sobre a consequência boa; d) cumpre haja um motivo suficiente para permitir a consequência má.