Trecho do livro História de uma Família: o lar onde floresceu Santa Teresinha – Capítulo VII – A alma do Lar.
A chave do enigma estava em amarem cristãmente. A caridade era a alma do Lar. Não há dúvida nenhuma, este Lar não dá matéria para as peripécias tempestuosas de um drama passional. Esta clara limpidez de fonte será motivo de decepção para os céticos gulosos de romances eróticos. Fará encolherem os ombros aos que já não acreditam no amo de tanto que o viram profanado. São conhecidas as setas afiadas com que a piada gaulesa alvejou o casamento: “Não é um duo, mas um duelo”; “Estudam-se três semanas; amam-se três meses; discutem três anos; suportam-se trinta anos… e os filhos recomeçam a mesma história”. A coleção é abundante e as observações nem sempre são destituídas de realismo. Sinais de uma época decadente. As pessoas sérias que querem que a sua pátria viva, em vez de rirem destas coisas sagradas irão receber lições ao lar da Rua de S. Brás.
Estes verdadeiros crentes que começaram por se privar das relações conjugais lembram o frescor de ternura que unia entre si a Rainha Margarida com o Rei Cavaleiro, Luís de Poissy. Entre os dois consortes havia um laço substancial, Jesus Cristo. As mãos deles não se estreitavam senão unidas às Suas. Sabiam que o sacramento do matrimônio é um sacramento de vivos de que eles mesmos eram os ministros, um sacramento permanente que lhes vivificaria com a sua graça todo o decurso da existência. A comunidade assim fundada encontra-se espiritualizada na sua essência. Assume uma modalidade quase sacerdotal. A santidade, longe de esterilizar o amor, cria-o constantemente, produz uma obra-prima de compreensão mútua, de dedicação desinteressada, de dom total no esquecimento de si próprio. A vida em comum de amos não era a exploração egoísta do matrimônio, coisa que lhes causava horror instintivo, nem uma evasão mística para fora do matrimônio, tentação sutil a que iam cedendo, mas sim, ma ascensão coletiva no matrimônio e pelo matrimônio. E assim realizaram plenamente o plano do Criador.
O amor que estes cristãos dedicavam um ao outro não era sutilizado, sublimado, refinado, a ponto de parecer desencarnado. O seu amor aliava arroubos de noivos a todos as delicadezas da caridade, às sobrenaturais confidências da amizade. A esposa admirava o esposo. Depois de quatro anos de vida comum, escrevia ela referindo-se a ele: “Continuo a ser muito feliz com ele torna-me a vida muito agradável. O meu marido é um santo e que todas as mulheres tenham um como ele são os votos que faço neste ano novo” [1]. As suas ausências forçadas faziam-na sofrer, e consolava-se pondo os negócios em ordem e contando-lhe em detalhes os assuntos domésticos. Ao pensar no regresso dele ficava tão contente que confessava nem poder trabalhar. Quando ele não a acompanhava até as viagens a Lisieux perdiam parte do seu encanto, como prova esta carta de 31 de agosto de 1873, que reproduzimos por extenso como fiel testemunho da grande união de almas:
Meu querido Luís,
Chegamos ontem às quatro e meia da tarde; o meu irmão que estava na estação à nossa espera, ficou radiante quando nos viu. Faz quanto pode, assim como a mulher, para nos arranjar distrações.
Hoje, Domingo, há uma bela recepção cá em casa, à noite, em nossa honra. Amanhã, segunda-feira, grande banquete em casa da Senhora Maudelonde e, possivelmente, um passeio de carro à casa de campo da Senhora Fournet. As pequenas andam encantadas; se o tempo estivesse bom seria para eles o cúmulo da felicidade.
Mas eu sou mais custosa de desarmar. Nada disto me interessa! Ando exatamente como os peixes que tu tiras para fora da água; já não estão no seu elemento, não lhes retas senão morrer! Creio que era o que me aconteceria se a minha permanência aqui houvesse de se prolongar. Não me sinto à vontade, não estou nos meus hábitos, o que me influi no físico e me faz andar quase doente. Contudo faço por ser razoável e procuro dominar-me. Acompanho-te em espírito a toda hora. Digo comigo mesma: ‘Neste momento está fazer isto ou aquilo’.
Quanto me tarde ver-me junto de ti, meu querido Luís! Amo-te de todo o meu coração e sinto que o meu afeto redobra com a privação da tua presença que tanto sinto; ser-me-ia impossível viver apartada de ti.
Esta manhã assisti a três missas; fui à das seis, fiz a ação de graças e rezei as minhas orações durante a das sete horas e volta à missa cantada. O meu irmão não está descontente com os negócios, que não vão mal.
Diz à Leônia e à Celina que lhes mando muitos beijos saudosos e que hei de levar-lhes uma lembrança de Lisieux.
Hei de ver se me é possível escrever-te amanhã, mas não sei a que hora viremos de Tronville. Escrevo a toda a pressa porque estão à minha espera para ir fazer visitas. Regressamos na quarta-feira à tarde, às sete e meia. Como me parece distante!
Beijo-te com muito amor. As filhinhas recomendam-me que te diga que estão muito contentes por terem vindo a Lisieux e que te mandam muitos beijos.
Mais sóbrio, porque não gostava muito de escrever, o Senhor Martin dava mostras da mesma ternura. Citemos este bilhete seu de 8 de outubro de 1863:
Minha querida Amiga,
Só poderei chegar Alençon na segunda-feira: o tempo parece-me bem comprido e tarda-me chegar ao pé de ti.
É inútil dizer-te que a tua carta me causou grande prazer, menos o ver que te cansas demais. Portanto recomendo-te muita calma e moderação, principalmente no trabalho. Tenho algumas encomendas da Companhia Lionesa; mais uma vez te recomendo que não te aflijas tanto, que havemos de chegar a fazer uma boa casinha, se Deus quiser.
Esta manhã tive a felicidade de comungar em Nossa Senhora das Vitórias que é como um pequenino paraíso terrestre. E mandei acender uma vela por intenção de toda a família.
Enquanto não tenho a felicidade de estar junto de vós, beijo-vos a todos de todo o coração. Espero que maria e Paulina tenham muito juízo.
Teu marido e verdadeiro amigo que te ama sempre.
Um amor destes não sabia o que era inquietações e suscetibilidades. Não era desconfiado nem ciumento. Era uma força tranquila de confiança e de certeza. O marido deixava à mulher o ministério do interior, quer dizer, liberdade total no governo da casa e na direção das coisas domésticas. O seu incontestável senso prático não era orientado para esse lado. Entregue a si próprio, indiferente ao conforto, nem se preocuparia consigo e viveria de um bocado de pão e de carnes frias. A esposa provia a tudo amorosamente. Nunca houve entre eles a menor nuvem, tão perfeita era a unidade de vistas. O Senhor Martin exercia a autoridade à maneira de um patriarca, cujo caráter só por si impunha respeito e submissão. Apenas num ponto – a repugnância em se separar dos seus – é que a mãe tinha de proceder com diplomacia para o levar a decisões que ela considerava sensatas: uma permanência, por exemplo, das pequeninas em casa do tio, um retiro fechado na Visitação de Mans. Uma psicologia penetrante dava-lhe tal intuição que o levava sem choques a concordar com as suas opiniões. Com certeza foi por ocasião de uma discussão deste gênero, um pouco mais acalorada que de costume, que Paulininha, então com sete anos, fez esta observações ingênua a mãe: “Mamãe, isto é que se chama um casal mal avindo?” Os felizes pais riram durante muito tempo por causa da pergunta: “não temos remédio senão ter cuidado, meu bom Luís”, exclamou a Senhora Martin contando-lhe a confidência.
As filhas por seu lado sentiram-se envolvidas numa terna e firme afeição acompanhada de verdadeiro respeito. A morte dos seus quatro anjinhos tinha firmado bem fundo, no coração dos pais, a convicção de que eram apenas os mandatários da autoridade de Deus e que só a Ele pertenciam os supremos direitos de autor. O seu amor purificado no cadinho do sofrimento, marcado com o sinal da cruz, tinha-se libertado de todo o interesse pessoal: não aspirava não a servir.
O Senhor Martin que, segundo os costumes da época, tinha tratado sempre os mais na terceira pessoa, com todo o respeito, teria desejado, segundo conta a Irmã Genovena [2], que as filhas fizessem o mesmo para com os seus. Mas como a esposa tivesse objetado que com isso se julgaria menos querida, concordou de bom grado e habituaram-se ao tratamento por “tu”, o que em nada diminuiu a veneração de que ambos eram rodeados. No depoimento da Madre Inês de Jesus, no processo da Beatificação da sua angélica irmã, encontramos estas linhas prezadas maduramente: “Tive sempre a impressão de que os meus pais eram santos. Sentíamo-nos cheias de admiração e de respeito por eles. Quantas vezes pensei de mim para comigo se poderia haver na terra outros como eles. À minha volta não via ninguém assim”. Era mais que piedade filial: era um verdadeiro culto. Desejosas de mostras a mesma ternura ao pai e à mãe, Maria e Paulina, quando eram pequenas, uniam ingenuamente os dois nomes nas suas orações. Rezavam assim: “Senhor, protegei o papai-mamãe” ou invertendo a ordem: “Vinde em auxílio da mamãe-papai”. E assim estava perfeitamente salva a igualdade de tratamento.
Cada separação para entrar no colégio causava uma impressão cruel. Nunca puderam habituar-se a viver longe uns dos outros. Nas notas intimas da Maria encontramos revelações a respeito do dia passado com os pais, logo a seguir ao da primeira comunhão, que nos esclarecem sobre este ponto:
Eu que tanto sofria por estar separada do papai e da mamãe, estive com eles. Parecia-me que estava no céu, mas este céu foi muito curto, visto que nessa mesma tarde tinham que se ir embora. Por causa disso a minha felicidade estava longe de ser completa. Demos um passeio ao campo. Daí a pouco vi-me numa campina cheia de grandes malmequeres e de centáureas. Mas para colher seria necessário largar a mão do meu querido pai e preferi deixar-me ficar ao pé dele. Olhava para ele, olhava para a mamãe… No meu coraçãozinho de nove anos havia abismos de ternura pra com eles… Nem eu seria capaz de dizer até que ponto foi o meu sofrimento por estar separada dos meus pais; seria inútil tentar descrever esse martírio.
A vinda para as férias dava ocasião a cenas delirantes. Maria viva esses momentos antecipadamente em todos os seus episódios. Ela imita para a irmã mais nova o toque da sineta a anunciar a chegada da mãe ao convento, o silvo da locomotiva, a partida do comboio, os pregões anunciando os nomes das estações, a chegada à estação de Alençon, os abraços, as efusões de ternura. Eram verdadeiros transportes de alegria. Paulina confessou que uma vez em que certa pessoa amiga a reconduzia até junto da família, ao avistar a casa paterna, sentiu que o coração lhe cessou de bater. Julgou que se lhe ia partir com a comoção e teve de parar um momento para não perder os sentidos.
Entre as pequeninas era a mesma afeição toda repassada de intimidade. As teimosias da Leônia provocavam tempestades por vezes, mas a intervenção do pai não tardava a recompor a atmosfera. Causavam-lhe horror as discussões e brigas. “Sossego, filha, sossego”, exclamava ele, quando devido a excitação dos espíritos as vozes atingiam o cimo da escala; e dizia com tanta graça que os nervos acalmavam-se como por milagre. Por nada quereriam causar-lhe desgosto.
Cristo era o rei do Lar. Não havia a entronização oficial. O Padre Mateo Crawley ainda não tinha pregado essa cruzada. Mas era já o espírito dela: Nazaré e Betânia, revivendo naquela casa onde o divino Coração firmava união das almas, inspirava todos os atos. Deus não poderia preparar terreno mais propício para o desabrochar de uma santa. Foi por ter saboreado a doçura deste ambiente familiar que Teresa pôde cantar mais tarde:
Oh! Como é doce relembrar os tempos
Da minha infância e juventude em flor!
Deus, da inocência com que mil carinhos
Me guardou sempre os cândidos arminhos,
Oh! Com que amor!
[1] Carta da Senhora Martin ao irmão, 1º de janeiro de 1883.
[2] Celina tomaria em religião o nome de Irmã Genovena da Santa Face; Paulina o de Irmã Inês de Jesus
Fonte: PIAT, Stéphane Joseph. História de uma família: o lar onde floresceu Santa Teresinha. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2018. pp. 178-184.