Tanto procurar como fugir à convivência com os homens são dois extremos censuráveis na devoção, que deve regrar os deveres da vida social. O fugir é um sinal de orgulho e desprezo do próximo e o procurar é fonte de muitas coisas ociosas e inúteis. Cumpre amar ao próximo como a nós mesmos. Para demonstrar-lhe esse amor, não devemos fugir à sua companhia, e para patentear o amor que temos a nós mesmos devemos estar contentes, quando estamos sozinhos. Pensai em vós mesmos, diz São Bernardo, e depois nos outros. Se nada te obriga a fazer ou receber visitas, fica contigo mesma e entretém-te com teu coração; mas, se algum motivo te impõe esses deveres, cumpre-os em nome de Deus, tratando o próximo com toda a amabilidade e caridade.
Chama-se convivência má a que procede de más intenções ou se é uma relação má entre pessoas indiscretas, licenciosas ou dissolutas; é preciso evitá-la, como as abelhas o enxame de zangões e vespas; porque, se o hálito e a saliva das pessoas mordidas por um cão danado são muito perigosos, máxime para os meninos e pessoas duma compleição delicada, também a relação com pessoas viciosas não é menos de temer, principalmente para aquelas cuja virtude é ainda tenra, tíbia e delicada.
Há conversas que só têm a utilidade de refrigerar o espírito cansado de muitas ocupações sérias e, não se fazendo disso um divertimento ocioso, pode-se empregar nelas o tempo necessário para uma honesta recreação.
Há outras conversas que são exigidas pela boa educação, como as visitas recíprocas ou reuniões em homenagem a alguma pessoa. Quanto a estes deveres, nem os devemos cumprir com escrúpulos de faltar nas mínimas regras, nem negligenciá-los ou pô-los de lado, por incivilidade; devem ser satisfeitos com um cuidado razoável, livre de falta de educação e de exageros.
Resta-me agora falar das conversas úteis, isto é, as das pessoas devotas e virtuosas.
Ó Filotéia, grande dita é achar sempre semelhantes pessoas. Uma vinha plantada entre oliveiras dá cachos oleosos, do sabor da azeitona; assim também uma alma que convive com pessoas de bem, vai adquirindo infalivelmente as suas boas qualidades e sua conversa lhe é sempre um meio muito útil para progredir na vida espiritual. Os zangões sozinhos não podem fazer o mel, mas ajudam as abelhas a fazê-lo.
Os modos naturais e simples, modestos e suaves são os mais recomendáveis no trato do próximo; pessoas há que nada fazem ou dizem senão com uma afetação tal que todos se desgostam naturalmente. Quem só quisesse, por exemplo, passear contando os passos, falar cantando, seria um homem muito fastidioso para os outros; também aqueles que falam e procedem sempre dum modo estudado e como que em cadência estragam completamente uma conversa aliás agradável e mostram em toda parte um certo espírito de presunção.
Uma alegria suave e moderada deve ser a alma da conversa; assim muito se louva a Santo Antão e S. Romualdo, porque em toda a sua conhecida austeridade não perderam um ar de civilidade e alegria que ornava as suas pessoas e as suas palavras: Regozijai-vos com os que se regozijam e eu te digo com o apóstolo:
Alegrai-vos incessantemente no Senhor e de novo vos digo: Alegrai-vos. A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens.
Para que te alegres em Nosso Senhor, não é bastante que o motivo de tua alegria seja lícito, mas deve ser também honesto. Observa, portanto, exatamente as regras da modéstia; nunca permitas a ti mesma esses tratos que se dão aos outros por brincadeiras, mas que são sempre repreensíveis. Jogar um no chão, beliscar outro, pintar um terceiro de preto, enganar a um tolo, tudo isso denota uma alegria desenfreada e maligna.
Além da solidão interior, de que já tenho falado e que deves conservar no meio de todas as conversas, deves amar a solidão exterior, não a ponto de ir procurá-la no deserto, como Santa Maria Egipcíaca, São Paulo, Santo Antão, Santo Arsênio e tantos outros eremitas, mas para que tenhas tempo de estar contigo mesma, quer no teu quarto, quer no jardim ou em algum outro lugar com mais liberdade, entretendo o coração com boas reflexões ou leituras. Assim fazia o grande bispo de Nazianzo. Passeava – dizia ele – comigo mesmo pela praia do mar, mais ou menos ao pôr do sol, e aí passava tranqüilamente um espaço de tempo; era este o meu costume, para por meio deste pequeno divertimento aliviar o espírito dos trabalhos constantes da vida. E Santo Agostinho conta o mesmo de Santo Ambrósio. Muitas vezes – diz ele – procurei-o em sua casa, sempre aberta a todos, e contemplava-o com gosto, todo absorto na leitura de um livro; e depois de esperar muito tempo em profundo silêncio, retirava-me sem lhe falar, pensando que era melhor não lhe furtar esses minutos que lhe sobravam de suas muitas ocupações para descansar o espírito. É o exemplo que o filho de Deus nos deu; referindo-lhe, pois, um dia os apóstolos tudo o que tinham acabado de fazer em suas missões, disse-lhes Jesus: Retiremo-nos para a solidão e descansemos um pouco.
Fonte: São Francisco de Sales. Filotéia. Parte III: A Solidão e a Sociedade, Capítulo 24. (Os grifos são nossos)