O que é a perfeição Cristã, o combate para conquistá-la, e as quatro coisas necessárias para esse combate (Lorenzo Scupoli – Combate Espiritual – Capítulo I, os grifos são nossos)
Minha filha muito amada em Cristo, se desejas chegar ao mais alto grau da santidade e da perfeição cristã, unindo-te de tal modo a Deus que te tornes um mesmo espírito com Ele (1Cor 6,17) – o que é a maior e mais nobre empresa que se pode conceber -, convém que saibas primeiramente no que consiste a verdadeira e perfeita vida espiritual.
Porque muito, por pouco refletirem, creem que a perfeição consiste no rigor da vida, na mortificação da carne, no uso dos cilícios, nas disciplinas, jejuns, vigílias e outras obras exteriores. Outros, particularmente as mulheres, quando rezam muitas orações, ouvem muitas missas, assistem a todos os ofícios divinos e participam das comunhões, creem ter chegado ao mais alto grau da perfeição. Outros ainda, mesmo entre os que vestem hábitos religiosos, se persuadem de que a perfeição consiste unicamente em frequentar o coro, amar a solidão e o silêncio e no observar estritamente a disciplina regular com seus estatutos e regras.
Assim, alguns põe o fundamente da perfeição evangélica nessas coisas, outras, naquelas; mas o que é certo é que todos igualmente se enganam, porque essas obras mencionadas não são senão meios par adquirir a santidade, ou frutos dela, e, portanto, não se pode dizer que tais obras realizem a pefeição cristã e o verdadeiro progresso espiritual.
São, sem dúvida, meios poderosíssimos para conquistar a verdadeiro perfeição e o verdadeiro progresso espiritual, quando usados com prudência e discrição; para adquirir força e vigor contra a própria malícia e fragilidade; para defender-se dos assaltos e tentações do nosso inimigo comum e, enfim, para obter da misericórdia divina os auxílios e socorros que são necessários a todos os ue se exercitam nas virtudes, e particularmente, aos iniciantes.
São, pois, frutos do Espírito Santo nas pessoas verdadeiramente santas: os castigos do corpo para sujeitá-lo ao serviço do seu Criador; a vida a solidão para fugi de qualquer pequena ofensa ao Senhor e para conversar com os habitantes do céu (Fl 3,20); o atendimento ao culto divino e às obras de piedade; a oração e meditação da vida e paixão de Nosso Senhor, não por curiosidade ou para satisfazer algum gosto, mas para conhecer cada vez mais a própria malícia e a infinita bondade e misericórdia de Deus, e também para inflamar cada dia mais o seu coração no amor divino e no desprezo de si, seguindo com a mesma abnegação os passos do Filho de Deus; a frequência ao Santíssimo Sacramento para glorificar a majestade divina e para assemelhar-se a Deus e ganhar força contra os inimigos.
Porém, a algumas almas fracas acontece o contrário, pois se apoiam totalmente em obras exteriores, e isso pode ser uma causa de grande ruína e desespero; não porque a prática de tais obras não seja boa em si (pois são coisas muito santas), mas sim por serem consideradas como fins e não meios, enquanto o coração é esquecido e abandonado às inclinações do demônio oculto. Este, vendo a ilusão dos que saem do verdadeiro caminho, não só os deixa continuar seus exercícios e obras, mas até lhes proporciona praticá-los com gosto e deleite, para que creiam estar muito avançados na vida espiritual, imaginando encontrar-se entre os coros dos Anjos, como almas singularmente escolhidas e privilegiadas, que vivem na intimidade com Deus. O demônio também usa do engano para sugerir-lhes, nas orações, alguns pensamentos sublimes, curiosos e agradáveis, a fim de que se creiam arrebatados ao terceiro céu, como São Paulo, e, persuadindo-se de que já não são deste baixo mundo, vivam numa abstração total de si mesmos e numa profunda alienação de todas aquelas coisas das quais deveriam se ocupar.
Em quantos erros e enganos estão envolvidas tais almas miseráveis, e quão longe estão da perfeição que buscam! Essas pessoas são facilmente reconhecíveis por sua vida e costumes, porque em todas as coisas querem ser preferidas aos outros, são caprichosas, desobedientes e obstinadas em suas opiniões e cegas em suas próprias ações, mas têm sempre os olhos abertos para observar e criticar outras pessoas, ao passo que, se alguém as critica, ainda que levemente, na opinião e estima que têm de si mesmas, ou procura afastá-las das devoções costumeiras, se enojam, se perturbam e se inquietam muito; e, se Deus, para reduzi-las ao verdadeiro conhecimento de si mesmas e ao caminho da perfeição, envia dificuldades, doenças e perseguição (que são a prova mais certa da fidelidade de seus servos, e que não acontecem sem um querer ou permissão da providência), então revelam o seu fundo falso, com o interior todo corroído e gasto por causa da soberba. Pois, qualquer que seja o caso, feliz ou triste, nunca querem abrigar-se sob a mão divina, nem ceder à sua admirável providência para conformarem-se aos seus justos, porém secretos juízos (Rm 11,33), nem imitar Seu Filho santíssimo (Fl 2,8) sujeitando-se a todas as criaturas, ou amar os seus perseguidores como instrumentos de bondade divina que cooperam para a sua perfeição e salvação eterna.
E, por isso, vivem sempre sob o perigo terrível e óbvio de perecer, pois, como têm os olhos obscurecidos pelo amor próprio, e o apetite de sempre vangloriar-se de si mesmas e de suas obras externas, atribuem-se altos graus de perfeição e, cheias de presunção e orgulho, censuram e condenam os outros. Às vezes o orgulho as cega e deslumbra de tal forma que é necessária uma graça especial do céu para tirá-las da ilusão, porque, como demonstrado pela experiência comum, converte-se mais facilmente o pecador público do que o injusto que se cobre com o manto da virtude.
Por todas essas coisas mencionadas, podes, minha filha, entender agora claramente que a vida espiritual não é nenhum destes exercícios e trabalhos externos, que as outras pessoas costumam confundir com a santidade.
Deves entender que a santidade não consiste e outra coisa além do conhecimento da bondade e grandeza de Deus e da nossa nulidade e inclinação a toda espécie de mal; do amor por Ele e da indiferença por nós mesmos; da submissão não só a Ele, mas toda a criatura por causa dEle; da renúncia total à nossa vontade, da total resignação à providência e do fazer tudo isso simplesmente pela glória de Deus e pelo puro desejo de agradá-lo, porque Ele tem todo o direito de ser amado e servido por suas criaturas.
Esta é a lei do amor que o Espírito Santo gravo no coração dos justos, esta é a crucificação do homem interior, este é o jugo suave e o peso leve, esta é a perfeita obediência que o Mestre Divino sempre nos ensinou pela palavra e pelo exemplo.
Então, minha filha, se aspiras não somente à santidade, mas à perfeição da santidade, deves agir com grande violência contra ti mesma, para que possas lutar generosamente e anular os próprios desejos. Mas eu garanto que, sendo esta guerra a mais difícil de todas (já que nós mesmos é que somos combatidos), também a vitória é a mais agradável a Deus e a mais gloriosa ao vencedor.
Porque, se com coragem e resolução mortificas as tuas paixões e apetites, reprimes teus desejos desordenados e o menor movimento da tua própria vontade, então executas um trabalho de maior mérito aos olhos de Deus do que se, sem renunciar totalmente à tua vontade, afligisses e maltratasses o teu corpo com panos ásperos e a mais dura disciplina; ou jejuasses com mais austeridade e rigor do que os anacoretas antigos do deserto; ou se tivesses convertido a Deus milhares de pecadores.
Porque, ainda que o Senhor estime mais a conversão das almas do que a mortificação dos desejos, não deves preocupar-te somente com as coisas que, segunda a natureza, pareçam mais nobres, mas sim ocupar-te naquilo que Deus pede particularmente a ti. E é evidente que, a Deus, agrada mais que mortifiques todas as tuas paixões do que se, deixando uma só delas vivendo no teu coração, te pusesses a buscar feitos maiores.
Agora vês, filhinha, no que consiste a perfeição cristã e a guerra dura e terrível contra o amor-próprio que é necessária para conquistá-la, é preciso que guardes quatro coisas, como se fossem armas para a tua segurança e para obter a vitória. São elas: a desconfiança de si, a confiança em Deus, os exercícios e as orações. Trataremos de tudo isso com a ajuda de Deus.