Na quarta-feira, dia 12/02/2020 o Papa Francisco fez conhecer a sua Exortação Apostólica “Querida Amazônia”, oferecendo as diretrizes a serem seguidas pela Igreja na Amazônia. O Santo Padre inicia a Exortação expondo quatro sonhos para a Amazônia, um sonho de justiça, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial. Estes quatro sonhos acabarão por ser as pedras fundamentais das quatro partes da Exortação. Para fins deste artigo, consideraremos apenas um aspecto do sonho eclesial do Papa: o apostolado leigo.
Nos parágrafos 91-98 o Papa Francisco busca sedimentar as condições necessárias para o florescimento da vida católica nas comunidades amazônicas. Para tanto, o Santo Padre propõe a seguinte ordem:
- A Eucaristia como fundamento da união comunitária.
- A pluralidade das vocações como sinal de uma comunidade espiritualmente viva.
- O fortalecimento do apostolado leigo.
A ordem apresentada é realmente perfeita, pois denota a importância da eucaristia para a construção da Igreja. O Santo Padre reconhece a que a Eucaristia é o verdadeiro cume para o qual se ordenam todas as vocações. Uma comunidade verdadeiramente viva é aquela que se alimenta do Pão da Vida. Não obstante, o Papa sabe que para que haja Eucaristia em todas as comunidades é preciso de um verdadeiro trabalho de apostolado evangelizador sem o qual nenhuma conversão é possível. Por isso, embora a ordem dos parágrafos destaque a Eucaristia em primeiro lugar, a ênfase deles é no apostolado leigo (93-94):
“93. […] Precisamos de promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade por meio de vários serviços laicais, que supõem um processo de maturação – bíblica, doutrinal, espiritual e prática – e distintos percursos de formação permanente.
94. Uma Igreja de rostos amazônicos requer a presença estável de responsáveis leigos, maduros e dotados de autoridade, que conheçam as línguas, as culturas, a experiência espiritual e o modo de viver em comunidade de cada lugar, ao mesmo tempo que deixem espaço à multiplicidade dos dons que o Espírito Santo semeia em todos. Com efeito, onde houver uma necessidade peculiar, Ele já infundiu carismas que permitam dar-lhe resposta. Isto requer na Igreja capacidade para abrir estradas à audácia do Espírito, confiar e concretamente permitir o desenvolvimento duma cultura eclesial própria, marcadamente laical. Os desafios da Amazônia exigem da Igreja um esforço especial para conseguir uma presença capilar que só é possível com um incisivo protagonismo dos leigos.”[1]
Atentemo-nos às palavras do Santo Padre e estruturemos sua linha argumentativa. Ele primeiro propõe o fim de todo apostolado, isto é, amadurecer na santidade. Em seguida, propõe os meios: os caminhos laicais de perfeição, que vão desde a formação catequética à vida prática. Posteriormente, o Papa indica a qualidade desses leigos: maduros e com autoridade. A maturidade do cristão é, neste caso, sinônimo de santidade, pois o cristão maduro é aquele que desenvolve a vida da graça recebida no Batismo[2]; a autoridade leiga por sua vez funda-se no conhecimento marcado das coisas temporais, ou seja, da língua, da cultura e da espiritualidade de um povo[3], pois a posição eclesial do leigo é essencialmente de índole secular. Essas duas qualidades, maturidade e a autoridade do apóstolo leigo, permitem assim que ele cumpra eficazmente o objetivo de sua missão: a reforma cristã da ordem temporal.
A próxima lição que nos traz o Papa é sobre a Providência do Espírito Santo em um cristão maduro. Para o Papa Francisco, Deus é o verdadeiro autor do apostolado e por isso dispõe de tudo o que seja necessário para que ele eficaz. Para tanto, é necessário denotar quais são as obras Divino Paráclito na alma do justo:
- Incoação do gérmen da vida eterna pela graça santificante.
- Se o cristão for realmente maduro, ele também crescerá com as virtudes teologais, as virtudes sobrenaturais infusas, os dons do Espírito Santo e com os carismas.
Convém denotar a diferença entre graça santificante, virtudes teologais, virtudes sobrenaturais infusas, dons do Espírito Santo e carismas:
- Graça santificante ou também chamada habitual é uma “qualidade infundida por Deus na alma, pela qual o homem é adotado como filho de Deus e se renova segundo o homem interior e se faz partícipe da divina natureza; de sorte que, assim renovado por meio do Espírito Santo; pode a partir de agora viver bem e obedecer os mandamentos de Deus”[4].
- Virtudes teologais “são princípios operativos com os quais nos ordenamos direta e imediatamente a Deus como fim último sobrenatural. Tem a Deus mesmo por objeto material e um dos atributos divinos por objeto formal. São estritamente sobrenaturais e só Deus pode infundi-las na alma”[5].
- Virtudes sobrenaturais infusas “são hábitos sobrenaturais que dispõem as potências do homem para seguir o ditame da razão iluminada pela fé com relação aos meios conduzentes ao fim sobrenatural. Não tem por objeto imediato o próprio Deus – e nisto se distinguem das teologais – mas ao bem honesto de Deus; e ordenam retamente os atos humanos em ordem ao fim último sobrenatural à luz da fé, e nisto se distinguem de suas correspondentes virtudes adquiridas.”[6].
- Dons do Espírito Santo são hábitos ou “qualidades sobrenaturais permanentes que aperfeiçoam o homem e o dispõem a obedecer com prontidão às inspirações do Espírito Santo”[7]. Tanto os dons como as virtudes sobrenaturais em geral são hábitos sobrenaturais infusos na alma. A diferença fundamental entre eles está na maneira como operam nela. As virtudes inclinam a alma a operar segundo a natureza de suas próprias faculdades fazendo com que as inspirações da graça sejam respondidas de modo ainda demasiadamente humano. Os dons, por sua vez, operam na alma dando às suas faculdades uma prontidão imediata para obedecer aos impulsos sobrenaturais da graça, ou seja, se antes as virtudes sobrenaturais estavam sob uma “atmosfera” humana, agora estão sob uma divina. Ademais, todo cristão em estado de graça recebe anexamente à graça santificante os dons do Espírito Santo. Por esta razão, o Santo Padre diz que a multiplicidade dos dons é semeada a todos.
- Carismas não são dons distribuídos a todos (1Cor 12,30), mas são dons específicos distribuídos a cada um conforme a vontade do Espírito Santo[8]. Estes dons são dispensados ad utilitatem, isto é, para a edificação da Igreja em seus mais variados contextos.
Este “combo” sobrenatural deve ser vivido em conjunto na vida de qualquer cristão, principalmente os que estão em apostolado, e o requisito para que o faça bem é a docilidade ao Espírito Santo ou, nas palavras do Papa, “deixar lugar à multiplicidade dos dons”. O Pe. R. Garrigou-Lagrange em sua obra “As Três Idades da Vida Interior” propõe três maneiras de dispor o espírito a essa docilidade:
“1º É preciso, para isso, obedecer à vontade de Deus que já conhecemos, pelos preceitos e conselhos conforme à nossa vocação. […] 2º Renovar frequentemente a resolução de seguir em tudo a vontade de Deus. […] 3º Pedir sem cessar a luz e a força do Espírito Santo para realizar as vontades dele. E convém também consagrar-se ao Espírito Santo, quando sentirmos atração para isso, para colocar nossa alma bastante sob Sua influência e como que em Sua mão.”[9]
Dispor a alma à ação do Espírito Santo é justamente o que o Santo Padre pede aos cristãos em apostolado quando diz que todos devem se abrir “à audácia do Espírito”. Segundo o Papa, quando os católicos fazem isso o Espírito Santo já os prepara com carismas específicos para os mais diversos contextos em que se encontram. O cristão apóstolo deve, portanto, com toda “violência” se abrir ao Espírito Santo e se desenvolver no estado de graça. O ensino do Santo Padre faz eco às belas palavras do Beato Frei Maria-Eugênio do Menino Jesus, que sobre o apostolado e a vida interior ministrava esta sublime lição:
“Amigo de Deus, [o apóstolo] tem o dever de permanecer habitualmente junto ao Hóspede interior que derrama esta caridade em nossas almas. Instrumento escolhido pelo Espírito Santo, encarregado das obras divinas e construtor da Igreja, ele só pode cumprir dignamente sua missão cultivando uma intimidade que lhe há de permitir receber constantemente suas luzes e suas moções.”[10]
Por fim, em sua última lição, o Papa Francisco explica o porquê deseja o fortalecimento do apostolado leigo na Amazônia. Relembremos primeiro que o propósito do Sínodo da Amazônia era dar uma resposta aos desafios sociais e eclesiais na região, principalmente para a ausência de sacerdotes em várias comunidades. Durante o encontro dos Bispos várias propostas foram oferecidas, entre as quais haviam as decisivamente progressistas, que consistiam no relaxamento do celibato dos padres e na ordenação de diaconisas. O Papa, contudo, recusou essas sugestões e ofereceu uma resposta melhor: uma cultura eclesial marcadamente laical.
O Santo Padre sabe que não adianta “solucionáticas” para problemas profundos na vida eclesial. É preciso combater essa crise em sua raíz. A ausência de sacerdotes decorre, geralmente, de uma comunidade católica fraca, sem verdadeira vida espiritual. Os padres que eventualmente surgem nessas condições são muitas vezes o rosto de sua comunidade. Se há padres ruins, é praticamente certo que a comunidade também seja ruim. Por isso o Papa aponta que é preciso de bons leigos, pois leigos que santificam o mundo são pródigos em gerar famílias católicas e estas em vocações de todo tipo. Assim, embora os leigos estejam em último na ordem hierárquica da Igreja, eles não deixam de ser uma espécie de base desse grande edifício.
Ademais, o apostolado leigo é uma solução melhor para situações em que a Igreja está afastada dos fiéis pelas mais diversas razões, porque o leigo, por ter a vida inserida no mundo, possui mais disponibilidade que um sacerdote para apostolados em que é preciso fazer “trabalho de formiguinha”, pessoa por pessoa. É o diz o Decreto Apostolicam Actuositatem do Concílio Vaticano II:
“O apostolado individual tem especial campo de ação nas regiões onde os católicos são poucos e dispersos. Os leigos, que exercem nelas só apostolado individual pelas causas acima mencionadas ou por razões especiais, mesmo nascidas da própria atividade profissional, reúnam-se oportunamente para dialogar em grupos menores, sem forma estrita de instituição ou organização, de modo que sempre se manifeste aos outros o sinal da comunidade da Igreja como verdadeiro testemunho de amor. Deste modo, pela amizade e pela comunicação de experiências e com a ajuda espiritual mútua, fortalecem-se para superar as dificuldades da vida e da ação demasiado isolada e produzir mais abundantes frutos de apostolado.”[11]
E a Lumen Gentium:
“Os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e ativa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra. Deste modo, todo e qualquer leigo, pelos dons que lhe foram concedidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da missão da própria Igreja, «segundo a medida concedida por Cristo» (Ef. 4,7).”[12]
O Concílio há 50 anos dava uma solução que atualmente se mostra verdadeiro sopro do Espírito Santo. Ninguém poderia imaginar naquela época que a Amazônia seria assaltada pela Teologia da Libertação e pelo Protestantismo, devastando ano após ano a vida católica na Região. Tampouco era imaginado que centenas de cléricos sucumbiriam à tibieza, à acídia espiritual e implorariam pelo relaxamento do celibato e pela expansão do Sacramento da Ordem às mulheres. Mas o Espírito Santo tem planos maiores e melhores para a Amazônia, e repetiu, através do Papa, a mesma solução de cinco décadas atrás. Depois da devastação espiritual provocada na Região, o que ficou claro para o Santo Padre é que a Amazônia precisa de uma reenvagelização. E para isso as “solucionáticas”, tão caras aos progressistas, não são a solução. A resposta que o Papa encontrou para a Amazônia é a mesma da Igreja na Era das Catacumbas e do Concílio Vaticano II. Fim do celibato? Não. Diaconistas? Não. Apostolado leigo. A solução para a Amazônia é que todo católico devidamente batizado proclame sem cessar aos povos a síntese da mensagem evangélica de que apenas Cristo é Rei, Salvador do Mundo e Medicina das Nações.
[1]Exortação Apostólica Pós Sinodal Querida Amazônica. Disponível em <<http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia.html >> Acesso em 15/02/2015.
[2]CIFUENTES, Rafael Llano. A Maturidade. Editora Quadrante, São Paulo-SP, 2018, 2ª ed., p. 131.
[3]“É específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus… A eles, portanto, cabe de maneira especial iluminar e ordenar de tal modo todas as coisas temporais, as quais estão intimamente unidos, que eleas continuamente se façam e cresçam segundo Cristo e contribuam para o louvor do Criador e Redentor.” (CIC, 898)
[4]MARÍN, Antonio Royo. A Fé da Igreja. Editora Ecclesiae, Campinas – SP, 2015, 1ª ed., p. 211.
[5]MARÍN, Antonio Royo. Teologia Moral para Seglares. Editora BAC, Madrid – ESP, 1957, p. 180.
[6]Idem, p. 182.
[7]Cf. Summa Theologica, Ia, IIae, q.68, art.3.
[8]Carta Iuvenescit Ecclesia. Disponível em <<https://press.vatican.va/content/dam/salastampa/it/fuori-bollettino/pdf/PO%20IUVENESCIT%20ECCLESIA_Portugues.pdf >> Acesso em 15/02/2020.
[9]GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. As Três Idades da Vida Interior: tomo II. Cultor de Livros, São Paulo-SP, 2018, p. 861.
[10] JESUS, Frei Maria-Eugênio do Menino. Quero ver a Deus. Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 2015, p.1358.
[11]Decreto Apostolicam Actuositatem. Disponível em: <<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651118_apostolicam-actuositatem_po.html>> Acesso em 15/02/2020.
[12]Constituição Dogmática Lumen Gentium, n.33. Disponível em: <<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>> Acesso em 17/02/2020