No última dia 23/02 (domingo) a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apresentou o samba-enredo “A Verdade Vos Fará Livres”1, de autoria de Leandro Vieira, que contou com o auxílio do Pastor Henrique Vieira, psolista de carteirinha, colunista do portal “Mídia Ninja” e defensor do aborto2. A letra do samba-enredo apresenta um cenário de Cristo voltando à Terra e se apresentando como “Jesus da Gente” e não entendendo a razão dos “profetas da intolerância” não compreenderem a sua “verdadeira” mensagem, isto é, a de cuidarem dos oprimidos e do marginalizados. Já no desfile foi apresentada a biografia de Jesus, do nascimento à ressurreição, em que Ele é representado como mendigo, mulher, índio e negro em diversos momentos de sua vida. Como era de se esperar, a apresentação da Escola de Samba foi instantaneamente aclamada e ovacionada pela mídia e também se seguiram diversas análises teológicas positivas do evento, como a do próprio Pastor Henrique Vieira, que afirmou que “Jesus foi honrado” e “celebrado com festa, alegria e respeito”3, e a do Pastor Ed René Kivitz, que em seu Instagram realizou a seguinte reflexão:
A teologia não é privilégio exclusivo dos teólogos e a religião institucionalizada não detém o monopólio da produção das crenças.
Quando Luiz Gonzaga colocou em verso a agonia do sertão, estava fazendo teologia e refletindo sobre o lugar de Deus face ao sofrimento humano:
“Quando oiei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação”.Ao narrar suas memórias dos horrores dos campos de concentração nazistas, Primo Levy registra o dia quando diante de dois corpos esquálidos pendurados enforcados, alguém do meio da multidão pergunta “onde está Deus?”. Levy responde profeticamente: “Ali, pendurado na forca!”.
Também a Mangueira perguntou onde está Deus enquanto o feminicídio aumenta, os racistas perdem escrúpulos, a homofobia espalha violência e a gente pobre e negra é assassinada dentro de sua própria casa.
Desde a Sapucaí ecoa uma resposta: “Jesus está também na mulher violentada, nos LGBTI+ agredidos e desrespeitados, nas crianças cravejadas de balas”!
Deus não está no fogo que queima o sertão, está na bravura do sertanejo; Deus não está na brutalidade dos que promovem genocídios, está na força dos resistentes e resilientes; Deus não está na mão violenta que agride e mata pobres, crianças, mulheres e homossexuais, está na solidariedade, no respeito e no amor a todos os seres humanos, especialmente aqueles circunstancialmente vulneráveis; Deus não está nos messias com arma na mão – seja polícia, milícia ou traficante, está naqueles que são pacificadores, seguidores do Príncipe da Paz!
Os pastores Henrique Vieira e Ed René Kivitz são conhecidos filhos da Teologia da Missão Integral, a versão protestante da Teologia da Libertação. O que pensa, por exemplo, o Pastor Henrique sobre penitência, remissão dos pecados, virtudes, perfeição da vida cristã é um grande mistério. Parafraseando o Padre Leonel Franca, “procurem nas obras desse Pastor os seus conselhos espirituais valiosos, seu entendimento de como crescer na vida da graça, vencer o pecado e alcançar a perfeição cristã e encontrareis senão páginas em branco.”. Em contrapartida, encontrareis abundantes defesas de um “Jesus revolucionário”, “subversivo” e de um Cristianismo favorável ao aborto, à laicidade liberal do Estado e às pautas LGBT. Sabemos portanto que esses pastores não são exatamente “cordeirinhos da fé” e nem sequer sombras do Eterno Bom Pastor. Era previsível também que as suas análises capitalizariam a apresentação da Escola de Samba como sendo apenas mais um “grito dos excluídos” ou uma “chamada de atenção para as classes menos favorecidas”, etc., e não como uma instrumentalização da fé para uma teologia de um Deus apequenado e muito político.
Não obstante, apesar da desconfiança sobre as boas intenções dos idealizadores desse desfile ser legítima, para a análise da apresentação abraçaremos a Hermenêutica da Caridade e iremos pressupor a bondade de suas intenções.
Limpando o terreno
Após a apresentação do desfile da Mangueira surgiram diversas interpretações do evento. As progressistas, que já expusemos, procuram apresentar o desfile apenas como uma crítica social ou um “tapa na cara” de quem rejeita as minorias da sociedade. As interpretações contrárias, por outro lado, se dividem em atribuir heresia ao samba-enredo, escárnio à fé cristã ou indução à Teologia da Libertação. Quaisquer que sejam as interpretações desse desfile todos concordarão que a proposta da escola de samba foi, por meio da cultura, apresentar um tipo ideal de Cristo ou uma espécie de “evangelização”. Sendo assim, ponderemos sobre os meios culturais utilizados e o modelo de Cristo apresentado.
É o Carnaval um bom veículo cultural para a evangelização dos povos?
A Igreja nunca condenou o Carnaval, mas sempre procurou purificá-lo com informando-o com as realidades do Evangelho e os princípios da moralidade. Não obstante, reconhecemos que não é de hoje que o Carnaval é praticamente vazio de qualquer sentido cristão. Mesmo em tempos em que a sociedade era majoritariamente cristã o Carnaval era uma festa muito pagã, e por isso, com bastante razão, dizia Santo Afonso de Ligório: “…nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam os ultrajes descritos no Evangelho”4.
O Carnaval, em nossos dias, infelizmente incita os piores pecados e extravagâncias como a luxúria, a glutonaria, as drogas e até mesmo a glamurização do demônio e o escárnio de Cristo5. E, embora não vejamos (e provavelmente nunca veremos) uma condenação da Igreja ao carnaval como festa pública ou cívica, certamente é claro a todo bom católico ou mesmo cristão que a concretude dessa festa é majoritamente má, pois contém inúmeras desvantagens e pouquíssimas vantagens. Ainda que por exemplo um cristão vença todas as tentações de todo o mal que lhe é apresentado no Carnaval, as suas forças, contudo, sairão demasiado debilitadas, porque as inúmeras oscilações ou vacilos do coração perante sedutoras tentações conduziriam a alma dele a um estado de luta árdua cujo resultado final poderá até ser a vitória, mas com muitos ferimentos. Por isso, é necessário lembrar que a evangelização dos povos pela arte deve-se realizar por meios culturais apropriados, de tal modo que sejam ordenados a levarem o homem a contemplar os mistérios divinos e a ter um reto juízo sobre a ordem temporal. Neste sentido, ensina a Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
“… a Igreja lembra a todos que a cultura deve orientar-se para a perfeição integral da pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade. Por isso, é necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social.”6
Assim, será que o Carnaval é um meio cultural devidamente ajustado para transmitir verdades integrais sobre o homem e Deus? Imagine um cenário de baile funk em que são tocadas todo tipo de música do estilo “proibidão”, e logo após a audição de várias dessas músicas se iniciasse um “pancadão” adaptado da oração “Salve Regina”. Será que a exposição desta bela oração em um estilo que não dá a ela a sublimidade devida iria fornecer uma compreensão adequada dos ouvintes sobre as verdades de fé? Não. E será que pregar o Evangelho no Carnaval sem que a própria festa esteja de alguma forma ordenada para isso atingirá o fim esperado? A resposta também é não. Torna-se patente assim que o erro essencial dos cristãos liberais é de não entenderem a necessidade de uma certa nobreza dos meios de evangelização. A Igreja quando incultura sua mensagem para evangelizar os povos, apela para os elementos mais nobres da cultura local e não para os mais baixos:
A evangelização, cuja fé é ela mesma ligada à uma cultura, deve sempre dar testemunho claro do lugar único de Cristo, da sacramentalidade de sua Igreja, do amor dos seus discípulos por todo homem e por « tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer modo mereça louvor » (Fil 4, 8), o que implica a rejeição de tudo aquilo que é fonte de pecado e fruto do pecado no coração das culturas.
O Cristo da Mangueira foi adequadamente apresentado?
Eis o ponto mais polêmico de toda a discussão. Primeiramente, comecemos pela análise do samba-enredo. A princípio não é possível visualizar na letra da música alguma heresia, isto é, uma negação de um dogma infalivelmente definido pela Igreja. Apesar da música não ser poeticamente uma obra prima e ainda carregar uma forte linguagem esquerdista, ela não é em si uma negação da fé. Portanto, não cabe também a acusação de alguns católicos de que o samba-enredo afrontou algum ensinamento da Igreja. Mesmo quando a letra da canção apresenta Jesus como tendo “rosto de negro, sangue índio e corpo de mulher” deve-se tomá-la no sentido simbólico, isto é, que também devemos ver o rosto de Cristo nessas pessoas.
Resta-nos então analisar o desfile. Para tanto, sigamos a ordem de apresentação da escola de samba:
- Cristo é apresentado ressuscitado na favela da Mangueira.
- No presépio Jesus é representado por um bebê negro junto de Maria (Alcione).
- Desfile das Alas. Apenas um milagre Cristo é apresentado, o da multiplicação de peixes.
- Cristo (Pastor Henrique Vieira) na figura de um mendigo faz a entrada triunfal em Jerusalém.
- Jesus é visto condenando os vendilhões do templo.
- Um “Jesus mulher” (Evelyn Bastos) é envolto de soldados romanos.
- Jesus sofre as dores da paixão nas figuras do índio, do negro e da mulher.
- Novo desfile das Alas. A ala das mães de santo desfilam junto de Jesus crucificado (um jovem negro baleado) para representar a intolerância religiosa com as religiões de matriz africana.
- Sucede-se o desfile de vários crucificados, dentre eles um LGBT cuja cruz está escrito “Só ame”.
- Desfilam ainda as Alas “Corpo de Mulher” e “Maria Madalena”, esta portando diversas bandeiras arco-íris.
- Cristo ascende ao céus com balões em formas de coração simbolizando sua mensagem de amor.
Se o samba-enredo em nada atentou contra a fé, a exposição do desfile todavia apresenta diversas mensagens sutis que trazem um modelo errado de Cristo. Primeiro, entre tantos milagres de Jesus, por que o único apresentado é justamente aquele mais celebrado pela Teologia da Libertação, o que capitalizam como “o milagre da partilha”? Segundo, por que Cristo é representado por uma mulher? Não há na tradição iconográfica cristã nenhuma representação feminina de Jesus assim como não há representações femininas de Deus Pai. Há motivos sérios para isso (como bem explicou o Presidente da Ignatius Press, Mark Brumley7), mas a Mangueira ignorou e apresentou Cristo como quis. Cabe-nos então perguntar: será que é pedir muito apresentar Jesus como Ele quis se revelar aos homens? Para a Mangueira, sim. É pedir muito. Terceiro, por que apresentar mães de santo junto ao Calvário? A maior intolerância religiosa no mundo continua sendo com os cristãos8. Ademais, se a intenção era mostrar, como diz o Pastor Henrique, o “Jesus verdadeiro” muito conveniente seriam os cristãos estarem ao pé da Cruz, afinal, só os seguidores de Jesus permaneceram ao seu lado na agonia final e até hoje só eles morrem por Ele, e não as mães de santo. Quarto, a mensagem de um crucificado LGBT com a inscrição “Só ame” é perniciosa e não pode ser desconectada no contexto em que vivemos. Nenhum cristão tem o direito de ser ingênuo e interpretar essa imagem apenas como um “grito contra a violência aos LGBT”. Há uma revolução sexual em curso completamente contrária à moral católica e da maioria das comunidades cristãs e o movimento LGBT é o seu principal propagador. Portanto, toda manifestação cristã contra a violência aos homossexuais deve ser sóbria, isto é, não usar os símbolos próprios de propaganda do inimigo, mas usar meios de expressão adequados para não confundir a verdade com o erro, pois “Só ame”, para um católico, é cumprir e ensinar a observância de todos os mandamentos de Cristo (Jo 14, 21), contudo, para os progressistas, “Só ame” não significa mostrar a verdade e obedecê-la, mas apenas ter empatia por alguém.
Do exposto, a conclusão só pode ser uma: Cristo não foi bem apresentado. Porém, resta-nos perguntar ainda em um vago sentimento de esperança: houve alguma mensagem verdadeiramente espiritual ou transcendente dessa “evangelização”? Poderíamos dizer que nem tudo foi ruim, porque foi possível passar “a mensagem certa” ainda que debilmente? Respondamos com a esperança enterrada: Não. Com muita boa vontade poderíamos dizer que foi ensinado o “respeito” ao semelhante. Mas, convenhamos, ensinar boas maneiras é direito natural e não evangelização dos povos. Evangelizar os povos é anunciar Cristo ressuscitado e ensinar a obediência a tudo o que Ele mandou (Mc 16,15). Evangelizar não é fazer apenas denuncismo social e chamar Deus e o mundo de “hipócrita” (como fazem os cristãos liberais), e sim mostrar a verdadeira Cura do pecado: Jesus Cristo. No desfile, infelizmente, Cristo não apareceu como Salvador do Mundo, mas como uma figura retórica que apenas valida as ideologias que estão na moda: feminismo, gayzismo e racialismo. Assim, digamos à escola de samba e aos pastores da libertação uma verdade que liberta: repetir o que o mundo diz não é uma atitude revolucionária, mas transcendê-lo é.
1Disponível em: <<https://www.letras.mus.br/mangueira-rj/samba-enredo-2020-a-verdade-vos-fara-livre/>> Acesso em 24/02/2020
2“Ser a favor da vida é ser a favor do aborto legal”. Disponível em <<https://www.youtube.com/watch?v=SIqts1f1miw>> Acesso em 24/02/2020.
3Disponível em: <<https://instagram.com/p/B881MRRpIZS/>> Acesso em 24/02/2020
4LIGÓRIO. Santo Afonso. Meditações. Livreiros-Editores Pontifícios, tomo I, 1921, p. 280.
5“O demônio venceu, sim. Diz teólogo batista”: Disponível em <<https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-diabo-venceu-sim-teologo-batista-da-razao-a-gavioes-da-fiel-cujo-desfile-escandalizou-evangelicos/>> Acesso em 24/02/2020.
6 Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n.59. Disponível em: <<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html >>
7Why God is Father and not Mother. Mark Brumbley. Disponível em: <<https://www.ewtn.com/catholicism/library/why-god-is-father-and-not-mother-10117 >> Acesso em 26/02/2020.
8“Cristãos são os mais perseguidos do mundo, aponta relatório.” Disponível em: <<https://domtotal.com/noticia/1399352/2019/11/cristaos-sao-os-mais-perseguidos-aponta-relatorio/>> Acesso em 26/02/2020.