Ataques contra os direitos naturais e civis com o pretexto de combate ao coronavírus precisam ser questionados, não legitimados.
I. A emergência de uma Gestapo antiviral
No combate ao coronavírus, governantes e agentes do Estado têm imposto à população, em muitos lugares, medidas duras para obrigar as pessoas a ficarem em casa. No cumprimento dessas determinações, diversos abusos e agressões injustificáveis, sobretudo de agentes de segurança pública, têm sido relatados e vários até registrados em vídeo.
Repressões, multas contra empreendedores e trabalhadores, além de ameaças de prefeitos contra comerciantes que ousarem abrir as portas, ainda que de forma controlada e cautelosa, tornaram-se banais em muitos lugares. Casais e mesmo pessoas sozinhas e completamente afastadas de outras em parques, praças amplas ou outros espaços públicos com baixíssima densidade de transeuntes têm sido abordadas de forma muitas vezes desnecessariamente violenta pela tropa de choque anticorona.
Contraditoriamente, na OMS já se cogitou, ante a baixa eficácia do confinamento forçado, até a possibilidade de dar aos agentes do Estado poder para entrar nas casas das famílias e arrancar à força aqueles que estiverem aparentemente contaminados.
Diante de tudo isso e da ameaça de restrições, invasões e repressões ainda mais cerceadoras das liberdades fundamentais da pessoa humana, muitos cidadãos têm questionado a real necessidade e a legalidade das medidas tomadas pelos governos ou, pelo menos, dos abusos cometidos por seus agentes.
Muitos sensatamente têm se perguntado para onde foram os seus direitos fundamentais invioláveis, agora ameaçados a ponto de não poderem mais sequer pôr o pé pra fora de casa a fim de caminharem solitários numa praça, ainda que com máscara no rosto, álcool nas mãos e vários metros de distância dos demais.
II. Pretextos “filosóficos” e “de saúde pública” para um regime de exceção
No último dia 10 o jornal O Estado de S. Paulo publicou no seu caderno Estado da Arte o controverso artigo Donoso Cortés, a Covid-19 e os limites do legalismo liberal.
No texto, de autoria do professor secundarista e mestrando da UERJ Pedro Ribeiro, o leitor se depara com uma sinuosa defesa de medidas autoritárias e violadoras dos direitos e liberdades civis para conter a ameaça do coronavírus, este “inimigo biológico invisível” que Ribeiro faz se assemelhar a hordas de revolucionários sedentos de sangue e prontos a incendiar e destruir tudo.
Para defender sua tese, o autor evoca um discurso do teórico político espanhol Donoso Cortés, um apologista de monarcas absolutistas. Mesmo no século XIX, Cortés ainda insistia em tecer louvores¹ ao ultracentralizador e patrimonialista regime de Luís XIV da França, por exemplo.
Após se escandalizar com as revoltosas ondas de insurreição da assim chamada “Primavera dos Povos” de 1848, Cortés, que era antes um liberal moderado, se torna um reacionário aguerrido.
No seu Discurso sobre a Ditadura citado por Ribeiro, o teórico defende a importância e legitimidade das medidas discricionárias dos estadistas em casos extremos. Nominalmente, ele advogava então a favor dos atos de repressão do então primeiro-ministro espanhol, o general Narváez y Campos, para debelar os motins e revoltas que a “primavera” havia excitado na Espanha.
As medidas de Narváez como ditador ad hoc e os enredos filosófico-teológicos que Donoso Cortés tece em defesa do general servem a Ribeiro como estribo retórico para justificar o cerceamento de direitos fundamentais e o recurso a expedientes ditatoriais com o pretexto de combater o coronavírus no Brasil de hoje.
Para nós, esta é uma sugestão tão surpreendente quanto lamentável. E talvez não seja por acaso ela ser ventilada por um professor de filosofia que se define, em sua página no Facebook, como “conservador de esquerda”, seja lá o que isso queira dizer. Seria algo similar ao regime monárquico ditatorial apregoado por Cortés ou algo mais próximo de uma ditadura contemporânea de esquerda como o regime socialista chinês? Não sabemos dizer.
O inacreditável é que pareçam legítimas ao autor do artigo a quarentena geral forçada, as prisões injustificáveis até de cidadãos praticamente isolados em espaços públicos amplos, os abusos registrados em diversos vídeos que mostram truculência e mesmo cenas de espancamentos cometidos por policiais contra cidadãos inocentes simplesmente por não estarem eles trancafiados em casa.
As questionáveis perseguições de agentes do Estado contra trabalhadores honestos e as absurdas invasões aventadas na OMS no sentido de delegar a agentes do Estado poder para entrar nas casas, tirar das famílias e levar à força quem for suspeito de estar contaminado: tudo isso deve parecer muito justificável na mente do nosso professor “donosiano” – melhor que “cortesão”, embora seu discurso de fato sirva bem às cortes hodiernas. Invocar o princípio da legalidade e os direitos naturais do ser humano soa-lhe apenas coisa de liberais legalistas inconsequentes.
III. Distinções entre o liberalismo e o Estado de direito
Ao dissertar sobre o princípio da legalidade – pejorativamente desclassificado por Ribeiro como um “legalismo liberal” – o professor donosiano mira o liberalismo moderno, mas acaba injuriando na verdade toda a tradição da filosofia política clássica e escolástica.
O Estado absolutista e centralizador, o Estado de James I, de Jacques Bossuet e de Thomas Hobbes, é patentemente moderno e cria as condições de possibilidade para o surgimento do liberalismo. Via de regra, no medievo o poder era muito mais pulverizado, dividido entre o rei e os duques, condes e outros senhores feudais locais; os servos não vivam geralmente sob uma estrita ditadura. Ainda mais descentralizadora é a proposta política da Doutrina Social da Igreja, com o seu princípio da subsidiariedade.
Ao atacar o princípio da legalidade constitucional que valida os regimes e atos de governo e sobretudo ao defender os regimes de exceção como fundamento da política, Ribeiro abraça Maquiavel e a moderna falta de escrúpulos políticos e renega desde Platão até a escolástica tardia do filósofo jesuíta Francisco Suárez.
Tanto para Tomás de Aquino quanto para Suárez, o regime político idealmente melhor supõe o consentimento popular que dá respaldo ao governo do príncipe.
O estadista, segundo os escolásticos, deve servir sempre ao bem comum e à utilidade dos súditos; pesam sobre ele graves deveres a cumprir para com o povo, de quem dimana primeiramente, depois de Deus, a autoridade e o poder que o soberano exerce. Logo, ele é servo e não senhor do seu povo.
A ideia de um governo das leis, isto é, de um governo resguardado do puro arbítrio do estadista e pautado por normas constitucionais que devem ser respeitadas também pelos dirigentes, é uma ideia muito mais antiga do que as premissas do liberalismo moderno. Fato este que o professor de filosofia parece desconhecer, uma vez que a faz remontar ao filósofo moderno John Locke.
O constitucionalismo é um princípio muito mais velho do que supõe o nosso arauto da ditadura antiviral. A noção de um legislador sábio que funda as grandes nações e cujas diretrizes devem ser seguidas por seus sucessores é antiquíssima.
Norberto Bobbio² cita Eurípides na velha Grécia, Cícero na Roma antiga e Bracton no medievo para demonstrar que o Estado de direito é defendido há milênios contra o perigoso reino do arbítrio dos príncipes.
Não menciona o articulista nem mesmo a conhecidíssima Magna Carta de 1215, um recurso que, em plena cristandade medieval, procurou dar garantias legais ao povo inglês e limitar o poder abusivo do rei John Lackland (João Sem-Terra). Mesmo os liberais citam-na como um precedente importante para o constitucionalismo britânico, denotando que a ideia de um governo regulado por leis é muito anterior à modernidade e ao próprio liberalismo.
Do ponto de vista jusnaturalista cristão, a importância do regime constitucional é algo até mesmo intuitivo: se há uma justiça natural de origem divina que tem primazia sobre os interesses, artifícios e convenções temporais dos homens, é óbvio que uma constituição que determine o que é naturalmente justo é muito bem-vinda para regular inclusive o Estado.
As constituições não são sempre o produto de “quarteladas e golpes” como insinua o articulista; elas são o fruto da inteligência e do anseio dos povos de serem governados com justiça e não com despotismo.
O que foram, por exemplo, as manifestações populares que levaram ao Dia do Fico? Dom Pedro I resolveu ficar no Brasil, proclamar a Independência e outorgar a Constituição Imperial de 1824 porque o povo brasileiro, cansado de ser explorado e sub-representado pelas cortes de Lisboa, lhe solicitava isso.
As constituições – e mesmo suas emendas, alterações e substituições legítimas – geralmente brotam, com efeito, não das veleidades de momento e das sanhas políticas, mas daquele senso de justiça que liga a consciência e a dignidade humanas à lei natural imperecível.
IV. Santo Tomás não é Maquiavel e a política não precede a norma
Transformar circunstâncias extremas que fogem à regra geral – e a ditadura que tais circunstâncias demandam – no “próprio fundamento de todo e qualquer regime político”, como quer o referido articulista, é aproximar-se muito mais de Maquiavel do que de São Tomás de Aquino, a quem ele cita em epígrafe no seu artigo, não sem fazer uma indigna omissão no trecho citado.
O trecho que o Sr. Pedro Ribeiro omite nas reticências do recorte que usa como epígrafe, dando a entender que o príncipe (o Estado) não precisaria se submeter à lei, como se S. Tomás estivesse legitimando a ditadura, diz precisamente³, entre outras coisas, o seguinte: “Mas, quanto à força diretiva da lei, está o príncipe sujeito à lei…”.
O que o filósofo escolástico reconhece no trecho recortado por Ribeiro é que, como o príncipe é o responsável por impor a lei com o uso da coação, logicamente ele não pode coagir a si mesmo, mas – e isto o articulista omite – pesa também sobre o príncipe o dever, perante Deus, de também dirigir-se pela lei natural e pelas leis que ele mesmo impõe aos súditos. Donde não se pode supor que Aquino considerasse o Estado e seus dirigentes dispensados de obedecerem retamente a lei comum.
Ora, São Tomás não era Maquiavel. Este, sim, foi o teórico maior da política amoral que aplica arbitrariamente meios violentos em vista de fins questionáveis e se pauta apenas pelos interesses do príncipe e por razões de Estado próprias.
Só com Maquiavel faz sentido dizer que as situações extraordinárias que legitimam as ditaduras são o “fundamento” mesmo da política. Acusa Leo Strauss que o pensador italiano foi mesmo o precursor teórico dos regimes ditatoriais modernos, pois os filósofos clássicos “haviam se orientado pelo caso normal em vez da exceção; [enquanto] Maquiavel leva a cabo a sua mudança radical no entendimento das coisas políticas orientando-se pela exceção, pelo caso extremo.” 4
Podem ser catastróficos os efeitos de uma política na qual o estadista se pauta não pela norma do direito natural e universal e pelas regras de justiça ordinariamente aplicáveis, mas exerce um governo arbitrário sob a justificativa, que pode acabar se prolongando indefinidamente, de uma suposta situação gravemente excepcional.
São Tomás, ao contrário de Maquiavel, era um jusnaturalista. Para ele, muito ao contrário do que advoga o Sr. Pedro Ribeiro, a norma tem, sim, uma insofismável primazia sobre a realidade política, embora não se possa dizer o mesmo quanto à ordem jurídica positivada.
Isto porque o fundamento legítimo das regras de conduta e ordenamentos jurídicos é, na perspectiva tomista, o direito natural, isto é, o que é justo em si, ou a justiça cósmica inerente à essência mesma das coisas e das relações entre elas. E esta lei natural está estreitamente vinculada à justiça eterna cuja fonte é o próprio Deus.
Ainda que deva adequar-se às circunstâncias na sua aplicação concreta, o cerne do direito natural é imutável, e isto porque a natureza essencial das coisas é imutável. Enquanto a política é instável e volúvel, o direito natural é perene e estável.
Um estado de exceção não tem o poder alterar a natureza das coisas e a lei natural que é ínsita a elas, por mais extraordinárias que sejam as situações em um dado momento histórico. O nomos cósmico está acima da história. Logo, a lei vem antes e é evidente que a fonte do direito não pode estar nas circunstâncias de uma ordem política variável.
É definitivamente incoerente citar São Tomás em epígrafe para, em seguida, defender que a ordem política contingente tem precedência sobre a lei e que é sua genitora. O que defendia o grande filósofo cristão e aristotélico é o exato oposto do que defende o nosso discípulo de Cortés.
Ribeiro acaba se aproximando, provavelmente sem se dar conta disso, da nada cristã e nada “conservadora” tese convencionalista para a qual a fonte do direito é a mera convenção humana. O convencionalismo é a base do positivismo jurídico, do contratualismo sociopolítico e também do relativismo moral, sendo, portanto, totalmente avesso ao direito natural e à tradição filosófica cristã na qual o articulista paradoxalmente parece querer se escorar.
Para constatá-lo, basta recordar o exemplo da discussão sobre o aborto, em que o direito natural e inviolável do nascituro à vida intra e extrauterina é contraposto à excepcional “realidade” social que, no discurso pró-aborto, envolveria justamente “questões de saúde pública”. O embate de fundo é o mesmo. O professor donosiano, portanto, precisaria ser mais claro e explicar exatamente de que lado ele está no grande embate entre a norma perene da justiça e a política das convenções.
V. Jesus não aplaudiria Carl Schmitt
Estranho também é que o professor de filosofia cite elogiosamente Carl Schmitt – um dos principais teóricos legitimadores do nazismo – como um bom seguidor de Donoso Cortés, e conclua seu artigo com uma inexplicável referência ao iníquo julgamento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora, no julgamento mais nefando da história da humanidade é sabido que o arbítrio de Pôncio Pilatos se sobrepôs à legalidade, uma vez que o direito romano não permitia condenar à crucifixão um inocente no qual o próprio governator não encontrou culpa alguma.
Pilatos preferiu, porém, dar primazia às circunstâncias, preferiu ser político e convencional, preferiu ceder ao furor dos judeus a respeitar o direito do réu previsto na lei (naquele caso, tanto divina, quanto natural, quanto romana) e mandou crucificar Jesus.
É incerto se Jesus aprovaria o discurso de Cortés, mas Ele certamente não cumprimentaria Maquiavel por suas contribuições à política, e muito menos Carl Schmitt.
VI. O corona não é uma horda de revoltosos sanguinários
Ao comparar o vírus que causa a Covid-19 com uma ameaça de sublevação sangrenta e guerra civil, o articulista perde completamente o senso das proporções. Trata-se de um inimigo completamente diferente, seguramente menos mortífero e muito mais individualmente evitável do que aquele alvejado por Narváez e Cortés no séc. XIX.
O coronavírus é um inimigo incapaz de fazer mal a quem, mesmo levando uma vida normal, seja consciente o bastante para tomar os cuidados recomendáveis de higiene e voluntário distanciamento social.
Ribeiro quer invocar uma ditadura para proteger-nos de um inimigo que, na maioria das pessoas que atinge, sequer torna-se sintomático a ponto de requerer cuidados médicos. E, quando os requer, já sabemos que pode ser vencido com o tratamento adequado em grande parte dos casos.
É incompreensível que um estudioso da filosofia política por tão pouco ache legítimo impor-se um estado de exceção para assegurar um lockdown cuja eficácia está longe de ser um consenso, seja para frear a disseminação do vírus, seja em vista de outros males sociais, quiçá ainda piores que a Covid-19, que são potencializados pelo confinamento.
Não poucas vozes, algumas mesmo dentro da OMS, têm questionado a eficácia da quarentena imposta. Ainda mais se considerarmos os gritantes e funestos efeitos colaterais de um confinamento imposto por uma ditadura que paradoxalmente prejudicaria mais o povo que ela alega proteger do que o inimigo a ser debelado.
Concedemos que estados de exceção de fato se justificam em situações muito excepcionais. Não seria razoável negar que Cortés pudesse ter, naquele seu contexto, alguma razão.
E possivelmente seria legítimo, sim, que alguns direitos e liberdades individuais fossem temporariamente suspensos se a ameaça do coronavírus de fato fosse tão apocalíptica quando alardeiam certas mídias e alegam alguns homens públicos aparentemente mui apreciadores de estados de exceção e certamente nada interessados em lucrar politicamente com a situação toda.
Mas o quadro real que temos diante dos olhos está muito longe de se parecer com uma horda de jacobinos possessos ou bolcheviques ensandecidos por um banho de sangue revolucionário.
Aliás, há indícios de que os jacobinos, neste caso, estejam na verdade por trás das cortinas, assistindo tudo com gozo, calculando as vantagens políticas que poderão colher desta crise e se esforçando para fazer o corona parecer um monstro muito maior do que ele de fato é. É possível que não poucos estejam até torcendo para que uma quarentena prolongada traga uma recessão econômica tão catastrófica que ponha o sistema abaixo sem que eles precisem nem sujar suas mãozinhas.
Não custa lembrar que foram justamente os abusos de poder, as negligências e as regalias dos reis absolutistas, como o “glorioso” monarca franco louvado por Cortés, que deram ocasião e pretexto a levantes como, por exemplo, a brutal Revolução Francesa. Regimes autoritários trazem, consigo ou depois de si, incontáveis males, inclusive aquele que Cortés lutava para evitar.
Felizmente os nossos jacobinos não parecem querer uma revolução armada, querem apenas torcer pelo advento de tempos ainda mais difíceis e quiçá de uma ditadura salvadora que, dizem, nos livrará deste vírus huno tão temido pelos novos Átilas (não resisti, perdoem-me).
Sem jacobinos armados, contrarrevolucionários como Narváez e Cortés não teriam muito o que fazer por aqui. A aplicação da argumentação donosiana na situação vigente é obviamente inadequada e a associação desta pandemia de baixa letalidade com um cenário de insurreição violenta e possíveis guerras intestinas – o que, de fato, exigiria medidas excepcionalmente duras – é absurdamente descabida.
VII. O problema começou com uma ditadura
Ribeiro parece esquecer-se que foi justamente uma ditadura (talvez “conservadora de esquerda”, como le gusta) que criou o problema, para começo de conversa. Não fosse o regime chinês justamente uma ditadura como a que estão justificando para conter o vírus, o outbreak da peste, que só foi possível graças às omissões autoritárias e à discricionariedade do regime de Pequim, não teria acontecido.
Se não tivesse se alastrado com o favor de uma ditadura, se a China fosse um país aberto com liberdade de informação e respeito aos direitos civis, a Covid-19 poderia ter sido contida e exterminada no nascedouro e milhões de pessoas não a estariam amargando agora e por sabe-se lá quanto tempo mais, com inumeráveis consequências econômicas e calamitosos problemas sociais para o mundo inteiro.
Portanto, devemos assumir que não: submeter as pessoas a inúmeras outras ditaduras não vai solucionar o problema causado pelo mais poderoso regime ditatorial do mundo, a despeito dos pareceres do professor donosiano. Lamento se isso o desaponta.
Noutro contrassenso, o professor afirma duas vezes ao longo do texto que não faz ali “um juízo de valor” – como se isso fosse possível em política e como se fosse um crime fazê-lo –, revelando-se talvez um caudatário do discutível neutralismo axiológico de Weber, que também é citado no artigo.
A honestidade nos obriga aqui a ressalvar que, em seu artigo, o professor Pedro Ribeiro não apregoa o absolutismo e tampouco uma ditadura perpétua. O articulista inclusive salienta que a legalidade é útil em tempos normais e salvaguarda que “nenhum ser humano está acima” da “ordem moral” ou da “ordem da justiça” – seja lá o que ele queira dizer com isto, posto que ataca em diversos pontos do texto a ordem jurídica e a normatividade fundamental que regula o poder do Estado, ignorando que aquilo que é positivado na letra da lei muitas vezes equivale ao que é de fato justo.
No entanto, além insinuar que quem protesta contra os abusos estatais é um desvairado legalista liberal e além dos erros crassos quanto às origens do Estado de direito e a relação entre a norma jurídica e a política, a sugestão de que uma ditadura teria alguma legitimidade no contexto atual é tão execrável e perigosa que não poderíamos deixá-lo sem resposta.
É incomparavelmente mais sensato presumir que teremos resultados melhores com mais campanhas de conscientização e quarentena voluntária para pessoas no grupo de risco e quem mais puder ficar em casa, além de novas pesquisas, aperfeiçoamento dos tratamentos promissores que já estão sendo empregados e o respeito inabdicável aos direitos fundamentais do ser humano.
¹ CORTÉS, Donoso. Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo. Buenos Aires: Editorial Americalee, 1943, p. 164.
² BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 1998, p. 674.
³ AQUINO, Tomás de. Escritos Políticos de Santo Tomás de Aquino. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 106.
4 STRAUSS, Leo. Uma Introdução à Filosofia Política – Dez ensaios. São Paulo: É Realizações, 2016, p. 66.