Nesta sexta-feira, 24 de abril de 2020, está previsto o julgamento da ADI 5581 pelo STF, na qual se requer a possibilidade de aborto para mulheres infectadas com zika vírus, dada a ocorrência de microcefalia em alguns bebês. A ação trata-se de mais uma tentativa da cultura da morte de aprovar o aborto no Brasil.
A ADI é cumulada com uma ADPF e foi proposta pela ANADEP (Associação Nacional dos Defensores Públicos). É na ADPF que a Associação requer, dentre outros pedidos, a possibilidade de abortamento de bêbes cujas mães estejam infectadas pelo zika vírus. Para tanto, a ANADEP requer a declaração de inconstitucionalidade da interpretação que qualifica o aborto nesses casos como conduta tipificada dos arts. 124 (autoaborto) e 126 (aborto provocado) do Código Penal. Além disso, requer a interpretação conforme a Constituição do art. 128 (aborto necessário), I e II, do mesmo Código Penal, julgando que o aborto por mulher infectada por zika vírus encontra guarida no estado de necessidade específico, e também no estado de necessidade geral, isto é, como uma causa excludente de ilicitude, nos termos dos arts. 23, I, e 24 do Código Penal.
Inúmeros foram os amicus curiae que em suas manifestações eficazmente refutaram as pretensões da requerente ANADEP, dentre elas a excelente defesa da ASSOCIAÇÃO NACIONAL PRÓ-VIDA E PRÓ-FAMÍLIA por intermédio de seu advogado Dr. Paulo Fernando Melo da Costa. Elencaremos um breve enxerto dos argumentos levantados pelo Dr. Paulo para que se compreenda a inabilidade jurídica das razões manifestadas pela ANADEP.
DA AUSÊNCIA DE ESTADO DE NECESSIDADE
A requerente pretende provar um suposto estado de necessidade arguindo que a epidemia de zika vírus impõe à gestante infectada um alto grau de sofrimento psicológico e de angústia, o que afeta sua saúde mental. Ora, segundo a requerente, a definição de saúde da OMS (Organização Mundial de Sáude) conceitua saúde não como uma ausência de enfermidade, mas como um bem-estar físico, mental e social. Portanto, se há o direito fundamental da mulher à saúde, logo o mal-estar psicológico numa gravidez como esta é um grave perigo que deve ser afastado com a possibilidade de abortamento.
Esta argumentação, como patente se mostra, é uma nítida tentativa de fundamentar o aborto voluntário em qualquer situação, dado que não existe gravidez em que riscos não estejam envolvidos e que o bem-estar psicológico da gestante não seja de algum modo afetado. Contudo, não é possível proibir a gravidez, dado o direito fundamental à liberdade sexual, e por isso a correta interpretação do estado de necessidade, neste caso, não se trata de salva-guardar a gestante de qualquer sofrimento, mas somente daquele risco que coloque em atual e inevitável perigo a vida da mãe. Neste sentido, argumenta o Dr. Paulo:
153. Obviamente, não há como se conceber a priori que todas as grávidas contaminadas pelo zika estarão em estado de necessidade, fixando-se, assim, em abstrato uma regra com o figurino adequado diante de tal suposição (o que não exclui, claro, o contrário, ou seja, que se venha a verificar, em caso e investigação concreta, que haja realmente estado de necessidade porque, p. ex, está em risco a vida da mãe ou porque forçar a continuidade da gravidez, para aquela específica mulher, constituiria genuíno caso de tortura psicológica). É dizer, estado de necessidade é situação que deve ser investigada caso a caso.
154. De mais a mais, ordinariamente, o sofrimento psicológico, as dúvidas e angústias da grávida com risco de dar à luz uma criança deficiente não constituem variáveis a caracterizar, tecnicamente, estado de necessidade. Note-se que, no aborto necessário, está em questão salvar a vida da gestante, providência que não se alcança por outro meio que não a interrupção da gravidez. Com efeito, o “aborto necessário só é permitido quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Assim, subsiste o delito quando provocado a fim de preservar a saúde.
Alega ainda o Dr. Paulo que o abortamento também não é a última via para o tratamento da saúde mental:
No caso de grávidas contaminadas com microcefalia, nenhum desses requisitos é minimamente satisfeito, ao menos em nível abstrato. Há várias maneiras de evitar e remediar o perigo à sua situação psicológica (tratamento medicamentoso e psicanalítico, p. ex.). Não há razão para se cogitar de aborto.
Portanto, não estão configuradas, como alega a ANADEP, os requisitos mínimos para o estado de necessidade.
DA PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA
A ANADEP aduz que o direito à vida não é considerado por entendimento pacificado pelo STF como um direito absoluto e nem de hierarquia superior aos outros direitos fundamentais constitucionalmente protegidos como os direitos à liberdade (CF, art.5º, caput) e à saúde metal. Nesta baliza argui a requerente que nos casos de “aborto humanitário” ou “ético”, isto é, decorrente de violência sexual, a saúde mental da mulher é o bem jurídico protegido pelo Código Penal em desfavor da vida de um feto viável.
Embora seja verdade que o STF pacificou o entendimento de que o direito à vida não é absoluto, como nenhum direito fundamental o é, é incorreto dizer que inexiste hierarquia entre os direitos fundamentais. A este respeito argumenta o Dr. Paulo que há evidente prevalência do direito de viver, dado ser pressuposto material de todos os direitos possíveis:
146. Na hipótese vertente, porém, há certa facilidade em se identificar qual direito deve preponderar. É que para atender os direitos e cogitados direitos da grávida, autorizando o aborto, tem que se eliminar por completo a posição jurídica do nascituro, a começar por sua vida, pressuposto material de todos os outros direitos que lhe são assegurados. A morte do nascituro e o aniquilamento total de seus direitos é o preço dos direitos da grávida. É caro demais.
Ademais, acrecentamos à argumentação sobredita que o ordenamento jurídico brasileiro é protetor de todas as etapas da vida, isto é, da infância, da juventude e da terceira idade. Não há razão para considerar a vida ultrauterina, pressuposto necessário de todas as etapas da vida, uma exceção. Neste sentido, aduz o Dr. Paulo à legislação pátria que protege o nascituro e lhe confere amplos direitos:
126. No mesmo diapasão, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), acolhida em nosso meio com caráter supralegal prescreve que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (art. 4º, 1).
127. Na lei ordinária, lembremos que o nascituro tem seus direitos assegurados desde a concepção (Código Civil, art. 2º), pode ser beneficiado com doação (CC, art. 542), é legitimado a receber por herança (CC, art. 1.798), faz jus a reparação por danos morais (p. ex. STJ, REsps ns. 399.028 e 931.556) e até mesmo a alimentos (Lei n. 11.804/2008, que trata dos alimentos gravídicos).
128. É despiciendo problematizar as diferentes inclinações teóricas alusivas ao surgimento da personalidade jurídica para se concluir, estreme de dúvida, que nosso direito, desde a Constituição, tutela o nascituro, decerto em primeiro lugar a sua integridade física e vida enquanto tal, seja vida humana como potência seja desde já como ato.
Dada a referida proteção constitucional e infraconstitucional ao nascituro, cabe inclusive futura declaração de inconstitucionalidade do do art. 128 (aborto necessário) do Código Penal ou a sua revogação pelo Congresso Nacional. Nessa esteira encontra-se o PL 2893/2019[1] da Deputada Chris Tonietto e do Deputado Filipe Barros, em trâmite no Congresso, que revoga o referido artigo do diploma legal.
DAS REAIS PRETENSÕES DA ANADEP
O Dr. Paulo esclarece-nos que a real pretenção da ANADEP é a constitucionalidade do aborto voluntário em qualquer situação, uma vez que nem todo bebê gestado por mulher infectada por zika vírus padecerá de alguma enfermidade:
166. Convém atentar para os exatos termos do pedido, no tanto aqui destacado: em sede provisória, demanda-se que seja tido por constitucional a “interrupção da gestação em relação à mulher que tiver sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida”; em caráter definitivo, a “interrupção da gestação em relação à mulher que comprovadamente tiver sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida”.
167. Observe-se que, na textualidade da pretensão, haverá de ser constitucional o aborto mesmo que não se saiba se o feto desenvolve microcefalia. Será também constitucional o aborto mesmo que não se saiba ao menos se houve a transmissão vertical do vírus, da mãe para a criança. E será igualmente legítimo o aborto ainda que sequer haja conhecimento sobre estar ativa a infecção da mãe no sentido de implicar em risco de transmissão vertical. E será ainda idôneo o aborto quando, comprovadamente, conforme o atual conhecimento científico, não há qualquer risco para o feto.
Trata-se, portanto, de tentativa de possibilitar o aborto em situação que forneceria um precedente forte e razoável para o abortamento quase geral, dado que bastaria a mãe padecer de qualquer doença durante a gestação, mesmo que não haja nenhum risco ao feto, para recorrer ao aborto. O Dr. Paulo assim demonstra tal situação trazendo em anexo em sua manifestação o seguinte quadro esquemático em que o aborto seria requerido:
Situação da Mulher Grávida | Risco de Microcefalia para o Feto | Pede-se a Liberação do Aborto | Apresentação de Fundamentos para o Pleito | Risco de Aborto de Fetos Saudáveis |
Mãe nunca infectada pelo Zika | Não | Não | *** | *** |
Mãe infectada no passado, antes da concepção | Não, até onde se sabe | Sim | Não | Total. Aborto de fetos saudáveis apenas |
Mãe infectada no passado, antes da concepção, e reinfectada na gravidez | Não, até onde se sabe | Sim | Não | Total. Aborto de fetos saudáveis apenas |
Mãe infectada nas últimas semanas da gravidez | Não, até onde se sabe | Sim | Não | Total. Aborto de fetos saudáveis apenas |
Mãe infectada nas últimas semanas da gravidez e não identificadas alterações orgânicas no feto | Não, em princípio | Sim | Não | Total. Aborto de fetos saudáveis apenas |
Mãe infectada na gravidez, sem comprovação de alterações fetais | Sim, variável conforme o período de infecção | Sim | Sim | Sim, maior, inclusive, do que o de o aborto atingir fetos microcéfalos |
Mãe infectada na gravidez, com comprovação de alterações fetais (no atual estágio da ciência, essa constatação só poderá ser feita quando a gravidez estiver avançada) | Sim, dano apurado inclusive (no limite da segurança dos exames hoje existentes) | Sim | Sim, salvo no que toca à aviltante desumani-dade de se abortar fetos em avançado estágio de desenvolvimento | Não, no limite da segurança dos exames hoje existentes |
Não ocorre certamente à requerente a pergunta: Por que optar pelo fim da vida do feto sem enfermidade e não pelo fim da vida da gestante que está enferma? Por que eliminar uma vida saudável ao invés da não-saudável? Uma resposta sincera revelaria a arbitrariedade eugênica de dar cabo a uma vida pelo simples fato de ser acometida por um fato natural a todo ser vivo, a saber, a doença.
DA SOLUÇÃO EUGÊNICA DA ANADEP
Subjaz ainda às razões da requerente, segundo o Dr. Paulo, uma solução que se mostrará eugênica e discriminatória aos deficientes físicos, pois bastaria que uma doença com potencial para afetar a saúde do feto para eliminar-lhe a vida:
173. Nesse diapasão, fetos com deficiências físicas (espinha bífida, ausência de um dos membros etc.) ou mentais (Síndrome de Down, p. ex.) poderiam ter sua vida intrauterina interrompida. Onde existe a mesma razão (feto deficiente), deve existir o mesmo direito (aborto). Se um feto acometido de microcefalia pelo vírus da zika pode ser abortado, nada poderá impedir que um nascituro portador de alguma deficiência comprovada por meio de exames de ultrassom tenha o mesmo destino. Afinal, inexistem políticas públicas ou estas são muito precárias para praticamente todas as deficiências.
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
O que se demonstra patente nas pretenções da ANADEP é firmar o Poder Judiciário como instância legislativa ao não conseguirem seus tentos pelo Congresso Nacional. Sabe-se que o Judiciário é a nova “galinha de ouro” da cultura da morte no Brasil, pois, dada a formação neoconstitucionalista dos nossos operadores do Direito, estes sentem-se como que juizes-filósofos capazes de penentrar a real vontade popular e os verdadeiros valores civilizacionais que a sociedade precisa. Neste sentido, é cirúrgica a intervenção do Dr. Paulo que aduz à separação dos Poderes:
Certamente, essa Corte haverá de ligar a devida importância a semelhantes fatores, que se conectam ao princípio da separação dos poderes, pilar estruturante do Estado moderno. Conquanto mitigado em relação ao perfil que detinha nas suas origens em Locke e Montesquieu, esse princípio deve servir ao menos para prevenir que o Judiciário se atravesse para superar as decisões do Legislativo em questões de elevada carga ética e que evidentemente envolvem conflitos de direitos fundamentais. Um pouco de autocontenção judicial é de se esperar e exigir, já que ninguém anseia por um governo judiciário nem por um feito de reis-filósofos.
Acesse na íntegra a manifestação da Associação Nacional Pró-vida e Pró-Família aqui.
[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2203415