“Ultimamente está morrendo gente que nunca morreram antes”, dizia minha avó com um humor à prova de balas.
A reflexão a seguir sobre a morte nos tempos atuais tende a nos fazer pensar na vida verdadeira, que é a que começa quando esta aqui de baixo termina.
Que Deus nos encontre confessados e,
Padre Javier Olivera Ravasi, SE.
A pandemia e o otimismo com pés de barro
Por Rubén Peretó Rivas*
Reflexões diante do insólito impacto emocional que teve a enfermidade na população planetária
Além de um imenso número de mortes, a COVID-19 deixará uma série de experiências sobre as quais vale a pena refletir. Entre outras coisas, chama a atenção o impacto emocional que produziu na população mundial, aumentado em muitos casos por políticos e governantes que utilizaram um discurso segundo o qual estaríamos atravessando uma situação inédita em toda a história da humanidade. A verdade é que não é preciso se remontar à peste de Justiniano do século VI ou a de São Carlos no século XVI. Há cinquenta anos a humanidade sofreu a pandemia de H3N2, deixando um milhão de mortos, e fazem sessenta anos da gripe asiática que deixou um número semelhante de fatalidades.
Por que, então, naquelas ocasiões recentes o mundo não entrou em estado convulsivo tal como se encontra agora? Ou melhor, por que na pandemia de 2020 o mundo reagiu de uma maneira tão brutal e drástica diante da aparição de um vírus, mesmo que custando a destruição de sua economia e ocasionando, deste modo, muito mais mortes que as produzidas pelo patógeno?
As razões são muitas, e vão do que é estritamente epidemiológica até o político. Mas o que me interesse aqui assinalar é uma razão que corre o risco de passar despercebida e que, contudo, indica algumas debilidades que a humanidade adquiriu nas últimas décadas.
MATURIDADE PRESUMIDA
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo inteirou começou a transitar para um lento, mas consistente, caminho até um otimismo não sempre justificado. Até mesmo a Igreja Católica, conservadora por natureza, convocou um concílio universal nos anos 60 a fim de abrir suas janelas para aerar e receber o homem novo que se avizinhava . Pareceria, com efeito, que o homem havia chegado finalmente a um estado de maturidade que o posicionava muito acima de todos seus antepassados. Se o final da Guerra Fria deu uma forte contribuição a este impulso, a queda do regime soviético transformou boa parte do globo, a partir dos anos 90, em uma sorte de estado de bem-estar universal. No mundo ocidental, o homem, como nunca antes, podia viver com um desmesurado conforto, bons salários e uma seguridade social que lhe permitia o acesso à saúde e a generosas pensões ao longo de uma prolongada velhice.
O frenesi dos avanços tecnológicos aumentou a sensação que os limites impostos pela natureza haviam sido vencidos: a expectativa de vida aumentava, podia-se viajar com facilidade e rapidez de um continente a outro e as comunicações superaram mesmo aquilo que era inimaginável. O homem até mesmo se constituiu como dono da vida e da morte, eliminando seus congêneres indesejáveis antes que nascessem ou quando já haviam vivido bastante, invocando para isso, em todos os casos – através da proeza da retórica – razões humanitárias.
O consumo, por outro lado, havia excedido amplamente seu contento inicial de sanar as necessidades naturais para se transformar no habitual provedor de felicidade, ou em um ruidoso substituto capaz de amansar as consciências.
A morte, embora não tivesse sido vencida, foi ocultada. Os costumes sociais eliminavam os períodos de dores, as empresas fúnebres eliminavam os cadáveres com as cremações. Os velórios foram encurtados ou desapareceram, e inclusive os funerais, mesmo os religiosos, adaptavam seus discursos que agora consistiam em “celebrar a vida” do defunto. Uma simples estratégia narrativa para dissimular a tragédia da morte.
A pandemia do coronavírus veio recordar ao homem contemporâneo a sua finitude. Quem pôs o mundo de joelhos não foi uma invasão de extraterrestres poderosos, mas sim um simples e invisível microorganismo. Para além de sua origem e de seu mecanismo de contágio e infecção, o vírus recordou-nos de um modo feroz a nossa fragilidade, que é muito maior e atual do que pensávamos.
A pandemia pegou o mundo de surpresa, e não somente porque seus sistemas de saúde não estavam preparados para enfrentá-la, mas também e sobretudo, porque ninguém esperava tamanho balde de água fria desta natureza, que veio arruinar as ilusões de um mundo feliz. O aumento do consumismo massivo, que nos tornou viciados, perdeu grande parte de sua efetividade. Os homens de 1968, quando atravessaram sua pandemia, tinham ainda fresco na memória a recordação dos horrores da Segunda Guerra Mundial, e inclusive da Primeira, que havia sido muito pior. Os homens de todas as épocas sabiam que as tragédias e catástrofes formam parte da vida. Para eles eram habituais as mortes frequentes e prematuras devido ao escassos avanços da medicina, também as pragas, guerras, fomes ou invernos implacáveis se amontoavam em sua memória pessoal ou social. O homem contemporâneo perdeu essas lembranças e, quando convidados a se lembrarem, as rechaçavam com força. Embriagou-se de otimismo. Todavia, o coronavírus nos demonstrou, para nosso estupor, que esse otimismo tem pés de barro.
*O Autor é professor da Universidade Nacional de Cuyo, investigador do Conicet e pesquisador convidado da Universidade de Oxford.
Fonte: Diario La Prensa