Os recentes questionamentos de Dom Athanasius Schneider à doutrina da liberdade religiosa reacenderam o debate sobre esse tema nos círculos católicos. Uns alegam que se trata de um inegável direito natural e que a doutrina da mera tolerância está superada, enquanto outros insistem que a Verdade não pode ser licitamente negada e que o erro, portanto, não pode ter o direito de existir, conquanto devamos tolerar os que insistem nele. Uma questão cuja resposta poderia certamente lançar alguma luz aqui é: Será que Jesus Nosso Senhor e seus apóstolos eram favoráveis ou contrários à liberdade religiosa?
Mas antes de tentar responder a essa questão, pensemos no que significa esta “liberdade religiosa” num nível teológico mais geral e eclesial:
Em primeiro lugar, parece que o chamado direito natural à liberdade de confissão ou crença só pode ser, de um ponto de vista teológico, algo relativo.
Digo que ele é relativo ao grau de manifestação da Verdade, ao quanto esta se dá a conhecer ao intelecto do homem.
É um direito que deixa de subsistir quando a Verdade, por sua própria força, se impõe à consciência. Ou seja, dependendo do quanto a Verdade se mostre, ela constrange o intelecto honesto a aceitá-la e este não pode se furtar a ela, não tem direito de negá-la.
Num exemplo tosco, quem olha para um pasto e identifica claramente que ali há vacas não tem o direito de declarar que são cabras, cangurus ou que não há animais naquele pasto.
Quem conhece a Verdade deve necessariamente admiti-la, está moralmente obrigado a isso.
E quem a ignora, i.e., quem não a conhece, ou quem sinceramente vê cabras onde há vacas por alguma deficiência visual ou mental, este tem, não o direito, mas a faculdade de estar no seu erro. Faculdade esta que é derivada, ao que me parece, da defectibilidade cognitiva do homem e do seu livre-arbítrio.
Enquanto faculdade, trata-se de algo que, logicamente, Deus faculta, concede e tolera, mas só em vista da nossa obtusidade atual, não como algo a que se tenha “direito”. Tal faculdade só perdura lícita até que a razão lhe mostre o contrário, isto é, até que a Verdade se imponha à razão.
Como Deus tolera o erro humano e deixa crescer o joio com o trigo, nós também temos o dever de tolerar quem erra e, mais ainda, de ajudá-lo, por todas as formas possíveis e eficazes, a alcançar à Verdade. Mas nunca podemos dar cidadania ao erro, ou seja, não se pode considerá-lo algo lícito e bom.
Assim, parece absurdo supor que haja um autêntico “direito à liberdade religiosa”. Isto equivaleria a proclamar um “direito à ignorância” – inclusive por preguiça intelectual – ou um direito de negar, deliberadamente, toda a Verdade, mesmo se conhecida ou suspeitada.
O que há, reitere-se, é uma faculdade de cada homem confessar aquilo que, honestamente, lhe pareça corresponder à Verdade, enquanto durar essa impressão. Ao passo que, sobre nós, pesa o duplo dever de 1) tolerá-lo caridosamente e 2) trazê-lo à Verdade.
Parece-me ainda que, tendo em conta o contexto eclesial em que se introduziu no Magistério católico o tal “direito de liberdade religiosa” – contexto de reiteradas tentativas de subversão da fé -, parece-nos claro que este tem sido, na verdade, um lavar as mãos, uma renúncia às missões e ao espírito apostólico, uma negação do mandato missionário dado por Nosso Senhor Jesus Cristo:
“Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado.” (S. Marcos XVI, 15s)
Sim. A doutrina da liberdade religiosa parece servir, hoje, como pretexto para uma abdicação do múnus missionário da Igreja. Presta-se a uma ampla e lastimável deserção deste sagrado compromisso.
Quantas grandes congregações e institutos missionários, após a disseminação desta doutrina insana, não cessaram quase que totalmente os esforços para converter os índios e outros povos não cristianizados?
Não nos enganemos. A Pachamama no Vaticano é a expressão acabada deste espírito da “liberdade religiosa”! Tal espírito afigura-se como um irenismo indiferentista e um gesto de cruzar os braços ante a negação de Cristo e a danação eterna das almas.
Ora, a adesão do Magistério ordinário à noção de liberdade religiosa é algo bem recente na História da Igreja e fruto de um clima em que era patente o influxo de um pensamento teológico liberal e progressista que, com suas tendências de “abertura”, claramente se afastou, em notório grau, das fontes católicas mais longamente confirmadas e seguras.
É hoje assombroso o número de fiéis batizados, muitas vezes até dentre os nossos familiares, que repete a cantilena de que “não importa a religião, o que importa é acreditar em alguma coisa”, ou “Deus é o mesmo em todas as religiões”, ou ainda “a pessoa tem que ter alguma religião, não importa qual”…
Este verdadeiro e nefando conceito que pressupõe a equivalência de todas as crenças, uma noção tão irracional quanto disseminada e popularizada, é um produto direto do subversivo “espírito do concílio” e da doutrina modernista da liberdade religiosa.
Compreende-se que, como Dom Athanasius alude, a Igreja atualmente se vê obrigada a aquiescer, no âmbito político, com o Estado liberal e suas políticas de consenso, a fim de não acabar, ela própria, privada dos seus direitos. Inclusive o direito ao anúncio da Verdade. Neste foro, ela é, portanto, pragmaticamente coagida a preferir a liberdade religiosa ao ateísmo estatal. Até aí, trata-se, porém, de um assentimento meramente político, de uma concessão ao poder secular a fim de que este não inviabilize a missão da Igreja entre as nações.
Porém, muito mais obrigada ela é, no âmbito interno, a declarar e se mobilizar pelo anúncio e defesa da única Verdade religiosa que lhe foi revelada! Seu ensinamento teológico e seu espírito missionário não podem ser outra coisa que não exclusivamente católicos! No campo propriamente religioso, tem ela o dever de sempre combater o erro e reafirmar os princípios que sempre fizeram parte do seu depositum fidei!
Não parece legítimo, portanto, que se promova o “direito à liberdade religiosa” como se tem feito. Na verdade, soa até como traição, quero dizer, como renegação do seu Divino Fundador!
É como se o apóstolo São Pedro estive novamente negando que conhece Aquele que declara: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. NINGUÉM vem ao Pai senão por Mim.” (S. João XIV, 6)
Se houvesse direito de liberdade religiosa, Nosso Senhor não teria exprobrado as cidades que, mesmo testemunhando os Seus sinais, não quiseram acreditar e se penitenciar:
“Depois Jesus começou a censurar as cidades, onde tinha feito grande número de seus milagres, por terem recusado arrepender-se: Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque se tivessem sido feitos em Tiro e em Sidônia os milagres que foram feitos em vosso meio, há muito tempo elas se teriam penitenciado sob o cilício e a cinza. Por isso vos digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Tiro e para Sidônia que para vós! E tu, Cafarnaum, serás elevada até o céu? Não! Serás atirada até o inferno! Porque, se Sodoma tivesse visto os milagres que foram feitos dentro dos teus muros, subsistiria até este dia. Por isso te digo: no dia do juízo, haverá menor rigor para Sodoma do que para ti!” (S. Mateus, XI, 21-24)
São Paulo nos recorda que as farsas religiosas devem ser abertamente condenadas e denunciadas como tais:
Eu te conjuro em presença de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, por sua aparição e por seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, ameaça, exorta com toda paciência e empenho de instruir. Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas.” (II Timóteo IV, 1-4)
“Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado!” (Gálatas I,9)
Mesmo quanto aos antigos pagãos romanos, que sequer tinham ouvido falar de Cristo ou de Moisés, São Paulo sugere que também eles tinham a obrigação de reconhecer e confessar a Verdade:
A ira de Deus se manifesta do alto do céu contra toda a impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça aprisionam a verdade. Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles o lêem em si mesmos, pois Deus lho revelou com evidência. Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar. Porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato. Pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos. Mudaram a majestade de Deus incorruptível em representações e figuras de homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis.” (Romanos I, 18-23)
Da mesma forma, o príncipe dos apóstolos não propõe um falso “ecumenismo” junto aos que promovem heresias, mas adverte os fiéis a respeito deles, em prol da salvação do rebanho que Cristo lhe confiou:
“Assim como houve entre o povo falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres que introduzirão disfarçadamente seitas perniciosas. Eles, assim renegando o Senhor que os resgatou, atrairão sobre si uma ruína repentina. Muitos os seguirão nas suas desordens e serão, deste modo, a causa de o caminho da verdade ser caluniado. Movidos por cobiça, eles vos hão de explorar por palavras cheias de astúcia.” (II Pedro 2, 1-3a)
Assim, parece-nos claro que o “direito à liberdade religiosa”, nos termos em que ele é hoje pregado, é uma invenção moderna¹, de raiz filosófica simplesmente liberal² e muito estranha ao santo ensinamento de Jesus e seus apóstolos. Portanto, não nos é lícito favorecer ou conferir legitimidade às heresias. Devemos ter caridade e paciência para com os hereges, isto sim, mas Cristo não sofreu, morreu e ressurgiu para que nos arrogássemos o “direito” de considerar dispensáveis a sua Palavra e a reta interpretação dela.
¹ Aliás, quase todos os “direitos humanos” subjetivos o são. Para os antigos e medievais, os direitos alheios como que derivavam dos deveres próprios. Assim, no caso aqui em questão, não é que o herege tenha direito ao seu erro, mas nós é que temos o dever de tolerá-lo, assim como o de convertê-lo, se nos for possível.
² Encontramo-lo em John Locke, por exemplo, que advogava pela liberdade de culto como um direito, mas o negava ao islamismo e, claro, ao catolicismo…