Diante do caso do aborto realizado em uma menina de 10 anos estuprada pelo tio, muitos católicos ficaram perplexos diante do relativismo reinante não apenas do lado abortista, os arautos da cultura da morte, mas também de conservadores e de cristãos. “Como pode – perguntam – relativizar e aceitar o aborto neste caso?” É aquela coisa de “dos esquerdistas nós até já esperávamos; dos liberais, também. Mas como podem os conservadores e, o pior, os cristãos se posicionarem a favor do aborto neste caso?” Esta dúvida que pude perceber no ar durante esses dias de debate é o que vou tentar responder aqui.
A raiz do problema é que as pessoas a favor do aborto – seja da direta ou esquerda, seja consciente ou inconscientemente – não conseguem perceber que o aborto é um crime mais grave que o estupro. No fundo, a confusão reside neste detalhe. Ambos, aborto e estupro são crimes graves, todavia, ao invertem a hierarquia moral do crime, considerando o estupro como sendo mais grave que o aborto, defendem o absurdo a que foi submetida a menina de 10 anos.
Deste modo, podemos mudar a pergunta. Como é possível que possam considerar o crime de estupro como mais grave que o de aborto?
A resposta é tão simples quanto chocante ao homem moderno: a régua moral utilizada é o sexo livre. No fundo, quem defende o aborto ou o relativiza nos casos de estupro está defendendo os “valores” do sexo livre. Detalhe: neste aspecto, não há diferença essencial entre direita e esquerda, a diferença é meramente de grau. Enquanto os esquerdistas querem promover os anti-valores da Revolução Sexual até às últimas consequências, os ditos conservadores, que não deixam de considerar a Revolução Sexual como fruto de uma certa “evolução social”, preferem apenas a aceitação mais moderada dos anti-valores. É por isso que consideram um exagero, por exemplo, o aborto em todos os casos ou a ideologia de gênero, mas não se opõe ao aborto em caso de estupro ou ao “casamento” gay. É por isso que dizem defender a família, mas são a favor do divórcio… Enfim, no caso desses conservadores estamos diante da famosa hipocrisia burguesa.
É justamente por concordar com as premissas do sexo livre que a direita dita conservadora que está aí não será capaz de fazer frente ao avanço das bandeiras progressistas. Podem até fazer certo barulho e atrapalhar, mas será incapaz de impedir este avanço.
E qual foi a grande inversão realizada pela Revolução Sexual?
Ao defender o sexo livre, a Revolução Sexual – hoje hegemônica – conseguiu impor a idéia de que o sexo vale mais pelo seu prazer do que pelo seu fim procriador. Sob esta lógica hedonista, é possível compreender por que se realiza a inversão de considerar o crime de estupro como mais grave que o de aborto.
Diante da mentalidade promíscua (no caso dos esquerdistas) ou cripto-promíscua (no caso dos direitistas), considera-se o estupro grave porque há uma quebra no consentimento sexual, que para o homem moderno é a única régua moral para a questão sexual. Sexo livre sim, mas sempre com consentimento, é o que defendem (reducionismo liberal na veia). Sem o consentimento, apela-se para o uso de violência e, deste modo, aquela experiência que deveria ser de prazer e “felicidade”, transforma-se em dor e sofrimento.
O raciocínio não está de todo errado, mas a visão católica é mais madura, ordenada e profunda. Para o sexo ser moral, não basta o consentimento, mas deve ser feito no âmbito de compromisso familiar, ou seja, após o casamento. Longe de ser um moralismo religioso, trata-se de um princípio da lei natural. Sendo assim, o estupro é de fato grave porque se utilizou de violência para realizar um ato não autorizado, quebrando o necessário consenso, e também porque se feriu a pureza pessoal e familiar (caso a vítima seja casada). E acima disso tudo, para além do aspecto social, sendo inclusive o mais importante, é uma ofensa a Deus.
Enquanto o estupro é paradoxalmente grave para os defensores do sexo livre (radicais ou moderados, conscientes ou inconscientes), o mesmo já não é bem assim no caso do aborto, isto é, de assassinar um bebê. Por quê? Porque neste caso o espírito hedonista fará uma distinção: existe a gravidez desejada e a indesejada. Na gravidez desejada, “ótimo, tenha-se o bebê”. Na gravidez indesejada, “deu ruim, aborta”. Como assim abortar? Ora, se o principal do sexo é o prazer, o bebê resultante de uma dita gravidez indesejada será tido como um “efeito colateral” e, portanto, o “remédio” está em não tê-lo. Eis, pois, o que está por trás da famosa opinião (não é sequer argumento) de dizer que “se a pessoa quiser abortar, aborta; se não quiser, não aborta”. Eis a hipócrita pseudo-neutralidade.
Isso tudo é a inversão moral que o sexo livre criou. Acrescentaria ainda o “cálculo do sofrimento”, que é outro tipo de “argumento” (que na verdade é um sentimentalismo não objetivo) bastante em voga nesse tipo de debate. Ele não deixa de ser outra linha de atuação da lógica hedonista (fugir da dor, buscar o prazer). E mesmo cristãos que não defendem explicitamente o sexo livre costumam cair nesse tipo de lógica, sinal de que não estão conseguindo perceber os sinais dos tempos. Não é à toa, como bem ensina o Pe. Lodi, que não basta o combate ao aborto em si. Este, embora imprescindível e importante, deve estar acompanhado do combate ao relativismo e aos anti-valores promovidos pela Revolução Sexual: pornografia, masturbação, contracepção, etc. Afinal, a defesa do aborto, seja explícita (esquerdistas/progressistas) ou envergonhada (conservadorismo/nova direita), esconde a defesa de certo grau de sexo livre e, portanto, a promoção da mentalidade hedonista. A moral católica, a que poderia mais perfeitamente ser o escudo contra o aborto, porque respeita a lei natural e, sobretudo, a lei divina, é simplesmente vista como anacrônica por todo mundo.
Daí que um efeito curioso é que nós, católicos, sejamos frequentemente atacados como hipócritas e fundamentalistas. Se há hipocrisia, ela está do lado aburguesado que, munido de moralismo superficial, estando o sexo livre ameaçado em sua base, racionaliza para defender o aborto, embora digam que, na maioria dos casos, são defensores da vida. O importante é sair bem na fita.
Do lado esquerdista, nem se fala, pois é próprio de sua mentalidade considerar a mentira como virtude se for em defesa da sua causa ideológica, ou seja, no esquerdismo a hipocrisia é uma virtude!
E o que dizer do fundamentalismo? Neste caso a vergonha alheia fica maior. Experimente-se criticar algum político de estimação que logo veremos o fundamentalismo das ideologias entrarem em ação, os iluministas políticos não irão deixar barato. Critique uma personalidade de direita: lá estará o fundamentalismo direitista; critique uma pauta de esquerda: lá estará o fundamentalismo esquerdista (hoje em plena defesa da cultura do cancelamento, haja fundamentalismo). Da parte católica só resta responder com o esclarecimento de que a defesa da lei natural não é fundamentalismo, mas respeito à realidade das coisas. É só quem distorce a realidade que precisa de fundamentalismo, pois não há outra maneira de defender o indefensável. Neste caso, estamos falando do assassinato de um bebê de 5 meses.