Nesta palestra, o Prof. Guilherme Freire mostra as raízes filosóficas do Liberalismo e do Socialismo e explica, de modo mais profundo do que normalmente se está acostumado a ver no debate político, o porquê da Revolução não deixar de crescer mesmo com a alternância de poder nas democracias liberais.
Palestra realizada em 11/01/2020, onde se comemorava o aniversário de 2 anos do Instituto Santo Atanásio.
Quero agradecer o convite do Instituto Santo Atanásio, pois é sempre uma alegria poder falar em qualquer evento da Liga Cristo Rei. Coloquei como regra sempre aceitar os convites da Liga – se me chamarem para ir a Manaus, vou tentar ir se tiver as possibilidades mínimas -, porque é uma causa importante e deve ser relevada na hora de eleger as prioridades. Eu vejo que a Liga se propôs a definir o catolicismo em um contexto que é urgentemente necessário, de uma maneira clara e sem desculpas.
O que pensei em trazer para esta palestra são algumas das fontes que formam o socialismo, algumas das fontes que formam o liberalismo e um início da resposta da Doutrina Social da Igreja. Portanto, serão três etapas.
Primeiro vamos falar do Socialismo. Quais são suas origens filosóficas?
Karl Marx foi um dos principais teóricos do socialismo, uma das figuras que mais impactou o mundo de hoje. Ele foi influenciado por diversas fontes, mas o seu livro de cabeceira era de Rousseau. A tese de Karl Marx foi sobre Epicuro, que era materialista, sua formação acadêmica foi na escola de Hegel, e tinha Rousseau como livro de cabeceira. Só nisso já temos três fontes.
Qual era a visão de Estado e de Política de Rousseau?
É curioso Rousseau ser tido como iluminista, os idolatras da razão, quando o ensaio que o tornou famoso foi justamente contra a razão e em defesa dos sentimentos. Inclusive, a tese de Irving Babbitt em “Rousseau e o Romantismo” é a de que Rousseau foi o pai do romantismo, porque defendeu o sentimento como aquilo que deve ter vitória sobre a razão. É interessante fazer esta observação, porque os iluministas, sobretudo os franceses, possuem o estereótipo de colocarem a razão acima de tudo.
Rousseau tinha uma noção de que o homem tinha um estado de natureza, cuja potencialidade permitiria que, uma vez em contato com a natureza, poderia exceder suas capacidades. Pelo aparecimento de dificuldades naturais, o homem iria consolidando e vencendo tais dificuldades.
Já a sociedade corromperia o homem na medida em que instituiu a propriedade privada. É a frase célebre de Rousseau, a de que o primeiro homem colocou uma cerca e disse “isso é meu” e a partir disso tudo começou a ser prejudicado.
A visão de que havia um homem em um estado natural, mas que foi perdido por causa da propriedade privada não pára nisso. Na visão de Rousseau, a propriedade privada geraria no homem uma vontade individual. Isso seria um problema, porque a vontade individual estaria contraposição à compaixão, que será construída como vontade geral. Ou seja, de um lado temos a vontade individual que surge quando o homem estabeleceu a propriedade privada, o que fez mudar sua maneira de pensar, fazendo o homem perder o interesse pelo bem social e pela compaixão; de outro, a vontade geral que seria uma vontade abstrata do coletivo, que seria vagamente uma vontade do bem comum, mas que não o é porque Rousseau era um tremendo nominalista, de modo que a vontade geral é entendida como uma força de supressão das vontades individuais.
E quem dirá qual é a vontade geral? Uma classe de iluminados – é neste momento que entraria a valorização da razão, mas que seriam de pessoas que viram o limite da razão e aprenderam a vencer suas vontades individuais – que vão se juntar para impor a toda sociedade a abolição de suas vontades individuais e a vida em retorno a um estado natural, o cultivo do sentimento de compaixão e, disso, a abolição da razão conforme entendida de maneira clássica.
Sendo assim, na educação os filhos devem ser retirados dos pais. Costuma-se criticar Rousseau pela incoerência de ter tido vários filhos com sua empregada, colocado todos para adoção e depois ter escrito um livro de educação. É uma incoerência de um lado, mas uma coerência de outro, pois no livro ele diz para fazer justamente isso, pois a retirada dos filhos dos pais contribuiria para que as crianças fossem forçadas a perder a vontade individual e, portanto, a família não poderia ser a educadora dos filhos. É dessa tirânica vontade geral que o preceito da educação será baseado.
Detalhe: todo o nosso sistema educacional é baseado em Rousseau. Isso deveria servir para ter o mínimo de medo. Hoje se fala muito de Paulo Freire, mas se perdeu a noção da origem das idéias. Um sistema educacional que impõe a abolição da vontade individual em favor de uma vontade geral é a idéia clássica de Rousseau. E esta idéia entrou na mentalidade socialista.
Outro elemento que Karl Marx pegou foi Hegel.
Hegel era um leitor voraz de autores gnósticos, que defendiam a salvação por meio de uma iluminação, em particular por uma tese chamada Deus dos Espelhos de um místico alemão chamado Jacob Böhme. A visão mística-gnóstica de Böhme era a de que Deus estaria conhecendo a si próprio. Então Deus desconhecia a si próprio, via o mundo como em espelhos e por meio destes ele vai se descobrindo.
Assim, a sociedade tem determinadas teses e, quando há uma outra que a contradiz (antítese), então Deus pode conhecer algo novo sobre si e então evoluir. É um Deus que estaria em constante evolução. Qualquer um que ler a Fenomenologia do Espírito de Hegel reconhecerá isso no Espírito Absoluto que vai se conhecendo.
A cada era que passa, vai ocorrendo este autoconhecimento do Espírito, e em uma se promete que ele vai se auto-realizar: a era do próprio Hegel. Esta influência mística de Hegel chega a Karl Marx, que concorda que o choque da tese com a antítese formando síntese (dialética hegeliana) e resultando em evolução. O problema da teoria, entretanto, estaria no detalhe de que Hegel não era materialista.
Antes de Marx, Feuerbach com seu ateísmo já fazia esta crítica a Hegel. Não poderia ser um Espírito, porque não poderia haver um auto-desenvolvimento do espírito que culminaria no ateísmo. Então o que Marx defenderá é que existe uma dialética material de luta de classes. Há uma forma de produção na economia que se choca com outra forma de produção, e a evolução ocorreria pelo choque das classes.
Karl Marx também foi influenciado por Epicuro, materialismo hedonista, donde formou uma visão de que o nominalismo mais clássico não era suficiente para satisfazer um nominalismo mais ateu (esta é a idéia fundamental, a discussão sobre ela daria uma outra palestra à parte).
Por fim, misturando essas três idéias: o materialismo, o rousseanismo e o hegelianismo, nós temos as bases da nossa educação contemporânea. Essas influências podem ser observadas em pedagogos como, por exemplo, John Dewey, cuja única diferença para Karl Marx é que a evolução não era seria dada pelo socialismo, mas pela democracia.
Vulgarmente, quando falamos de idéias socialistas, estamos diante de uma visão coletivista que, apesar das diferentes vertentes, passam pelas bases já mencionadas: a visão de uma história evoluindo e a visão de uma vontade individual que precisa ser suprimida em função de uma classe de iluminados que irá dirigir o mundo para a auto-realização. Assim, podemos dizer que o coletivismo representa a abolição da vontade individual em função de um todo evolucionista.
Diante disso, bastaria rejeitar a visão coletivista para ter a solução do problema? No século XX, quando os países marxistas começaram a ter uma força maior, outros países ocidentais pensaram ter a solução: a opção liberal como alternativa ao marxismo.
Esta opção, na realidade, remonta a uma história anterior ao marxismo. O liberalismo tem várias origens, mas a época essencial são os séculos XVI, XVII. Foi logo após o Renascimento é que a idéia liberal começou a ganhar força. Não é que tenhamos os pais das idéias liberais, mas assim como temos os mentores das idéias coletivistas, nós temos os mentores das idéias liberais.
O primeiro grande mentor da idéia liberal, um dos pais do liberalismo, foi certamente Guilherme de Ockham. Lutero, que também é um dos grandes pais do liberalismo, tinha uma conexão muito intensa com Ockham, pois era aluno de Gabriel Biel, que por sua vez foi aluno da escola de Ockham. Portanto, a conexão de Lutero com Ockham não foi longínqua nem teórica, mas direta.
Ockham fez uma revolução dentro da Igreja contra o papado e em aliança com os príncipes da Alemanha, defendeu uma pobreza radical e a abolição da Filosofia Tomista e do Direto Natural. Portanto, quando Lutero vai operar sua revolução, terá Ockham bem presente. De fato, ele colocou-se contra o papado e uniu-se aos príncipes da Alemanha para implementação violenta do protestantismo. É verdade que Lutero condenou massacres neste sentido, mas defendia que os príncipes da Alemanha assumissem seus papéis como chefes de igreja, isto é, como agentes da moral na sociedade. Não é à toa que Eric Voegelin, em História das Idéias Políticas, tem Lutero como um dos grandes pais do Estado Moderno na medida em que excluiu a autoridade da Igreja para que os príncipes começassem a dizer o que seria ou não moral.
O problema é que o nominalismo afirma a não-realidade dos universais. À medida que se é nominalista, o direito natural vai sendo excluído. Ora, se o direito natural for excluído, alguém terá que ditar o que é certo e errado. Se não pode ser a Igreja – e tradicionalmente, na Europa, o natural seria a sucessão apostólica, por ser uma tradição que remonta à Cristo -, sobra quem? A autoridade do professor, que é a autoridade do pastor, e a autoridade do príncipe. Enfim, é o príncipe agora que falará o que é o certo e o errado, o moral e o imoral. Tal é a consequência lógica do processo nominalista iniciado por Ockham.
Na visão clássico-medieval, a Tradição da Igreja é o Corpo Místico de Cristo na História. Portanto, a Tradição é viva e remonta aos Apóstolos. Eles tinham a linha muito bem estabelecida de como a fé lhes chegou. Tinham também uma visão de submissão ao Papado que vem desde a Igreja primitiva. Santo Inácio de Antioquia, bispo, por exemplo, quando se dirigia a outros cristãos, escrevia em um estilo pastoral, de ensino, mas quando se voltava ao Bispo de Roma, tomava uma postura filial, de um filho que espera que o pai lhe ensine. Vale a pena citar alguns exemplos de doutrinas católicas que já estavam presentes nos primeiros documentos da Igreja primitiva: Primado de Pedro, Presença Real na Eucaristia, condenação do aborto, etc. Tudo isso torna o projeto protestante de resgate à Igreja primitiva muito peculiar.
Com efeito, na medida em que se exclui a sucessão apostólica como baliza para a leitura das Sagradas Escrituras, substituindo-a pelo livre-exame das escrituras, este livre-exame vai tornando-se o exame individual. Não se olha mais para o Corpo Místico de Cristo na terra (Tradição da Igreja) para entender as Escrituras, mas para o meu exame, para minhas luzes particulares.
Ou seja, a controvérsia da Igreja com Lutero não reside naquelas historinhas de que “a Igreja não queria que as pessoas lessem a Bíblia”. Não é isso, mas sim uma questão muito mais profunda de como se lê a Bíblia: se é lida segundo à luz de uma Tradição ou se é lida em um exame pessoal.
Ora, pelo exame pessoal, as possibilidades são variadas, a ponto de poder ter uma igreja para cada pessoa. Se é verdade que existem muitas igrejas protestantes, também é verdade que ainda podem haver muito mais, pois, ao não considerarem a infalibilidade papal e à Tradição da Igreja, as opções pelo livre-exame são infinitas, e as igrejas protestantes poderão continuar rompendo umas com a outras.
Tal processo é uma das origens do liberalismo, porque é a leitura do nominalismo face às Escrituras.
Outra leitura é a da liberdade dos fiéis face ao corpo social.
Diante disso tudo, é possível entender por que Lutero é um dos pais do liberalismo à esteira de Guilherme de Ockham.
Outra fonte posterior e importante do liberalismo são os ingleses que vão beber muito da tradição nominalista. Disso, surgirão vários teóricos liberais, sendo John Locke um deles.
Em uma revisão histórica, Jock Locke é um nome famoso, porque foi ele o criador do primeiro partido liberal (Whig Party), que serviu de modelo para a criação de outros partidos políticos, ou seja, havia todo um interesse político muito bem definido.
Aliás, via de regra, quase todas as pessoas que têm um projeto político muito bem definidos possuem interesse mesquinhos. Por exemplo, não é que Guilherme de Ockham formulou aquelas idéias contra o papa e depois foi viver na pobreza extrema. O que ele fez, na verdade, foi viver nos palácios dos príncipes alemães. Lenin, outro exemplo, não fez a revolução russa e foi morar no campesinato. Pode-se ver nesses movimentos de revolução a corrupção da natureza humana.
A Inglaterra de John Locke já havia bebido bastante do espírito do livre-exame. Inclusive o cisma protestante na Inglaterra foi algo bem insano. A este respeito, há um dos melhores filmes que existe O Homem que não vendeu sua alma, onde Thomas Morre faz frente ao cisma com cenas maravilhosas. Em relação ao tema do liberalismo, este filme é fantástico.
Locke tinha uma visão contratualista que ditará muito o tom do liberalismo posterior. Para John Locke, o homem nasce como uma tábula rasa. Tal consideração também deriva do nominalismo, pois na medida em que não se tem as estruturas reais para poder ser percebidas pela natureza humana, o mais simples é postular que o homem nasce vazio.
Diante das guerras de religião que queria resolver, ele pergunta: o que temos em comum? E a resposta é que nascemos todos vazios. Este vazio seria o nosso estado de natureza, de modo que o que nós fazemos é um pacto social, que é a sociedade, onde abrimos mão de parte daquela liberdade originária que nós tínhamos em favor de um Estado. Mantém-se, porém, o núcleo comum a todos, que é vazio.
A sequência de John Locke no desenvolvimento desta idéia é interessante. Ele pregava a tolerância – e isso está em prática, a todo vapor, ainda hoje, sendo praticado por todo o establishment jurídico do Brasil. Ele pregava a tolerância para todos, menos para os católicos. Isso está realmente escrito no livro dele: todas as coisas podem ser toleradas, exceto o catolicismo. O que faz todo o sentido, não é tão incoerente quanto parece, porque ao aceitar o catolicismo, vem junto toda uma bagagem teológica e filosófica que é realista, quebrando assim o esquema Lockeano, pois tal esquema está baseado em um individualismo em que todos são vazios e, com isso em comum, deve se decidir o que fazer por convenção.
No catolicismo não há como o individualismo de Locke prosperar, porque na doutrina católica há uma natureza humana, se pode aprender coisas sobre a natureza humana e tudo isso com uma Tradição de suporte. Diante da doutrina católica, simplesmente não tem como a visão liberal se sustentar. Então que se tolere as igrejas protestantes, pois todas praticam o livre-exame; as diversas culturas, pois todas variam de algum modo… No entanto, o catolicismo não deve ser tolerado. Isso é parecido com a posição que Lutero tinha em relação ao tomismo: Aristóteles e Santo Tomás de Aquino não.
Ao suprimir a noção de natureza humana, o liberalismo de Locke também distorce a noção de liberdade. Para o liberalismo, a noção de liberdade é entendida de uma maneira completamente diferente em relação à tradição tomista e católica. Nesta tradição, a liberdade diz respeito à natureza humana, todavia, se a natureza humana é uma tábula rasa, já não estamos falando de um mesmo tipo de liberdade.
O que seria esta liberdade liberal? É algo que inclusive possui semelhanças com Rousseau. Seria a liberdade de um estado natural, uma liberdade nominalistamente entendida. É a liberdade de ter nascido vazio, no sentido que se soltar algo no espaço, ela vai começar a se mexer, de modo que eu preciso restringir ela para um “bem” social. Solto, poderia se fazer qualquer coisa, então o Estado precisa colocar as amarras para impedir que se cause o mal para os outros. É esta a noção de liberdade que será difundida através dos liberais.
Aceitando esta noção de liberdade nominalista, a consequência lógica inevitável será o relativismo moral. Portanto, a liberdade liberal sempre é sinônimo de libertinagem. Não pode ser outra coisa, porque não possui um código moral definido.
Até mesmo os libertários contemporâneos, quando irão falar de lei natural, não sairão desta lógica. Murray Rothbard, por exemplo, até diz que existe lei natural, mas qual é o ponto da lei natural que existe? Trata-se do princípio da não-agressão. E só isso. Ou seja, é a mesma resposta de Locke já tinha dado, porque para se fazer um contrato social, o limite da minha liberdade deve ser a liberdade do outro. Todos os outros conteúdos da lei natural são sumariamente banidos, porque no fundo continua se tratando de uma visão nominalista de liberdade.
Muito diferente é a visão católica. Nela, se a liberdade não estiver definida de acordo com a verdade, deixa de ser liberdade. E o homem pode facilmente destruiu a sua própria liberdade, porque o vício e o pecado retiram a liberdade do homem quando são vividos intensamente. Já as virtudes, por outro lado, oferecem ao homem várias possibilidades, pois mantém a liberdade.
O homem que acorda cedo e é bom para os outros pode fazer muitas coisas no mundo, enquanto o que é bêbado, não consegue fazer outra coisa senão ser bêbado. Será a mesma coisa com qualquer outro vício, enquanto as virtudes oferecem ao homem possibilidades de ações variadas.
Portanto, na visão clássica, é nas virtudes que a liberdade floresce; no vício, acaba.
Na visão lockeana e ockhamista, a liberdade é confundida com a possibilidade de ação. No fundo, tudo isso reside em uma grande confusão de linguagem. O pai diz ao seu filho “não pode fazer isso”, e o filho responde “eu posso sim”; “você não pode bater no coleguinha”, e ele responde: “eu posso”. Ocorre que a palavra pode/posso é dita em dois contextos diferentes. O pai falou no sentido tomista, “você não pode” em um sentido moral, de lei natural, porque é errado bater no colega. A resposta do filho, por outro lado, foi no sentido de liberdade nominalista: “eu posso sim”, no sentido de poder, de ter capacidade para fazer isso. E o que John Locke vai dizer a respeito disso é que o filho não pode bater no colega, por quê? Porque o Estado disse que não pode. É a mesma mentalidade que havia em Lutero, é o Estado que vai falar o que pode e o que não pode.
E o que sobra?
Disso tudo o que sobra é a experiência empírica, pois já que somos tábulas rasas, deve-se fazer determinados experimentos para tentar chegar a uma verdade probabilisticamente seja melhor. Usa-se o método científico para chegar ao mais provável para poder ter algo em que se basear.
Assim, Locke foi a semente para Hume, que foi muito mais radical, chegando a afirmar que não existe causalidade. E também o positivismo vai beber da fonte dessa linha liberal, reduzindo o conhecimento a só aquilo que pode ser conhecido cientificamente.
No Brasil de hoje, nós fomos reduzidos 100% ao contratualismo. É muito difícil achar um pensador do direito no Brasil que não tenha essa visão contratualista, a visão de que “você pode fazer tudo o que quiser da sua vida, contanto que o Estado não balize o que você pode ou não fazer”. O Estado, portanto, se tornou o norte máximo das coisas.
Então podemos perceber o seguinte paradoxo. O que o Liberalismo irá pregar? O individualismo. Por sua vez, este individualismo possui uma ética utilitarista – faça o que será melhor para você! Já o coletivista defenderá uma ética utilitarista, mas coletiva: faça o que é melhor para a maior quantidade de pessoas. Seja como for este “faça o melhor” significa aquilo que dá mais prazer com menos esforço. No caso do liberalismo, mais prazer ao indivíduo; no coletivista, ao coletivo.
Vamos analisar brevemente as duas visões.
Na ética, temos o liberal sendo utilitarista-individualista: o que traz mais prazer ao indivíduo, é o que traz mais prazer ao todo. Por sua vez, no utilitarismo-coletivista o que temos é: aquilo que traz mais prazer para o todo é o que traz mais prazer ao indivíduo. No fim, essas duas visões éticas acabam se unindo.
Do ponto de vista do direito – reparam na contradição da coisa, como é algo bem peculiar. No liberalismo, temos que eu determino o direito para mim. Todavia, quando houver conflito com o outro, será preciso que alguém balize tal conflito. Então será a autoridade estatal que fará isso. Portanto, por mais que o liberal não deseje, seu mindset incita ao Estado resolver o problema de forma provisória, porque para ele não existe lei moral. Não há saída. Ou postula que da individualidade dele não haverá conflito, ou ele terminará concluindo que o Estado será o mediador do conflito.
Em suma, o liberal quer excluir o Estado para que tudo seja determinado pelo indivíduo, porém, em última instância, o raciocínio liberal promove a visão estatal.
Por outro lado, o raciocínio coletivista resultará em hedonismo pessoal, porque se não se está prejudicando o bem coletivo, o restante daquilo que se faz é problema individual, ou seja, cai-se no hedonismo pessoal.
Seja por qual via for, o hedonismo acabará prejudicando ao indivíduo e ao coletivo.
No fim, a visão de mundo liberal e a visão de mundo socialista confluem para o mesmo lado, tanto na ética quanto na razão do Estado.
É por isso que, na verdade, não existe nem o estado socialista e nem o estado liberal. Na modernidade, o que se tem é uma simbiose de capitalismo e socialismo. Todos os países estão tendendo a isso: China, Estados Unidos, Brasil… Mussolini e Hitler também eram essa simbiose.
Isso é assim porque a visão de base é a mesma. Primeiro se monta uma empresa, ela começa a crescer no livre mercado, a dominar e a comprar o poder político. A empresa une-se ao Estado, que é o balizador dos conflitos, percebendo que com dinheiro se consegue fazer o Estado falar o que será certo ou errado. E assim por diante. O fato é que a confluência entre socialismo e capitalismo é muito forte e, de fato, a tendência é os dois abraçarem-se na simbiose.
Trata-se de uma briga fake, pois na briga entre capitalismo e socialismo, quem acaba perdendo somos nós, porque nossa visão, que é a da Doutrina Social da Igreja, é outra.
Na Doutrina Social da Igreja, temos outra visão de natureza humana, outra visão de ética, outra visão de Estado e Filosofia. É uma visão realista.
Mas vejamos como estão as coisas… Falou-se da censura aos Porta dos Fundos. Pois bem. No Brasil, todo o sistema escolar foi construído pela Igreja Católica, mas hoje encontrar uma educação católica no Brasil será o esforço de procurar por toda uma vida para que se encontre meia-escola. O sistema universitário no Brasil foi criado pela Igreja Católica, mas não se vê mais catolicismo nenhum no ambiente universitário. A Alta Cultura inteira foi criada pela Igreja Católica, mas curiosamente ela sumiu: os crucifixos sumiram de toda parte, os símbolos católicos sumiram de todo negócio, a arquitetura católica sumiu das cidades, a história católica no Brasil – a formação com São José de Anchieta no Rio e em São Paulo fundando o país – sumiu. Ou seja, tudo o que é católico no Brasil já foi censurado.
Então, depois que toda a cultura católica foi censurada no país, um grupo comete vilipêndio religioso e um sujeito reclama disso. O que acontece? O sujeito é acusado de censura!
Reparem como a discussão desse tipo permanece no viés liberal-estatal. Dizem que “é perigoso se o Estado começar a falar o que é certo ou errado”. Porém, quem crítica a profanação ao Evangelho feita pelo Porta dos Fundos não está defendendo que o Estado seja o norte, pelo contrário, quem faz essa crítica tem um norte muito claro sobre o que é o certo e o errado, que é justamente o que está faltando em nossa sociedade atualmente.
Na verdade, os cristãos devem começar a perder o medo de se posicionar, porque a visão “isentona” (o que é o isentão? No fundo é o liberal com sua visão contratualista) de “vamos analisar tudo em pé de igualdade… Eles não podem te censurar e você não pode censurar eles” é irreal, simplesmente não existe pé de igualdade. Por exemplo, alguém já viu perseguição ideológica nas universidades? Via de regra, qual lado é perseguido? Percebe-se assim como é ridículo imaginar esse tipo de isonomia e igualdade em uma situação que é completamente assimétrica.
Além disso, a coisa não é igual. Por exemplo, tolerar o Islã não é a mesma coisa que tolerar o Catolicismo, porque o catolicismo lhe é superior. Só uma sociedade maluca poderia achar que catolicismo e islã, por causa de um princípio de tolerância religiosa, são a mesma coisa. Digamos que fossem a mesma coisa. Ora, nossos antepassados deram a vida para impedir que os muçulmanos entrassem na Europa. Se não fosse isso, não estaríamos aqui falando português e nem tendo esta palestra. E o que faz a Europa contemporânea? Tudo o que os muçulmanos passaram mil anos tentando, hoje em dia já não precisam por causa dessa tal isonomia. “Ele não é mais ou menos francês que você só porque é muçulmano”, ou seja, quem diz isso já não sabe mais o que é ser francês. Por essa lógica, Joana d’Arc morreu em vão… Toda a história da França, desde Carlos Magno, teria sido em vão…
A mentalidade isentona tem tudo a ver com a visão liberal, mas o pano de fundo disso é o relativismo em relação à política e à moral.
A visão liberal foi imposta pela maçonaria no Brasil. Isso é algo que preciso ser dito sem medo, porque quando entra a maçonaria nas discussões, não se pode falar mal, é como se nunca tivessem feito nada. Todavia, a maçonaria sempre esteve associada com a visão liberal de supressão da Igreja no Estado e na sociedade. Muitas das coisas que estão acontecendo hoje são porque a maçonaria fez. É possível perceber seus símbolos em vários lugares.
O fato é que no Brasil, a visão liberal começou a crescer quando houve a aliança de militares, maçons e liberais. Hoje estamos em 2020 e tem gente que acha uma boa idéia fazer uma aliança entre liberais, maçons e militares… O Brasil está nessa há quinhentos anos. Na época de Bonifácio, qual foi a aliança? Maçons, militares e liberais; na Proclamação da República, a mesma coisa. Apenas não aparece nessas histórias é a Igreja, que foi a quem fez o país de fato.
A maçonaria não fez outra coisa senão percorrer a Europa para destruir os países e transformá-los em “isentões”. Não se pode ter uma religião bem definida, deve-se ter uma visão equânime – até mesmo as bandeiras dos países se transformaram naquelas faixas de três cores -, deve-se ter uma visão de pé de igualdade, mas com um detalhe: todos iguais, menos os católicos, porque eles violam este princípio. Por conta disso, os católicos foram excluídos da educação e da política. Ainda hoje, mesmo o Brasil sendo de maioria católica, poucos são os deputados que sejam católicos convictos.
A visão liberal é aquilo que John Locke já havia anunciado: o homem vazio, Estado como balizador das coisas e a Igreja Católica como a única que não pode ser tolerada. Somando isso com a visão coletivista, pois, como foi dito, as duas se casam, o que está acontecendo há muito tempo no Brasil é a supressão do catolicismo nas suas várias esferas.
Estamos em uma situação onde os católicos se iludiram achando que, ao eleger os conservadores, estaria tudo resolvido. Não é este o ponto. Não se trata de colocar os conservadores no poder, porque muitos dos que se dizem conservadores não têm noção desse tema que estou falando aqui. Eles consideram-se conservadores, mas quando vai explicar sua visão, é um conservadorismo britânico, que é liberal, ou seja, estamos diante do mesmo princípio que está causando toda crise. Quando não é isso, é um positivismo. Enfim, é a conservação da revolução, a volta para o mesmo princípio da revolução.
Se subirmos, iremos reparar em um fenômeno interessante. Nos Estados Unidos, quantos conservadores já foram eleitos? Vários. E o que mudou na decadência dos costumes nos Estados Unidos? Quase nada. A decadência dos costumes só acelerou. Foi eleito Reagan, quase nada mudou; foi eleito Bush, que inclusive falava contra a pesquisa de células tronco, mas quase nada mudou; há o Trump agora… Não estou dizendo aqui que os conservadores não são melhores que a esquerda, claro que são, mas o fato é que mesmo elegendo a direita, a coisa permanece igual. Não conseguem reverter nenhuma bandeira na parte cultura, porque não sabem qual é o ponto nevrálgico. Eles não conseguem retornar a um ponto anterior à quebra nominalista, então as soluções que propõe permanecem dentro desse paradigma contratualista e nominalista, e assim nada muda.
Reparem, porém, que na Polônia não é bem assim. Foi diferente do que aconteceu nos Estados Unidos. Na Polônia, ao colocarem a direita no poder, a sociedade realmente começou a mudar. Eu não acredito que os poloneses sejam muito superiores intelectualmente aos americanos, mas por que esta diferença em relação às mudanças? Porque na Polônia o direcionamento foi realista-católico nas reformas. Ao agir estruturalmente na sociedade, colocou em xeque o paradigma contratualista liberal.
Os países europeus surgiram pela Igreja, através das Cruzadas. Também o Brasil, que é filho da Reconquista. Não é possível falar de Brasil sem reconquista. Antes dos portugueses chegar, tínhamos um monte de tribos em guerra entre si, sem língua comum, sem costumes comum e sem unificação territorial. O Brasil, como país, só passou a existir por causa da Igreja. Inclusive as línguas indígenas foram preservadas por causa da Igreja, pois os padres as aprendiam e anotavam para poder catequizar. Enfim, os países foram criados pela Igreja, mas o que a visão contratualista nos ensina? Que quando vem uma constituição nova, surge uma nova ordem jurídica, para então surgir o Brasil. E quando surgiu a ordem jurídica no Brasil? Com a constituição de 88… Ora, isso não existe, não é orgânico nem real, mas uma ficção em cima de uma realidade. O espírito e o modo como povo brasileiro se comporta jamais será explicado pela Constituição de 88. Mais: nenhum país pode ser explicado por constituição nenhuma.
Percebam que o paradoxo nominalista nos fez acreditar que leis determinam a realidade da natureza humana. Trata-se de uma supressão da natureza humana. É por isso que em alguns aspectos, o liberalismo pode ser mais perigoso que o socialismo, porque este dá na vista, percebe-se que é horrível, basta tentar gerir a economia para vê-la ruindo rapidamente. Estatiza tudo, as empresas quebram e mal se consegue fazer uma estrada, porque é o Estado que vai gerir e executar. Pelo menos no liberalismo, neste aspecto, há uma certa diluição.
Todavia, o que acontece no liberalismo sem a baliza da Doutrina Social da Igreja é que se libera a economia. Com a liberação da economia, terá livre competição e livre iniciativa, então todo mundo vai prosperar, certo? Bom, o que ocorre é que uma empresa crescerá em seu negócio e comprará os concorrentes. No fim, a empresa gigante comprará poder para ter poder sobre os outros.
Podemos avaliar o fenômeno que ocorre em Mad Max, onde não há estado e todo mundo é livre. O que acontece? O mais forte começa a mandar nos outros e passa a juntar mais combustível (este é o material de riqueza já que o dinheiro foi abolido), ou seja, o mais forte consegue juntar mais que os outros. A partir disso, fica um sistema parecido com uma Máfia (a máfia não precisa do Estado para existir), onde um líder passa a mandar nas pessoas que trabalham para ele. Dos trabalhadores, alguns crescerão mais e passarão a engolir os espaços dos outros, suprimindo-os. No fim, adquire-se um poder centralizador em relação aos demais; criou-se um Estado.
Ou seja, se acabássemos com o Estado, o que surgiria depois seria novamente um Estado, porque ele não é decorrência de uma ficção, mas uma ocorrência natural. E se não estiver balizado pela lei natural, será guiado pela corrupção dessa lei, que são as paixões baixas dos homens. Isso é algo que Platão e Aristóteles já sabiam. No entanto, por que hoje existem tipos como os anarcocapitalistas que defendem o fim do Estado? Porque eles estão pensando o Estado como uma ficção jurídica.
A tendência da abolição do Estado não resulta necessariamente na livre competição. Isso é um pressuposto falso, pois se pode amontoar poder e engolir os competidores. Com esse poder, pode-se ainda criar leis para os outros que querem começar.
Pode-se ainda objetar que o ambiente de liberdade vai se autobalizar, mas isso tampouco está correto, porque não são todas as pessoas que são boazinhas. Isso é possível de ver em Mad Max.
Então a idéia de que acabando com as regulações do Estado vai se gerar livre-competição é um erro. E aqui não se trata de cálculo probabilístico, mas de percepção da realidade, da realidade política e do mundo. Há um acerto na idéia liberal de que a livre competição e o empreendedorismo são coisas boas. De fato, são. Liberdade de comércio e de trânsito, são coisas boas. Todavia, quais são as balizas dessas coisas boas? O que garante que funcionem de maneira correta? É a moral! Porque sem a visão ética, não é possível impedir alguém de usar um poder que se foi amontoando para engolir, seja por vias lícitas ou ilícitas, os demais.
Portanto, o que permite a liberdade econômica é a moral e não a livre competição. Na máfia, por exemplo, existe liberdade de atuação. Qualquer um pode criar uma máfia competidora. Mas o que acontecerá? A máfia mais forte matará a máfia mais fraca. É assim que acontece no mundo real: a empresa mais forte engole a empresa mais fraca.
Não havendo baliza moral na sociedade, tudo vai virar Mc Donald’s. Eu já falei para um conhecido: “eu prefiro a tratoria da Santa Felicidade [bairro de aspecto italiano de Curitiba], é mais viva”. O Mc Donalds dos anos 80 pelo menos tinha um modelo de casinha, tentava produzir idéia de aconchego, mas o de hoje, onde tudo é baseado no feedback, na sua experiência, com cadeiras pequenas, máquina onde você faz o pedido apertando os botões… Já é algo de “Admirável Mundo Novo”. A qualidade desses sistemas baseados em feedbacks, em retorno, jamais terá a qualidade do tradicional, mas ganhará no lucro, porque se vai cortando gastos.
Quem domina a educação hoje no Brasil é a Kroton. Nela, às vezes não é nem um professor que é colocado, mas um ator.
Ou seja, as principais empresas de um setor não estão sendo dominadas pelas melhores, mas muitas vezes é pelas piores. Não se trata de dizer aqui que tudo o que a Kroton faz é ruim. Não é isso. O ponto é que não necessariamente o melhor é o que domina.
O erro liberal é antropológico, e se estende para a economia, já que a economia não existe dissociada da realidade do mundo. A idéia aqui não é ser contra que se tenha lucro na sociedade, pois o lucro é necessário para a sociedade funcionar. Não se está defendendo a abolição do lucro ou o fim da livre-iniciativa, mas justamente o contrário! Estou defendendo que exista a livre-iniciativa, porém o problema reside no fato de que o liberalismo não oferece as condições para que a livre-iniciativa aconteça.
E podemos ver isso no Brasil nos dias de hoje. Cada vez mais é mais difícil para os jovens adquirirem propriedades e se inserirem no mercado. Parece que todo mundo ficou mais pobre no Brasil. Acredita-se que é só se formar em engenharia, medicina ou direito para conseguir ganhar dinheiro e se dar bem, todavia está cheio desses profissionais passando fome. Comprar uma casa parece cada vez mais uma missão impossível, vide quantas casas vazias temos hoje aqui em Curitiba. Isso é assim, porque a dinâmica do sistema está viciada contra a pessoa.
Além disso, temos um sistema político onde as empresas compram os seus candidatos. Uma vez no poder, os candidatos eleitos favorecem essas empresas que os pagaram. É um negócio louco, de modo que não adianta dizer que se é um liberal e por isso se posiciona contra o socialista. Tal figura não existe. Quando a revolução comunista assumiu, no outro dia já havia empresas fazendo negociatas.
É meio ilusório essa divisão de liberal contra socialista. Na verdade, o que existe é uma visão tecnocrática, isto é, uma visão nominalista do Estado e uma visão natural, orgânica, da lei moral.
O debate liberal x socialista é muito esquisito. Se não, vejamos, por exemplo: até que ponto deveria haver regulamentação estatal em determinado setor para que funcione bem? Ora, mas tal debate proposto não é estrutural, mas pontual, de modo que é possível ter opiniões diferentes sobre setores variados. Por outro lado, adotando um princípio do liberalismo absoluto, chega-se a certas conclusões como, por exemplo, a liberação das drogas, cuja consequência será o rápido decaimento da sociedade.
Em resumo: tem coisas que são melhores do que outras. Basta esta afirmação para refutar o liberalismo, pois sua visão de fundo é que não há de melhor que o outro, já que o melhor é o que eu desejo fazer, e o que eu desejo fazer não é melhor do que o que o outro deja. Inclusive a Ayn Rand chega a defender uma visão louca em que a superioridade do egoísmo é posta acima do bem para os outros.
O que acontece é que o liberalismo, com seu contratualismo, criou uma ilusão na sociedade. Ele aparece como uma alternativa ao socialismo, mas é uma alternativa ilusória, porque enquanto continuar um se contrapondo ao outro, a sociedade continuará no mesmo ciclo. É esta a tese que eu coloco.
E o que poderia ir contra esse ciclo? Uma visão tomista baseada na Doutrina Social da Igreja. Esta sim seria a ruptura de fato, quebrando esse ciclo vicioso.