Antes de falar no tema, é preciso fazer um esclarecimento que todo moralista sério deveria conhecer; aqui estamos nos referindo ao tema da cooperação com o pecado de outro, um tema complexo de explicar.
Procurando ser o mais didático possível, precisamos dizer que a cooperação se define como o concurso físico ou moral à obra de outro, diferentemente do escândalo que consiste em um ato que dá ocasião ao ato mal do próximo.
1. Cooperação formal: Dá-se quando alguém coopera com a ação imoral de outro, compartilhando sua intenção e, portanto, pecando. Exemplo: duas pessoas roubam juntas um banco, tão ladrão é quem ameaça o caixa com o revólver quanto quem está vigiando para alertar a chegada da polícia. Alguns chamam a isso de cooperação “formal subjetiva”. É sempre ilícita.
2. A cooperação material imediata ou direta (ou cooperação formal objetiva): Consiste em facilitar o ato pecaminoso do outro, sem compartilhar de sua intenção pecaminosa, mas com um ato que não só contribui com o pecado, mas que também não poderia se dar em um contexto bom ou indiferente. Exemplo: o vendedor de revistas que, sem estar de acordo com quem consome pornografia, as vende; ou a mulher que, sem estar de acordo que seu marido use um preservativo, coopera com esse ato, que é errado desde o início. É sempre ilícita.
3. A cooperação material mediata ou indireta (ou cooperação material): consiste em facilitar a má obra do outro sem compartilha sua intenção, e com um ato que por si poderia se encontrar em um contexto bom ou indiferente. Aqui a clave reside no fato de que o agente principal abusa da ação de quem coopera. Exemplo: o caso de um vendedor que vende vinho para que outro se embriague, sem saber; ou quem empresta uma faca a um amigo sem saber que, com ela, matará sua mulher.
Sobre a qualificação moral deste cooperação, a clave encontra-se no abuso que emprega o agente principal a partir de uma ação boa ou indiferente do cooperador.
Para que seja lícita, é necessário:
a) Que a ação do cooperante seja em si mesma boa ou indiferente.
b) Que quem trabalha deve ter um fim honesto, ou seja, querer unicamente o efeito bom que se segue de sua ação e rejeitar o mal.
c) Que o efeito bom que o realizador pretenda não seja consequência do mal (não se pode praticar ou permitir um mal para que venha um bem). Muitas vezes, a conexão entre a cooperação material e o efeito mal é tão próxima, necessária e condicionante do ato pecaminoso, que se torna impossível separá-la do mesmo, sendo, portanto, sempre pecado. Exemplo, não é lícito a uma enfermeira instrumentista, por motivos graves (por exemplo, para conservar o emprego), prestar seus serviços em um aborto, porque, embora seus atos fossem os mesmos que prestaria em uma intervenção cirúrgica lícita, neste caso, estaria tão intimamente conectados com o assassinato de um bebê, que seria pecaminoso. Porém, seria lícito à empregada que limpasse o piso de um hospital abortista.
d) Deve existir uma causa proporcionalmente grave ao dano que se seguirá da cooperação material ao mal, contudo, nunca existem causas proporcionais a certos danos ou ao escândalo teológico que certas cooperações podem acarretar, por mais materiais que sejam.
Um exemplo de cooperação material lícita, neste sentido, dá-se quando, embora sabendo que parte de nossos impostos servirão presumidamente para financiar campanhas imorais, pagamos sem ter a certeza absoluta disso; ou quando compramos roupa fabricada na China, sabendo que ali, provavelmente, existe exploração do trabalho infantil; porque estas ações não só são passivas, mas também a conexão com o pecado é muito remota e dificilmente colaborável.
Agora, a respeito do tema das vacinas produzidas a partir de fetos abortados intencionalmente (atualmente ou há quarenta anos), o que pensar? Pecam aqueles que a recebem consciente e voluntariamente, sabendo que são o fruto de fetos abortados para tal fim? Em nosso humilde entender, neste caso, ocorreria não somente uma cooperação material ilícita, mas também um grave escândalo teológico.
É verdade, nos dirão, que há quinze anos, a Pontifícia Academia para a Vida (ano 2005) (uma análoga é de 2017) escreveu uma carta assinada pelo então Mons. Elio Sgreccia, em um documento intitulado “Reflexões Morais sobre as Vacinas Preparadas com Células Derivadas de Fetos Humanos Abortados” (documentos respeitáveis, mas que não têm, certamente, caráter definitivo ou magisterial), onde se diz:
“No que diz respeito àqueles que precisam usar essas vacinas [refere-se a certas vacinas contra a rubéola, hepatite] por razões de saúde, deve-se enfatizar que […] os médicos ou pais que recorrem ao uso dessas vacinas para seus filhos, apesar de saberem sua origem (aborto voluntário), realizam uma forma de cooperação material mediata muito remota e, portanto, muito branda […]” e, portanto, “moralmente justificada como uma extrema ratio – último recurso – devido à necessidade de prover o bem dos filhos e das pessoas que estiverem em contato com os filhos (gestantes).
Contudo, acrescenta:
Essa cooperação ocorre em um contexto de coerção moral da consciência dos pais, que são forçados a optar por agir contra sua consciência ou de outra forma, colocando em risco a saúde de seus filhos e da população como um todo. Essa é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada o mais rápido possível.
Mais tarde, no ano 2008, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, com menos detalhes, publicou a Instrução intitulada “Dignitas personae. Sobre algumas questões de Bioética”. Ao falar das vacinas realizadas a partir de fetos abortados, diz o seguinte:
35: Naturalmente, dentro deste quadro geral, existem responsabilidades diferenciadas, e razões graves poderiam ser moralmente proporcionadas para justificar a utilização do referido «material biológico». Assim, por exemplo, o perigo para a saúde das crianças pode autorizar os pais a utilizar uma vacina, em cuja preparação foram usadas linhas celulares de origem ilícita, permanecendo firme o dever da parte de todos de manifestar o próprio desacordo em matéria e pedir que os sistemas sanitários disponibilizem outros tipos de vacina.
Pois bem, já se passaram alguns anos desde essas declarações e não só não voltaram atrás na produção, mas, pelo contrário, avançaram, suscitando preocupações ao povo fiel.
Sem dúvida que a Santa Mãe Igreja, diante do avanço da indústria do aborto, logo esclarecerá o tema e, provavelmente, seja por se tratar de uma possível cooperação material (mediata, remota, passiva e indireta), seja por dar motivo a um possível escândalo teológico evitável (cf. Dignitas personae, n. 35), talvez declare que existe uma incongruência ao utilizar as ditas vacinas procedentes de fetos abortados para esse fim em face à atual defesa da vida do nascituro, preconizada, com justiça, como “um princípio inegociável”; do contrário, muitos acharão ilógico assistir, por um lado, às marchas contra o aborto para, depois, sem nenhum problema de consciência, usar seus produtos sem que nada se diga sobre essas pesquisas dignas do Dr. Mengele.
Exceto – é claro – que digamos como o comediante inglês Groucho Marx: “eu não sou vegetariano, mas como animais que são…”
Obs: Para o presente texto, consultamos vários cientistas e bioéticos, entre eles, a Dra. Pilar Calva (médica cirurgiã com especialidade em Genética Humana e subespecialidade em Citogenética e ex-membra da Academia Pontifícia para a Vida).
Pe. Javier Olivera Ravasi, SE
Advogado, Dr. em Filosofia, Dr. em História
Prof. Universitário de Direito
Vésperas de Santa Maria Virgem de Guadalupe.
Fonte: Que no te la cuenten