Nada como um bom recurso discursivo para “sair bem na foto” apesar de objetivamente estar se tomando medidas abusivas e autoritárias. Trata-se de afirmar “estamos em uma crise sanitária por conta de uma pandemia, então “. Claro que aqui não estou querendo negar tal crise, mas apenas listar alguns abusos, ou seja, medidas e opiniões que fogem do razoável mesmo quando se considera o contexto pandêmico, que pude presenciar.
O primeiro carteiraço foi de Pedro Ribeiro que como bom católico de esquerda, mas com certa cultura filosófica de fundo, contorceu a doutrina de Donoso Cortés, misturando-o com Carl Schmitt, para defender a ditadura como forma de “evoluir” um regime político. A coisa é no mínimo engraçada para um bom leitor. Primeiro Ribeiro deixa claro que ditadura, no sentido do reacionário e contra-revolucionário de Donoso, não é um sistema político de supressão dos direitos civis por tempo indeterminado, mas um estado de exceção onde o Estado precisa passar por cima de certos direitos por conta da exigência das circunstâncias (“normas valem para circunstâncias normais; circunstâncias decisivas exigem decisões”). Ok, até aí tudo bem, a própria constituição brasileira, por exemplo, prevê situações onde se pode decretar estado sítio; porém, ao fim mais conclusivo do seu artigo, ele vai defender o estado de exceção como fundamento do regime político, modus operandi tipicamente revolucionário (“O estado de exceção, portanto – e Carl Schmitt foi, no século XX, o pensador que melhor aprendeu esta lição de Donoso -, é muito mais do que um simples recurso ao qual, vá lá, por vezes tem de se recorrer, pois é inevitável para que o mundo não se acabe. Não. De modo muito mais profundo, a ditadura, no sentido preciso com que Donoso emprega esta palavra, é o próprio substrato, é o próprio fundamento de todo e qualquer regime político”). Contradição criada, vamos ao carteiraço de Pedro Ribeiro:
Ameaçados por um vírus, submetidos a uma pandemia, não hesitamos em aceitar, com relativa facilidade, a drástica redução dos nossos constitucionais e legalíssimos direitos de ir e vir, de livre associação, de livre iniciativa econômica, de livre expressão religiosa em culto público. Intimidados e fragilizados pelo inimigo biológico invisível, mudamos muitos de nós, com velocidade espantosa, as nossas convicções mais íntimas.
Não gastarei muito mais linhas com Pedro Ribeiro. O Luiz de Moraes, colunista do Instituto Santo Atanásio, já deu conta do caso. O texto de Pedro Ribeiro está aqui. A resposta de Luiz está aqui. Depois o Pedro Donoso-Schmitt choramingou em seu Facebook. Por fim, o Luiz respondeu com uma excelente tréplica, na qual responde a enrolação filosófica com fundamentos de filosofia política. Um trecho:
Entendendo que o fundamento primeiro da ordem jurídica positivada é (ou deve ser) a lei natural – o que é justo segundo a natureza dos entes – claramente se compreende que tal fundamento é anterior a qualquer convenção política (…). É a partir da ordem jurídica fundamental, do que é justo em si, e não das deliberações temporais, que se deve refletir sobre a legitimidade desta ou daquela disposição ou medida do poder político ou das autoridades jurídicas constituídas. Ela é a norma de justiça essencial que julga as leis positivas, que julga os próprios legisladores e juízes, que julga as ações dos homens em geral. (…) Ora, uma ditadura é, por definição, um regime autocrático. Não há como identificá-la com aquele regular poder político que, para os clássicos, se exerce em vista do bem comum e em conformidade com a lei natural, com a ordem jurídica ínsita aos entes.
Só muito excepcionalmente pode uma ditadura cumprir esta função; ordinariamente ela é o seu antípoda, não seu “substrato”! Daí ser uma esculhambação querer que a “ditadura” seja o “substrato e fundamento de todo e qualquer regime político”, como quer Ribeiro. Como pode querer ele, com uma afirmação desta categoria, contribuir para a “elevação do debate público”? Fica difícil, compadre.
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O segundo carteiraço foi o mais triste e dramático: o fechamento do maior seminário da Argentina (o que tinha mais vocações), porque alguns padres não quiseram “obedecer” o bispo quando este decretou que só poderia se dar comunhão na mão. Para o brasileiro pode ser difícil entender o autoritarismo do caso, porque ou lhe omitem ou lhe dão de modo simplificado a doutrina sobre o modo de comungar, mas como muito bem explica o Dr. Alberto Caturelli em “A Igreja Católica e as Catacumbas de Hoje”, a comunhão na mão não é o modo ordinário de comungar, mas, ao contrário, é um indulto. O modo simplificado costuma dizer que o fiel tem o direito de comungar na mão ou na boca, como se fossem modos equivalentes. Não. A comunhão na boca é o desejável, o ordinário, o correto, a comunhão na mão é um indulto, uma concessão que só é lícita sob certos aspectos. Que isso não seja de conhecimento do católico médio, já evidencia a grave crise por que a Igreja passa. Não obstante, o que dizer de fechar um seminário por conta disso?! Claro, o pretexto é a crise sanitária por conta do COVID-19. Nesses casos especiais, a ditadura (no sentido de Donoso, ou seja, um estado de exceção) poderia agir, e, voltando ao normal, voltaria a poder comungar na boca. Certo? Contudo, como bem mostrou o Luiz, o que determina a justiça ou não de um ato é a ordem moral. E aqui está o problema: não há qualquer evidência – sobretudo científica – de que a comunhão na mão seja mais segura que a comunhão na boca (falei sobre isso em artigo anterior): o bispo de San Rafael não agiu com prudência, mas com carteiraço. O Dr. Caturelli ajuda a explicar esse tipo de fenômeno no livro já mencionado. Por sua vez, o Padre Leonardo Castellani classificaria esse carteiraço-diálogo-misericordioso da política eclesial como sendo manifestação de um alto grau do espírito de farisaísmo.
Conforme listado na dissertação de Castro de Dios – Un Análisis del Concepto de Fariseísmo en la Obra de Leonardo Castellani -, a essência homicida do farisaísmo comporta sete graus: 1) a religião volta-se ao exterior; 2) a religião torna-se mera rotina; 3) a religião torna-se negócio; 4) a religião volta-se à política; 5) odeia-se aos autenticamente religiosos; 6) perseguem-se aos religiosos; 7) Comete-se sacrilégios e mata-se os religiosos.
É bom o católico ter em mente esses sete graus de farisaísmo, porque a igreja do “diálogo” e da “misericórdia” costuma proteger os disseminadores e praticantes de heresias e perseguir os bons padres fiéis à doutrina católica (rotulados de conservadores), mas o malvadão (ou fariseu no discurso teológico) a ser apontado é o dragão do tradicionalismo (não quero com isso dizer que não há farisaísmo dentro do amplo espectro do que se entende por tradicionalismo, mas a sanha persecutória, até porque são os que detém o poder político eclesial, é um 7×1 em vantagem aos heterodoxos).
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Por falar de farisaísmos de alto grau na Igreja, o terceiro carteiraço que quero citar é o do Padre Leomar Antonio Montagna da Arquidiocese de Maringá. Já não seria carteiraço suficiente, para agradar qualquer ditadura Donoso-Schmittiana, proibir a presença dos fiéis na missa (mesmo respeitando as restrições sanitárias), é preciso caprichar ainda mais e defender teologicamente a coisa de um modo tal, que até o heresiarca Lutero ficaria surpreso. Recomendaria ao Padre Leomar estudar sobre a vida e a obra de São Pedro Julião Eymard, porque é simplesmente absurdo defender que, para um católico, a Missa não é essencial para o encontro com Deus. Ora, a Eucaristia é Jesus e, portanto, a Comunhão Eucarística é o encontro REAL com Deus. Para ler com a própria alma o tamanho do assassinato à teologia católica: aqui. Aula de como descaracterizar a doutrina católica citando textos fora de contexto (aplicação da Sola Scriptura luterana com pitada de “liberou geral, pode tudo, exceto a Tradição, depois do Concílio Vaticano II”), fazendo-os significar o oposto do que dizem de fato.
Este é o aspecto trágico da questão (felizmente a Arquidiocese já voltou atrás e o povo de Maringá pôde ter o seu encontro real com Cristo, que não significa, padre Leomar, uma espiritualidade supostamente mais encarnada, desinformada e sem referência importante, mas sim uma espiritualidade autenticamente católica); há ainda o cômico. O padre Leomar se propõe a responder o argumento de que outros estabelecimentos estarão abertos mesmo sendo menos seguros do que os ambientes da igreja. Convenhamos: questionamento legítimo! O que ele responde? Eis o problema: ele não responde, mas só enrola: É um vírus… Tem gente morrendo… Não é como na guerra que dá para se salvar fugindo… É importante a restrição dos comportamentos normais, evitando contato… Certo, padre! Mas por que alguns estabelecimentos com maior risco de contágio possuem menos restrição que o ambiente da igreja? Essa pergunta não foi respondida, o senhor somente apelou para aumentar o estado de medo do leitor.
Enfim, chama a atenção um breve trecho do artigo (onde será que já lemos algo parecido?)
A experiência diante desta enfermidade reconheceu que o recolhimento ainda é a melhor terapia, embora isso possa custar nossa liberdade, nosso direito ao culto e à comunhão na igreja.
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O último carteiraço que quero citar é o da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná. Se antes tínhamos um São João Damasceno brigando contra um rei para defender a Igreja da heresia iconoclasta, hoje nós temos os seguidores de Maritain tendo que abaixar a cabeça para Beto Preto, o secretário de saúde. Não sei que tipo de iluminação o secretário teve, mas, de repente, ele virou liturgista a ponto de publicar uma resolução especificando o que se pode ou não fazer durante o culto.
Parabéns ao Instituto Santo Atanásio por ter entrado na justiça contra esse carteiraço do governo. A Gazeta do Povo noticiou o caso, podendo se inteirar sobre ele aqui. Apenas para não alongar, encerro com a citação de dois trechos da ação:
Por fim, a Resolução SESA N°1434/2020 requisita a publicidade em lugar visível do responsável legal pela celebração religiosa (…)
Qual a fundamentação sanitária desta norma? Absolutamente nenhuma.
Esse é o problema. O carteiraço tem imaginação fértil, alega boas intenções, mas carece de fundamentação real. Para encerrar:
Ao analisar o ordenamento federal e estadual, identificam-se em geral quatro fontes legais principais de restrição a direitos, fundamentadas na proteção contra a pandemia:
1) Uso de máscara de proteção individual (nível federal) – art. 3º-A, Lei Federal 13.979/2020;
2) Uso de máscara de proteção individual e disponibilização de álcool em gel a 70% (nível estadual – sem mencionar estabelecimentos religiosos), – art. 1º, Lei Estadual no 20.189/2020;
3) Esterilização de ambientes – art. 1º, Lei Estadual no 20.187/2020 (nível estadual – sem mencionar estabelecimentos religiosos);
4) Limitação do número de pessoas art. 1º, p.u., Lei Estadual no 20.205/2020.Desse modo, as limitações legais e legítimas ao culto têm se resumido a três: uso de máscaras, disponibilidade de álcool em gel, número de pessoas e esterilização de ambientes.
A Resolução 1434/2020, no entanto, inova no ordenamento jurídico: estabelece restrições duríssimas, especialmente em seus arts. 15, 16, 19, 20, 31 e 32, sem amparo legal ou constitucional. Ou seja, aquilo que nem as leis, nem os decretos realizaram, uma mera resolução de órgão público arroga-se na competência de fazer.
É notável que a Resolução não contenha menção alguma a Lei Estadual ou Federal específica que a suporte em suas medidas. Isso é óbvio: realmente não há base legal.