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O império da ilegalidade

Lockdown, esvaziamento de cidade
Por Edward Feser

Como nos ensinam Aristóteles e Tomás de Aquino, os seres humanos são animais racionais sociais por natureza. Poque nós somos um tipo de animal, precisamos estar protegidos de ataques violentos e precisamos de liberdade para conseguir comida, moradia, roupas e outros bens materiais e poder contar com a posse deles de maneira estável. Poque somos animais sociais, nós precisamos da cooperação dos outros a fim de adquirir esses bens materiais, e precisamos também do calor das relações humanas e de um sentimento de pertença e lealdade a um todo maior – a uma família, uma comunidade, uma nação. Porque somos animais racionais, precisamos dos outros para arguir à nossa razão a fim de nos convencer de suas opiniões e políticas favoráveis, ao invés de recorrer à intimidação e violência.

Esses são bens humanos básicos na medida em que são as pré-condições necessárias para outros bens, e o dever fundamental do governo é salvaguardar esses bens básicos. Deve fazê-lo de uma forma que respeite o princípio da subsidiariedade do direito natural, segundo o qual é uma grave injustiça o Estado assumir as tarefas sociais de classes subalternas (como as da família) que elas podem fazer por si mesmas. E deve fazê-lo de uma forma que respeite o Estado de Direito. O Estado de Direito não é a mesma coisa que a vontade arbitrária de algum legislador, mas precisamente o oposto disso. A verdadeira lei deve refletir a racionalidade tanto em sua motivação quanto em seus efeitos. Um decreto que não tem nenhum fundamento lógico ou aplicação consistente, ou que torna a ordem social imprevisível ou instável, cheira a tirania em vez de legalidade. Como Tomás de Aquino escreve:

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Mas para a vontade do que é ordenado vir a constituir lei é preciso que seja regulada pela razão. E deste modo compreende-se que a vontade do príncipe tenha força de lei; do contrário seria antes iniqüidade que lei. (Summa Theologiae I-II. 90.1. ad.3)

E sobre a tirania diz:

Todas as coisas são incertas quando [o regente] se aparta do direito, nem pode firmar-se nada que repouse na vontade de outro, para não dizer em seu capricho. (Do Reino, Livro 1, capítulo 4)

Proteger esses bens básicos dos seres humanos como animais racionais sociais, de uma forma que respeite a subsidiariedade e o Estado de Direito, é um fundamento da justiça social tal como entendida na tradição do direito natural e na teologia moral católica. Qualquer regime que coloque em risco esses bens básicos é fundamentalmente injusto socialmente. E qualquer regime que os coloque em nome da justiça social não é apenas injusto, mas diabolicamente perverso.

Desordem do Novo Mundo

Agora, nos últimos meses viu-se um súbito crescimento de uma estranha nova ordem das coisas (ao invés de uma desordem das coisas) que coloca em risco todos esses bens básicos. Ela tem três componentes principais.

(1) Lockdowns intermináveis impostos em nome da saúde pública que são desnecessários, excessivos nos custos materiais e espirituais que impõem aos cidadãos e arbitrários em sua aplicação.

(2) A recusa de muitos políticos em reprimir tumultos, vandalismo e pilhagens ao mesmo tempo em que consideram (e em alguns casos trabalhando ativamente para implementar) o desmantelamento da força policial ordinária.

(3) A propagação por canais de notícias, entretenimento, instituições educacionais, núcleos de recursos humanos e agências governamentais de uma “cultura do cancelamento” ao estilo maoísta, que insiste especificamente numa ideologia maniquéia simplísta e divisiva, e tenta vociferar e hostilizar dissidentes e fazê-los infames e desempregados.

Essa confluência de tendências coloca em risco a grande maioria dos cidadãos, especialmente os pobres, a classe média e os proprietários de pequenos negócios. Tem pouco efeito sobre as corporações super-ricas e grandes, que têm recursos para se proteger dos piores efeitos da ruptura econômica e do caos social. Então, quem se beneficia com isso? Principalmente dois grupos: (a) revolucionários e outros infratores da lei que lucram com o colapso da ordem social, e (b) políticos e burocratas corporativos (como o pessoal de RH procurando descobrir funcionários insuficientemente “conscientizados”) buscando expandir seu poder discricionário sobre os outros. Em outras palavras, beneficia o tipo de personalidade tirânica descrito por Platão, que ataca a sociedade por baixo (no caso de criminosos e revolucionários) e de cima (no caso de ideólogos em posições de poder). O povo que cumpre a lei está preso entre esses dois grupos, como num torno mecânico. Na verdade, como argumentei em outro lugar[1] o que estamos vendo com algumas dessas tendências lembra assustadoramente o que Platão descreve na República como o mecanismo clássico pelo qual a democracia degenera em tirania.

Vamos analisar cada uma dessas tendências e como elas ameaçam os bens humanos básicos que descrevi acima.

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Lockdowns sem lei

Sem dúvida alguns leitores já tiveram que limpar os pingos de saliva da tela de seus computadores, inconformados com a própria sugestão de que os lockdowns podem ser de alguma forma questionados. Essas atitudes instintivas são precisamente parte do problema que tenho em mente. Eu não nego que a COVID-19 seja um problema sério, e não nego que muitas das medidas tomadas para lidar com ela (distanciamento social, uso de máscaras em público, etc.) sejam razoáveis. Eu não nego também que o lockdown inicial era justificável como uma maneira de evitar que os hopitais ficassem sobrecarregados – na verdade, eu defendi isso[2]. (Embora olhando pra trás, era inútil esperar que os políticos estivessem dispostos a fechar aquela Caixa de Pandora em particular tão logo a população permitiu que eles a abrissem).

Contudo, não se segue daí que os lockdowns eram necessários ou justificáveis além disso, e é tolice gritar categoricamente que “Lockdowns funcionam!” ou fingir que gritando “Ciência!” basta para justificá-los. Analisando o último ponto primeiro, se lockdowns são ou não uma boa ideia não é uma questão puramente científica. Além das considerações epidemiológicas, há questões sobre os efeitos que os lockdowns têm sobre os meios de subsistência e a poupança das pessoas, suas repercussões relacionadas à saúde além da COVID-19, o custo psicológico deles, seus efeitos na educação, questões sobre as situações em que é eticamente lícito impor cargas tão pesadas aos cidadãos, questões sobre os efeitos do lockdowns na estabilidade política e social, e assim por diante. Epidemiologistas e médicos não tem nenhuma “expertise” especial nessas matérias. Resolvê-los é tarefa do estadista (o politikos de Aristóteles) – não do cientista natural, cujo papel é meramente de fornecer conselhos, ainda assim falíveis, em alguns aspectos da questão. Pretender o contrário é cientificismo, não ciência[3].

Por outro lado, “Lockdowns funcionam?” é um pergunta errada. Sim, considerada em abstrato, manter uma pessoa trancada em sua casa diminui a probalibilidade de contaminá-la ou espalhar o vírus. Mas, claro, também torna menos provável que ela se envolva num acidente de carro que mate a si mesma ou outra pessoa, e torna menos provável que ela mate alguém ou seja assassinada. Porém ninguém acha que lockdowns são uma oa maneira de reduzir a incidência de mortes no trânsito ou assassinatos até que nós possamos melhorar a segurança no trânsito e a justiça criminal. Então, seria idiotice pensar que o fato óbvio de que, em abstrato, “estamos mais seguros em casa” prova por si só alguma coisa.

Há também o fato de que, como argumentei antes[4], lockdowns envolvem ações que, sob condições ordinárias, seriam gravemente injustas. Os seres humanos têm o direito natural ao trabalho para sustentar a si mesmos e suas famílias. Eles têm o direito natural de se reunir para o culto religioso. Eles têm o direito natural de decidir a melhor maneira de educar seus filhos. Eles têm o direito natural da liberdade de ação que envolve as atividades ordinárias do dia a dia. Eles têm o direito natural à estabilidade e previsibilidade necessárias para o planejamento a longo prazo, que o Estado de Direito deve garantir. A interferência com essas atividades e bens humanos comuns causa graves danos. Portanto, embora possam, em princípio, ser temporariamente suspensos quando absolutamente necessário em uma emergência, existe uma forte presunção contra isso. O ônus da prova recai sempre sobre o governo para demonstrar que a interferência nesses bens é estritamente necessária, e não sobre os cidadãos para mostrar que tal interferência é desnecessária.

Então, novamente, “Lockdowns funcionam?” é uma pergunta errada. A pergunta certa é: “Nós sabemos com certeza moral que lockdowns são estritamente necessários para prevenir os potenciais danos do vírus, e que esses danos são maiores do que o conjunto de danos que os lockdowns provocam? E eu afirmo que nós não sabemos disso, e que lockdowns perpétuos são, consequentemente, injustificáveis e tirânicos.

Aqueles que correm sério perigo com o vírus são idosos e aqueles com graves condições médicas preexistentes, e não a população em geral. E certamente não é uma séria ameaça aos jovens[5]. Portanto, para justificar lockdowns generalizados e o fechamento de escolas, teríamos que ter pelo menos a certeza moral de que quarentenando aqueles que correm sério risco, junto com medidas menos draconianas para a população em geral (distanciamento social, máscaras, etc), não é o  suficiente. Observe que não basta responder que aqueles que correm risco em especial podem pegar o vírus de outras pessoas que estão por aí na população em geral. Pois esse é o caso mesmo considerando os lockdowns que ocorreram (onde mercearias, lojas de ferragens e outras semelhantes não foram fechadas). Então, do que teríamos que estar moralmente certos é que fechar as chamadas empresas e escolas não essenciais é estritamente necessário, quando já estamos deixando muitos negócios ficarem abertos.

No entanto, não há simplesmente nenhuma evidência[6] que lockdowns são estritamente necessários para produzir os efeitos desejados, nem sequer forte evidência que eles são particularmente eficazes para fazê-lo. A Suécia optou por buscar a imunidade coletiva ao invés de impor lockdowns draconianos, e apesar de ter mais mortes que alguns países que impuseram, ela teve menos mortes do que outros países que [também] impuseram[7]. Apesar de sua grande população idosa e cidades densamente povoadas, o Japão manteve sua taxa de mortalidade baixa sem um bloqueio[8].Especialistas em saúde pública como Johan Giesecke[9], John Ioannides[10] e Sunetra Gupta[11] há muito tempo argumentam que os benefícios esperados dos lockdowns não superam os danos conhecidos. Recentemente, Greg Ip[12] resumiu de forma útil seus custos, e Donald Luskin[13], a falta de correlação estatística entre lockdowns e resultados positivos em relação ao COVID-19. As mortes de COVID mais amplamente divulgadas – as de milhares de idosos – resultaram, não da ausência de lockdowns, mas da política de alguns estados de enviar pessoas infectadas de volta para asilos. Enquanto isso, são precisamente os pobres e vulneráveis[14] que sofrem mais com os lockdowns.

O defensor dos lockdowns insistirá que tudo isso não prova que lockdowns não são necessários, mas, em primeiro lugar, o ônus de provar que eles não são não cabe a mim ou  qualquer pessoa. O ônus de provar que são necessários cabe ao defensor, e deve prová-lo com certeza moral.

Na ausência de tal prova, os governos não podem destruir os meios de subsistência e a poupança das pessoas comuns bem como a capacidade de educar seus filhos e de planejar o futuro – nem qualquer negócio encobrindo os verdadeiros custos que eles estão impondo fingindo que é apenas alguma abstração chamada “economia”, ao invés de seres humanos de carne e osso, que eles estão prejudicando. Na ausência de tal prova, esta destruição é tirânica – é o governo causando danos graves e injustos aos seus cidadãos, em vez de protegê-los disso.

Estimulando a anarquia

Se havia alguma dúvida de que os políticos mais apaixonados pelos lockdowns não estavam agindo com sabedoria e justiça, ela foi dissipada por suas reações ao protestos e vandalismos que começaram dois meses depois do lockdown.

Por um lado, muitas dessas autoridades que proibiram severamente grandes aglomerações, sob a justificativa que eram um grande risco à saúde pública, subitamente toleraram ou mesmo encorajaram esses encontros quando a causa política que os motivava era aquela que as autoridades simpatizavam. A razão dada para esse duplo padrão era que lutar contra a brutalidade policial não era uma causa menos importante que o problema da COVID-19 na saúde pública.

Mas esse é um sofisma grosseiro[15]. Em primeiro lugar, antes dos protestos, os defensores do lockdown estavam nos garantindo que fazer grandes aglomerações e, assim, facilitando a disseminação do vírus, ameaçava vidas inocentes e era até mesmo equivalente ao assassinato. Então, como fazer algo equivalente a um assassinato é uma boa maneira de protestar contra o assassinato ou de evitar mais assassinatos?

Segundo, o número atual de pessoas que morrem em troca de tiros da polícia não está nem remotamente perto do número de pessoas que morrem de COVID-19. Nos Estados Unidos, a polícia mata cerca de 1,000 pessoas por ano[16] – isso inclui todas as mortes que ninguém diria que são injustificáveis. Enquanto isso, mais de 190,000 mortes nos EUA foram atribuídas ao COVID-19 neste ano. Então, se seu interesse é salvar quantas vidas inocentes forem possíveis (como os defensores do lockdown dizem que é), então como você pode justificar fazer algo que coloca em risco um número muito maior de vidas inocentes em nome de protestar contra algo que coloca em menos risco?

Terceiro, muitos dos protestos deneraram depois em confusões, e confusões representam ameaças às vidas inocentes, sem mencionar a propriedade e o sustento de pessoas inocentes.

Portanto, a resposta deles aos protestos por si só demonstra que os políticos que empurraram os lockdowns com mais força não têm bom senso. Mas muito pior do que isso foram suas respostas aos tumuldos, vandalismo e pilhagens aos quais alguns dos protestos deram lugar – que muitos desses políticos não tomaram nenhuma ação significativa para prevenir, e que alguns até tentaram desculpar ou dar uma opinião positiva.

Aqui também as razões apresentadas eram sofismas evidentes. Eram argumentos como: “Pessoa A matou injustamente pessoa B, logo é defensável (ou ao menos desculpável ou compreensível) que pessoa C roube e queime o negócio de pessoa D”. Além disso, aqueles que mais sofrem com os vandalismos e saques são as comunidades[17] que esses políticos dizem estar mais preocupadas. Pior do que isso, algumas dessas mesmas autoridades expressaram simpatia, e até tentaram fazer apelos para o “desmantelamento da polícia” – isto apesar do fato de que as comunidades minoritárias que eles alegam estar preocupados são, como a população em geral, completamente opostas a essa política insana[18].

Portanto, aqui está o que podemos saber com certeza moral. Políticos que se recusam a defender pessoas inocentes de desordeiros, saqueadores e vândalos, e que até cogitam a ideia de remover a proteção policial deles, não podem ser confiáveis para fazer julgamentos sólidos sobre lockdowns ou praticamente qualquer outra coisa nesse sentido. Eles manifestamente não têm em mente os melhores interesses dos cidadãos cumpridores da lei e/ou carecem até mesmo de bom senso rudimentar. E, ocasionalmente[19], a máscara cai[20] e suas verdadeiras preocupações são reveladas[21].

É difícil exagerar a gravidade do que está acontecendo, pois é muito pior e mais diabólico do que a corrupção comum da qual os políticos são frequentemente culpados. O próprio político corrupto viola a lei, mas, mesmo assim, costuma mantê-la em vigor, dizê-la da boca para fora e até mesmo a mantém quando outros a infringem. Mas o que estamos vendo com esse duplo golpe de lockdowns arbitrários e tolerância à criminalidade é a subversão da função mais básica do governo. Os próprios governos têm causado graves danos diretos aos meios de subsistência e negócios de cidadãos inocentes, e então se recusaram a defender esses cidadãos quando criminosos e anarquistas saquearam e incendiaram esses negócios, destruindo assim esses meios de subsistência. Os cidadãos cumpridores da lei são punidos e suas proteções removidas, enquanto os infratores são tratados com luvas de pelica e sua criminalidade é facilitada. Isso é perverso, a direção do governo caminhar para o que é positivamente contrário ao seu propósito fundamental de acordo com a lei natural. É o governo minando, em vez de defender as pré-condições básicas da ordem social.

Empoderando ideologias

Se os lockdowns ameaçam os bens materiais de que precisamos para o tipo de animal [que somos], e a anarquia ameaça os bens de que precisamos como animais sociais, a “cultura do cancelamento” e os ideólogos “conscientes” que a promovem ameaçam os bens de que precisamos como animais sociais racionais.

Eles ameaçam, antes de tudo, em seus métodos, na medida em que empregam descaradamente falácias rudimentares como método básico de engajamento contra aqueles de quem discordam. Por exemplo, eles ordinariamente falam jargões simplistas não apoiados por argumentos e rejeitam radicalmente as visões opostas como “racistas”, “sexistas”, “homofóbicas”, “transfóbicas” ou “intolerantes” – onde se tais caracterizações são justas e se os jargões são verdadeiros, é precisamente o que está em debate entre os justiceiros sociais e seus críticos (de modo que os justiceiros são rotineiramente culpados da falácia de petição de princípio).

Eles questionam ordinariamente as intenções de seus oponentes em vez de abordar seus argumentos, rejeitam-nos como “racistas”, “fanáticos” etc., e convencer os outros de prestar-lhes atenção por meio de escracho (com as falácias do julgamento da intenção, ad hominem, e apelo ao ridículo). Eles distorcem implacavelmente os pontos de vista de seus oponentes, colocando sobre eles as interpretações mais sinistras e menos caridosas possíveis (falácia do espantalho). E nem é preciso dizer que eles mal conseguem pronunciar uma frase sem cometer a falácia de apelo à emoção.

Pior de tudo, eles tentam intimidar seus oponentes ao silêncio instigando contra eles ataques massivos no Twitter, revelando publicamente suas informações privadas, trabalhando para que sejam demitidos de seus empregos, tornando-os desprestigiados e desempregados, etc (falácia do apelo à força).

É claro que a maioria dos seres humanos tende a cometer tais falácias de vez em quando, especialmente em contextos políticos. O que há de novo e diferente na “cultura do cancelamento” é que ela representa um movimento de massa que adotou conscientemente essas táticas como um método para garantir vitórias políticas e mudanças sociais. E as táticas refletem, não os lapsos ocasionais de racionalidade a que todos estamos sujeitos, mas ideologias que rejeitam a própria ideia de um discurso racional neutro e desapaixonado. O conflito político é interpretado como essencialmente uma guerra de vontades entre grupos de identidade ou de interesses econômicos concorrentes, ao invés de uma discordância honesta entre mentes que compartilham um conjunto comum de suposições e padrões básicos de argumentação. Consequentemente, o resultado desejado é interpretado como a imposição da própria vontade (ou a vontade de um grupo de interesse) sobre o outro, ao invés da persuasão de outros agentes racionais por meio de argumentos.

Portanto, o “wokester” ou guerreiro da justiça social tende, eu sugeriria, a ser o que chamei em outro lugar de “personalidade de tipo voluntarista”[22]. E o embotamento de sua razão e o conteúdo de suas opiniões tendem, eu argumentaria, a ter duas fontes mais profundas, a inveja característica do ideólogo igualitário[23] e a cegueira de espírito daqueles que estão profundamente enredados no vício sexual[24]. Como Platão nos adverte na República[25], a inveja igualitária e o desejo sexual desordenado são as sementes das quais a tirania cresce nos estágios finais de uma democracia.

Em qualquer caso, o que encontramos na “cultura do cancelamento” são vários pecados que Tomás de Aquino caracteriza como sendo contrários à paz de uma comunidade, como a discórdia[26] e a contenda[27]. E, tanto em seu conteúdo quanto na inspiração que anima os desordeiros, os vândalos e os saqueadores, também manifesta os pecados da sedição[28] e do ódio ao próprio país[29]. Por exemplo, demoniza os Estados Unidos e suas instituições como perversos até seus próprios fundamentos, com base em alegações históricas malucas que historiadores sérios (incluindo historiadores de esquerda) desmascararam[30]. E com base nessa ciência social maluca[31], semeia ódio e paranóia ao demonizar uma raça inteira[32] tão profundamente permeada pelo mal, que seus membros não se dão conta de que tudo o que dizem e fazem manifesta esse mal. (Alguns críticos de esquerda apontaram[33] o caráter essencialmente “hitleriano” dessas chamadas teorias “anti-racistas”, a única diferença da ideologia nazista é que a raça é demonizada.) Essas calúnias dividem os cidadãos em campos inerentemente hostis, fornecem uma racionalização do extremismo e da violência, tornando impossível o compromisso, a boa vontade e a solidariedade que uma ordem política estável requer.

E, mais uma vez, os mesmos políticos mais favoráveis aos lockdowns e menos inclinados a dar um fim aos tumultos, vandalismo e saqueamento, são também os menos inclinados a criticar a “cultura do cancelamento” e seus excessos. Faça as contas.

O profeta Platão

A súbita e dramática ruptura das pré-condições da vida social comum representada por essas três tendências teve, sem surpresa, como desdobramento um aumento alarmante da ansiedade e do desespero gerais[34]. Mas isso apenas acelerou uma tendência que já existia[35] devido ao colapso mais gradual da instituição social fundamental, a família. Esse colapso também é a verdadeira causa raiz da pobreza[36] e do crime[37] que estão por trás da agitação social contemporânea. E, claro, o colapso da família deve-se principalmente à Revolução Sexual.

Agora, os liberais e aqueles mais à esquerda estão mais ou menos de acordo com a Revolução Sexual, e satisfeitos em concordar com sua destruição das restrições ao desejo que tradicionalmente protegem a estabilidade da família. A diferença é que os liberais, no entanto, queriam preservar a estabilidade das instituições financeiras e políticas burguesas. Este era o “bôemio sonho burguês” do democrata clintoniano/republicano socialmente liberal: você pode ter sua licença sexual e um bairro seguro, um próspero 401 (k) e alguns agitando bandeiras também.

Mas a esquerda “consciente”, que agora está afastando os liberais, quer destruir tudo – a família, a economia de mercado, a polícia, o patriotismo e o Estado de Direito, que seria substiuído por um Estado evoluído sempre conscientizado na marra. Os liberais são “bons niilistas”, para usar uma frase de Alex Rosenberg[38]. A Esquerda acordou, mas não tão boazinha. Os liberais, como cupins escavando o interior de uma árvore, destruíram a instituição social central da família. E agora os justiceiros querem explodir a casca vazia também. Há neles uma doença completa da alma, um desejo insaciável de destruição, que lembra os Demônios[39] de Dostoiévski, as tarântulas[40] de Nietzsche, ou o tirano de Platão.

Novamente, argumentei em outro lugar[41] que a análise de Platão ilumina nossa situação atual. Lembre-se de sua classificação das cinco espécies básicas de ordem política e da maneira como refletem diferentes tipos de caráter ou condições da alma. A psique humana, nos diz Platão, tem três partes: a parte racional, a parte espiritual (a parte de nós que é movida por considerações de honra e vergonha) e os apetites. A alma bem ordenada é aquela em que a parte racional está no comando e a parte espirituosa é sua aliada em manter os apetites sob controle. Uma alma desordenada é aquela em que essa ordem de coisas é alterada de várias maneiras, algumas delas piores do que outras. O melhor regime político é aquele em que a alma bem ordenada é honrada e aqueles que a possuem estão no comando. Os quatro maus regimes, cada um pior que o anterior, são aqueles dominados por almas cada vez mais desordenadas.

Em particular, o regime ideal no relato de Platão é, naturalmente, o reinado dos reis-filósofos, que não são qualquer tipo de filósofo antigo, mas, especificamente, aqueles comprometidos com uma metafísica e ética amplamente platônicas[42]. Novamente, isso é análogo ao tipo de alma em que a razão domina a parte espirituosa e os apetites, e é o tipo de sociedade em que esse tipo de alma é idealizado. Seu ser humano ideal seria o homem que abandonou os cuidados do mundo para a contemplação da verdade eterna e a união mística com a Forma do Bem.

O segundo tipo de regime – ruim em comparação com o reinado dos reis-filósofos, mas o menos ruim das ordens políticas injustas – é a timocracia. O tipo de caráter que predomina neste tipo de sociedade é aquele em que a parte espirituosa da alma é dominante. O militar, e não o filósofo platônico, é o seu ideal, e virtudes como coragem e autossacrifício são as mais honradas. Porque coloca a honra acima da busca desinteressada da verdade, é inferior ao reinado dos reis-filósofos. Mas porque, não obstante, subordina a atração dos apetites a considerações de honra e vergonha, mantém uma certa medida de nobreza.

O terceiro tipo de regime é a oligarquia, pela qual Platão tem essencialmente em mente o tipo de sociedade orientada para o comércio e a acumulação de riqueza. O tipo de personagem que o domina e que idealiza é o capitalista. Este tipo de regime é inferior à timocracia e muito inferior ao reinado dos reis-filósofos, porque os apetites passaram a dominar a sociedade e aqueles que a governam. No entanto, a doença da alma ainda não está completa em uma oligarquia, porque acumular e proteger a riqueza requer colocar algum controle sobre os apetites. Consequentemente, as oligarquias honrarão as virtudes burguesas como a economia, o adiamento da gratificação, o respeito pela lei e a ordem e a preocupação com a respeitabilidade. O homem oligárquico é impassível, mesmo que não seja terrivelmente inspirador ou nobre.

O quarto tipo de regime é a democracia, pela qual Platão tem em mente o tipo de sociedade que valoriza a liberdade e a igualdade acima de tudo. Em particular, sua tendência é considerar cada desejo e cada modo de vida como igualmente bons, e se ressentir de qualquer sugestão de que alguns desejos e modos de vida são maus ou mesmo inferiores a outros. “Faça o que você quiser” é o seu ethos, e a tolerância é a sua virtude mais valorizada. O tipo de caráter que prevalece neste tipo de sociedade é aquele tão dominado pelo apetite que mesmo as virtudes burguesas do oligarca são gradualmente minadas. Relativismo e irracionalismo também prevalecem, porque a própria ideia de padrões objetivos de bondade e verdade torna-se odiosa para o homem igualitário.

A única coisa pior do que esse tipo de sociedade, na visão de Platão, é o tipo em que ela tende a degenerar, que é a tirania. Em certo tipo de alma dentro de uma sociedade igualitária, o domínio do apetite e o ressentimento das restrições sociais tornam-se tão opressores que ela não se contenta em ser deixada sozinha para fazer suas próprias coisas. Ele quer se impor aos outros. O hippie descontraído torna-se o revolucionário amargo, e o “amor e o almoço grátis” algo a ser protegido pela caixa de munição em vez da urna eleitoral. Para Platão, a tirania não é o oposto da democracia como ele a entende, mas seu ponto culminante.

A festa do mal e a festa estúpida

Veja meu artigo recente no American Mind[43] para mais informações sobre a análise de Platão e, em particular, sobre por que ele acha que há uma tendência de cada tipo de regime ceder com o tempo para o tipo seguinte e pior. Naturalmente, eu não endossaria todos os detalhes da filosofia política de Platão. Mas as linhas gerais de sua análise dos principais tipos de regime e dos tipos de caráter que eles refletem são, penso eu, esclarecedoras. Eu sugeriria que o que estamos vendo nos eventos atuais pode acabar sendo algo como a transição que ele descreveu entre a democracia e a tirania. E eu acho que a análise de Platão também lança luz sobre a natureza da política americana contemporânea em geral.

Durante a maior parte dos séculos XX e XXI, os partidos Republicano e Democrata foram essencialmente oligárquicos, no sentido de Platão. A diferença entre eles, principalmente nas últimas décadas, é esta. Os republicanos estão mais inclinados a celebrar as virtudes militares e o patriotismo, de modo que há em sua visão das coisas pelo menos um eco da timocracia no sentido de Platão; e na medida em que também estão mais inclinados a elogiar a crença religiosa tradicional e a restringir os apetites, há até um leve eco do caráter sobrenatural do rei-filósofo. Enquanto isso, os democratas nas últimas décadas ficaram menos confortáveis com a religião e o patriotismo, enquanto ao mesmo tempo defendiam com entusiasmo a Revolução Sexual, o feminismo e, em geral, o igualitarismo radical e a libertação das restrições tradicionais ao apetite. Conseqüentemente, sua trajetória foi claramente na direção da democracia, como Platão a entende; e na medida em que nos últimos anos eles começaram a flertar com o socialismo absoluto, há até um eco da tirania no sentido de Platão. Mais do que um eco, no caso dos wokesters (justiceiros sociais).

O senador republicano Alan Simpson disse certa vez: “Temos dois partidos políticos neste país, o Partido Estúpido e o Partido do Mal. Eu pertenço ao Partido Estúpido.” Há muito tempo penso que essa é uma descrição bastante adequada dos partidos políticos modernos de direita e esquerda em geral. Naturalmente, não quero dizer que todo direitista seja estúpido ou que todo esquerdista seja mau. Mas a tendência geral dos partidos de esquerda modernos é nos empurrar cada vez mais longe no caminho, para  aquilo que a análise platônica consideraria degeneração política e social. E a tendência geral dos partidos políticos de direita tem sido resistir a essa trajetória, mas de uma forma que é tímida, inconsistente, incompetente e, na melhor das hipóteses, apenas temporariamente eficaz – e, claro, de uma forma que raramente visa algo superior ao que Platão denomina de oligarquia, mesmo que resista aos tipos inferiores de regime. Isso não é surpreendente, pois a direção geral da sociedade ocidental moderna é em si mesma à esquerda e democrática no sentido de Platão. E a tendência está se acelerando e abriu caminho nos próprios partidos de direita.

Ações retidas, tímidas, mal implementadas, pouco eficazes e fadadas ao fracasso, parecem ser o melhor que podemos realisticamente esperar da política no futuro previsível. O que eu disse há pouco mais de quatro anos vale agora em dobro: Nunca o Partido Estúpido foi tão estúpido, ou o Partido do Mal foi tão perverso. 


 Notas:

[1]https://americanmind.org/salvo/woke-ideology-is-a-psychological-disorder/

[2]https://edwardfeser.blogspot.com/2020/04/some-thoughts-on-covid-19-crisis.html

[3]https://americanmind.org/salvo/scientism-americas-state-religion/

[4]https://edwardfeser.blogspot.com/2020/05/the-lockdown-is-no-longer-morally.html

[5]https://nypost.com/2020/09/01/the-numbers-are-clear-covid-is-no-real-threat-to-kids/

[6]https://www.youtube.com/watch?v=6RDffMCAujg

[7]https://www.nationalreview.com/corner/uk-fails-sweden-not-so-much/?utm_source=recirc-desktop&utm_medium=homepage&utm_campaign=river&utm_content=featured-content-trending&utm_term=first

[8]https://www.bbc.com/news/world-asia-53188847

[9]https://unherd.com/thepost/coming-up-epidemiologist-prof-johan-giesecke-shares-lessons-from-sweden/

[10]https://nationalpost.com/opinion/john-ioannidis-another-shutdown-would-do-more-harm-than-good

[11]https://reaction.life/we-may-already-have-herd-immunity-an-interview-with-professor-sunetra-gupta/?fbclid=IwAR0rcrYmHozcN53iZfTq9L0COuq0587lxSs9xaWXN4XiGrDEbn0Lv6tr6tk

[12]https://www.wsj.com/articles/covid-lockdowns-economy-pandemic-recession-business-shutdown-sweden-coronavirus-11598281419

[13]https://www.wsj.com/articles/the-failed-experiment-of-covid-lockdowns-11599000890

[14]https://www.nationalreview.com/corner/four-pieces-of-terrible-news-about-the-pandemics-effects/

[15]http://edwardfeser.blogspot.com/2020/07/the-experts-have-no-one-to-blame-but.html

[16]https://www.washingtonpost.com/graphics/investigations/police-shootings-database/

[17]https://www.washingtonexaminer.com/opinion/minneapolis-riots-over-george-floyds-death-will-hurt-minority-owned-businesses-most

[18]https://www.newsweek.com/81-black-americans-dont-want-less-police-presence-despite-protestssome-want-more-cops-poll-1523093

[19]https://www.theamericanconservative.com/articles/the-covid-pretext/

[20]https://thefederalist.com/2020/09/08/elites-only-care-about-the-politics-of-riots-not-the-lives-and-property-lost/

[21]https://www.washingtontimes.com/news/2020/sep/11/barbara-ferrer-la-county-health-schools-election/

[22]https://edwardfeser.blogspot.com/2018/10/the-voluntarist-personality.html

[23]http://edwardfeser.blogspot.com/2020/06/envy-cancels-justice.html

[24]https://edwardfeser.blogspot.com/2019/07/psychoanalyzing-sexual-revolutionary.html

[25]https://americanmind.org/salvo/woke-ideology-is-a-psychological-disorder/

[26]https://www.newadvent.org/summa/3037.htm

[27]https://www.newadvent.org/summa/3041.htm

[28]https://www.newadvent.org/summa/3042.htm

[29]http://edwardfeser.blogspot.com/2020/07/the-virtue-of-patriotism.html

[30]https://www.wsj.com/articles/the-1619-project-gets-schooled-11576540494

[31]https://arcdigital.media/dear-white-people-please-do-not-read-robin-diangelos-white-fragility-7e735712ee1b?gi=7cccc2407cd9

[32]https://www.firstthings.com/article/2020/10/against-racialism

[33]https://taibbi.substack.com/p/on-white-fragility

[34]https://theintercept.com/2020/08/28/the-social-fabric-of-the-u-s-is-fraying-severely-if-not-unravelling/

[35]https://www.manhattan-institute.org/nation-dying-in-despair-and-family-breakdown-is-part-of-the-problem

[36]https://wacotrib.com/opinion/columns/guest_columns/robert-j-samuelson-washington-post-family-breakdown-at-root-of-u-s-poverty/article_5a56c335-6103-5cfc-83eb-9bfb0f21e067.html

[37]https://www.christian.org.uk/news/melanie-phillips-govt-must-recognise-link-between-family-breakdown-and-crime/

[38]https://edwardfeser.blogspot.com/2012/02/reading-rosenberg-part-vii.html

[39]https://www.youtube.com/watch?v=liVipnnsjAs

[40]http://4umi.com/nietzsche/zarathustra/29

[41]https://americanmind.org/salvo/woke-ideology-is-a-psychological-disorder/

[42]https://edwardfeser.blogspot.com/2019/11/join-ur-platonist-alliance.html

[43]https://americanmind.org/salvo/woke-ideology-is-a-psychological-disorder/

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