Manuela D’Avila e Guilherme Boulos: a nova liderança da Esquerda no Brasil?
As eleições municipais de 2020 trouxeram uma mudança significativa para a esquerda brasileira. Desde a década de 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT) amalgamou os anseios da esquerda. Nesse sentido, Luiz Inácio Lula da Silva, José Genoíno e José Dirceu ganharam um espaço bastante grande e, em 2003, chegaram ao poder pela primeira vez. É necessário, portanto, fazer uma análise sobre os motivos pelos quais o Partido dos Trabalhadores cresceu e, também, como se enfraqueceu.
O Partido dos Trabalhadores foi fundado em 1980 na cidade de São Bernardo do Campo. Naquele momento, o Brasil estava sendo governado pelo presidente José Batista Figueiredo (1979-1985), dentro de um contexto de abertura “democrática”. Assim sendo, era objetivo de o Regime Militar fazer com que houvesse uma maior participação dos partidos dentro do processo eleitoral. Portanto, havia uma conjuntura favorável que contribuiu, em 1982, para que houvesse o fim do bipartidarismo, terminando com os partidos ARENA e MBD.
No entanto, o trabalho para a consolidação do Partido dos Trabalhadores veio muito antes. Após o golpe civil-militar de 1964, a esquerda perdeu a articulação para uma revolução militar aos moldes marxistas. Assim sendo, a esquerda ficou, em um primeiro momento, impossibilitada de tomar as estruturas institucionais de poder. Porém, os militares, seguindo a doutrina de Golbery do Couto e Silva, adoraram a estratégia da “panela de pressão”, que era o acomodamento da esquerda em um local que, segundo a leitura dos militares, era inofensiva para o processo político pelo qual o Brasil estava passando. Assim, os militares deram espaço para a esquerda nas universidades, nas mídias e na cultura.
Em primeiro lugar, houve a formação de todo um imaginário popular, buscando influenciar a pessoas. Isso se deu com o movimento da Tropicália, fazendo com que pessoas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa conseguissem projeção. Entre os anos de 1964-1967, esse movimento ganhou intensidade, consolidando-se como as vozes do Brasil. Uma vez que o movimento ganhou corpo, esses artistas começaram a influenciar os professores das universidades, principalmente na USP e na UnB. Em 1968, esse movimento se consolida com o episódio da repressão aos estudantes em Brasília e a marcha dos 100 mil da Candelária.
Na década de 1970, outros elementos para a esquerda começaram a ser gestado. Em um primeiro momento, o Novo Sindicalismo ganhou espaço, principalmente no ABC paulista, uma vez que foi possível que houvesse uma grande greve, em 1968, que serviu como base para todo o movimento. Além disso, a esquerda conseguiu conquistar boa parte das comunidades católicas por meio da Comunidades Eclesiais de Base, criadas dentro do espírito da Teologia da Libertação, que afirmava a necessidade de uma ênfase social e pastoral maior em detrimento da Teologia Dogmática e da luta contra o pecado. Deste modo, as bases estavam criadas para o surgimento do PT
Em 1978, em uma greve em São Bernardo do Campo, Luiz Inácio Lula da Silva consegue se configurar como uma liderança sindical bastante grande e, em 1980, o Partido dos Trabalhadores é fundado com a seguinte composição:
- Intelectuais de esquerda da Universidade de São Paulo
- Lideranças do Movimento Estudantil
- Sindicatos
- Comunidades Eclesiais de Base (Teologia da Libertação)
A partir desse momento, o PT vai se tornando o principal partido da esquerda brasileira e se consolidando como partido ideológico. Em 1981, durante a I Conferência Nacional das Classes Trabalhadores (CONCLAT), o PT precisa enfrentar o PCdoB no sentido de propor quais serão os movimentos subsequentes. Enquanto o PT queria continuar com a estratégia das greves, o PCdoB afirmava que era necessário ter atuação política partidária. É desse embate que nasce a Central Única dos Trabalhadores (CUT), cujo núcleo de poder é o PT, mediante a Teologia da Libertação.
Na segunda metade da década de 1980, o Partido dos Trabalhadores estreia com 16 cadeiras na Câmara dos Deputados, sendo o segundo partido de esquerda mais votado, perdendo apenas para o PDT, de origem Varguista. Deste modo o PT consegue, por meio de sua articulação nas bases, ser um importante partido na consolidação da Carta Constitucional de 1988. Nesse sentido, nota-se, por exemplo, o direito de greve e a ação propositiva do estado, principalmente com o imposto sindical. O PT, então, torna-se uma voz de peso na política nacional.
Essa atuação fez com que, em 1989, já na primeira eleição presidencial, depois de mais de vinte anos, os Partidos dos Trabalhadores conseguissem uma coligação com o PSB e o PC do B. O resultado das eleições foi surpreendente e Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao segundo turno, perdendo para Fernando Collor de Melo por pouco mais de 4 milhões de votos. A partir desse momento, Lula se consolida na esquerda como uma figura fundamental em todo o processo eleitoral. Em 1990, sintoma dessa expressiva votação, foi a criação do Foro de São Paulo, cuja liderança de Lula e de Fidel Castro eram notáveis. Assim, o PT começa a ser um importante ator nas esquerdas latino-americanas.
A década de 1990 é marcada pelo crescimento do PT em todas as eleições. Em primeiro lugar, o PT começou a ganhar espaço na Câmara dos Deputados e, já em 1994, contava com 50 deputados. Além disso, no mesmo ano, houve as primeiras vitórias para governo de estado e Senado. Essa situação favorável, somada aos demais partidos de esquerda, permitiu que houvesse o estabelecimento da Comissão da Verdade que, basicamente, seria um “tribunal político” para o julgamento de todo o período do Regime Militar, ou seja, estavam construindo uma base historiográfica mais consistente e pautando a discussão
Nas eleições de 2002, por conta do contexto econômico e político, o PSDB se enfraquece e dá espaço para o PT dar continuidade ao processo revolucionário. Por essa razão, o PT consegue 91 cadeiras na Câmara dos Deputados, faz 10 senadores, 3 governadores e o presidente da república. Vê-se que o processo que começou em 1978 levou 24 anos para atingir a presidência. Aqui é fundamental perceber que a base estava consolidada, com leituras, grupos de estudo, atuação nas comunidades e formação de militância. Depois de tudo isso ter sido consolidado, o partido consegue eleger Lula como presidente.
A esquerda em 2002 era liderada por Lula, Aloísio Mercadante, Rui Falcão, José Dirceu, etc. O primeiro mandato do governo Lula foi marcado pela continuidade da política econômica de Fernando Henrique Cardoso, o que gerou descontentamento por parte de políticos e intelectuais de esquerda, alegando que o PT estava aderindo ao Consenso de Washington e, portanto, traindo as bases da esquerda. O ápice disso foi a fundação, em 2004, do Partido Socialista e Liberdade (PSOL), com Luciana Genro, Heloísa Helena e João Fontes. Além disso, o PSOL contou com apoio de Fábio Konder Comparato, Leda Paulani, Celson Nelson Coutinho e Paulo Arantes, intelectuais de esquerda.
Em 2005, o Partido dos Trabalhadores começa a sofrer os primeiros arranhões com a CPI dos Correios e o Mensalão. Dentro da esquerda, esse foi o momento no qual o PSOL começou a ter as primeiras adesões de peso e, ao mesmo tempo, começa um processo de criticar a postura do PT. No ano seguinte o PT perde apoio do PSOL, uma vez que esse partido lança Heloísa Helena como candidata à presidência da República, com uma pauta identitária de reforma agrária e contra o imperialismo americano. A crítica foi bastante dura ao PT pelo fato de Antônio Palocci ter adotado uma postura de cautela nas transformações sociais.
No entanto, o segundo mandato do governo Lula (2006-2010) foi capaz de blindar o sangramento do partido, fazendo com que, no final, ele tivesse uma aprovação de 80%, principalmente por ter conseguindo blindar a grave crise de 2008 de ter seus efeitos imediatos no Brasil, e também por manter o nível de emprego. Assim sendo, Lula conseguiu indicar sua sucessora, Dilma Rousseff, que, em 2010, conseguiu uma vitória importante contra o PSDB de José Serra.
Parecia que a situação do PT estava garantida, porém os primeiros efeitos da crise econômica global de 2008 começaram a ser sentidos no ano de 2013, juntamente com um movimento cultural maciço, contrário às ideias de esquerda. Os princípios da esquerda começaram a ser atacados e o PT, principal nome desse campo, recebeu os impactos mais severos.
As eleições de 2014 são marcadas por um acirramento político muito grande, colocando Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) como adversários. A vitória, com suspeitas de fraude eleitoral, de Dilma foi motivo para uma grande tensão popular. Somado a isso, em dezembro daquele ano, as investigações da Operação Lava Jato começavam a assustar o Partido dos Trabalhadores que, desde a década de 1990, tinha como objetivo político a consolidação da esquerda na América Latina. Por conta da Operação Lava Jato, a partir de 2015, o PT começou a ficar nas cordas e adotou uma postura mais defensiva. É nesse espaço que o PSOL começa a crescer, principalmente com a figura de Marcelo Freixo, no Rio de Janeiro.
É necessário compreender que, em 2016, uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, think tank do PT, apontou que a periferia das grandes cidades não quer a mudança dos costumes, da moralidade e, consequentemente, deu um susto em todo o Partido dos Trabalhadores. Essa pesquisa é fundamental para compreender que a esquerda, à medida que tomou o poder e se afastou de suas bases, não conseguiu mais compreender o que estava acontecendo. Nesse sentido, os intelectuais traíram o povo e, ao mesmo tempo, começaram a criticar essa massa, dizendo que era necessário deixar a religião de lado, os valores da família e se apegarem ao movimento revolucionário. Tudo isso acendeu o sinal de alerta no PT.
No mesmo ano, o processo de impeachment de Dilma Rousseff é consolidado, principalmente pelas investigações da Operação Lava Jato que apontaram um grande esquema de corrupção na Petrobrás, que buscava a consolidação de um projeto hegemônico de poder. Por causa disso, o PT perde muito de seu apoio, principalmente nas classes médias e, somado ao crescimento do movimento “conservador”, o partido começa um processo de encolhimento. Em um primeiro momento, a estratégia do PT era criticar o impeachment, alegando golpe, e, com a prisão de Lula, o objetivo era dizer que o partido estava sofrendo perseguições.
Entre 2017-2018, o Partido dos Trabalhadores é severamente atacado, perde as eleições e a esquerda deixa de ter o partido como centro de toda a formulação. Nesse contexto é que surge Guilherme Boulos e Manuela D’Avila, personalidades que começam a tecer críticas mais contundentes ao PT, principalmente pelo fato da condução econômica ter sido feita de forma a agradar os banqueiros e não ter o compromisso com o processo revolucionário. Deste modo, o PSOL e o PCdoB aglutinam a esquerda anti-imperialista, identitária, marcusiana e universitária. É uma outra abordagem utilizada pelo movimento revolucionário.
Em 2020, a esquerda consegue duas votações expressivas: em São Paulo e Porto Alegre. Com um discurso mais tecnológico e inclusivo, Guilherme Boulos e Manuela D’Avila são exemplos de linguagem que funcionam para as grandes cidades que possuem grupos de “intelectuais” que continuam com os estudos do movimento revolucionário. Esses intelectuais estão comprometidos em defender sua posição nas universidades, controlando o discurso e, por meio da mídia, estabelecendo o que é verdadeiro ou falso. Além disso, é uma esquerda que tem o compromisso com o chamado “lumperproletariado”, um termo técnico marxista que designa os excluídos do capitalismo. Nesse sentido, as pautas são muito mais agressivas, falando para aqueles que são convertidos, porém com uma abordagem mais adequada para os chamados “socialistas de Iphone”.
O enfraquecimento do PT fez com que a esquerda passasse por todo um processo de adequação do discurso e percebeu que, atualmente, somente o grupo mais ideológico está mobilizado. O grande desafio para eles será tentar falar com a grande parte da população que antigamente votava no PT pelo discurso de “pais dos pobres”, sendo que ao mesmo tempo o avanço das pautas progressistas, dentro desse grupo, não será bem aceito. Ao que parece, esta esquerda mais ideológica ficará isolada em um grupo radical que utilizará movimentos como Black Lives Matter como instrumento de pressão política para enfraquecimento das instituições. Aqui fica evidente que a esquerda está enfatizando, cada vez mais, o seu movimento em uma crítica às instituições e em uma profunda modificação das estruturas de estado.