Ao longo do tempo, muitas correntes de pensamento buscaram denegrir a imagem da Santa Igreja Católica com a alegação de que a Igreja era uma das principais apoiadoras do regime da escravidão. Com base nisso, muitos detratores da Igreja passaram a desferir ataques injustos e caluniosos, esquivando-se da verdade. O pano de fundo para tudo isso é fazer com que o cristianismo seja, cada vez mais, excluído da sociedade e, com isso, as demais ideologias tenham argumentos para se colocarem como lumiares da humanidade. Nada mais equivocado, uma vez que, do ponto de vista teológico e histórico, a Igreja não defende a escravidão.
Em primeiro lugar, é necessário estabelecer os fundamentos teológicos da Doutrina católica para que seja possível entender como que a Igreja se posicionou a respeito do tema ao longo dos séculos. O parágrafo 1700 do Catecismo de Igreja Católica traz o seguinte texto: “a dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de Deus e realiza-se na sua vocação à bem aventurança divina. Compete ao ser humano chegar, livremente, a esta realização. Pelos seus atos deliberados, a pessoa humana conforma-se ou não, com o bem prometido a Deus“. Ora, nota-se que é necessário, para a dignidade humana, atos deliberados e, como tal, isso só se alcança quando está em voga a liberdade.
A liberdade é a capacidade de agir ou não agir e, assim, de realizar por si mesmo ações deliberadas. Atinge a perfeição do seu ato quando está ordenada para Deus, supremo Bem. O texto do parágrafo 1744 do Catecismo da Igreja Católica explica e expõe, claramente, o conceito de liberdade. Nesse sentido, pode-se notar que uma pessoa só será capaz de chegar a Deus se os seus atos são deliberados. Como a escravidão é o regime pelo qual uma pessoa perde a sua liberdade e é tratada como uma propriedade, logo não é possível que ela tome atos livres e, consequentemente, não consiga se ordenar a Deus.
Seguindo a Doutrina Católica, pode-se notar o seguinte versículo: “Foi para a liberdade que Cristo nos chamou” (Gl 5, 1). Em nenhum momento, a Igreja apregoa a escravidão que impede a tomada dos atos deliberados, sem os quais, o homem não pode chegar até Deus. É somente pela liberdade que o homem, inteligindo o que é o Bem, dirige-se até ele e toma posse. Assim sendo, a religião católica é aquela na qual a liberdade é fundamental para alcançar a excelência do homem. Ora, o regime de escravidão é incompatível com essa ordenação, já que há amarras claras para possuir o Bem que é Deus.
Uma vez exposta a incompatibilidade da escravidão com a Doutrina Católica, torna-se fundamental compreender as posições históricas que a Santa Igreja Católica adotou em relação à escravidão. À medida que a Europa tornava-se cristã, por conta do processo de evangelização da Igreja Católica, o regime de escravidão foi sendo abolido e, por volta do ano 1000, a escravidão foi substituída pela servidão, constituindo, portanto, as bases para o regime feudal. Tudo isso foi possível por conta da ação de padres e bispos católicos que tinham como objetivo fazer com que as pessoas, livremente, aderissem ao catolicismo.
No século XV, no entanto, a Santa Madre Igreja começou a tomar posturas mais contundentes em relação a escravidão. Isso aconteceu porque alguns portugueses e espanhóis, no contexto de expansão marítima, passaram a utilizar-se dos nativos como escravos. Em 1434, o papa Eugênio IV escreve uma bula papal chamada Creator Omnium que proibia os desbravadores em escravizar os nativos; porém, a prática da escravidão foi continuada e, em 1435, com a bula Sicut Dudum, o papa Eugênio IV proíbe a escravidão e o comércio nas Ilhas Canárias. Aquele que continuasse com a prática estaria excomungado.
A Santa Madre Igreja continua o processo de condenação à escravidão durante o papado de Pio II. À medida que o tráfico de escravos aumentava, principalmente daqueles vindos da Etiópia, a situação nas Ilhas Canárias e em outras ilhas no Atlântico começou a ficar complicada. Consequentemente, no dia 07 de setembro de 1462, o papa ordena que os bispos e padres imponham penalidades para os batizados que aderem a prática do comércio de escravos. Se, em um primeiro momento, a Igreja condena a utilização dos nativos, no momento posterior, tem-se a condenação do tráfico de escravos. É, portanto, um avanço dentro da busca pela liberdade e da dignidade humana.
O século XVI marca um dos momentos mais importantes dentro do avanço das grandes navegações feitas pelos espanhóis e portugueses. Assim sendo, os dois impérios ibéricos concentravam muito poder e tinham grande capacidade de atuação na política e nas relações internacionais. Seguindo os ensinamentos de Francisco de Vitória, o Papa Paulo III, por meio da bula Sublimus Dei garante os demais povos de todo o orbe são livres por natureza. Aqui, a Igreja avança ainda mais no entendimento de que a dignidade da pessoa humana é frontalmente contra a escravidão e, mais do que isso, garante que as relações entres os batizados e os não-batizados sejam feitas de forma livre.
O avanço do entendimento da Santa Igreja Católica a respeito do tema da escravidão é robustecido com os ensinamentos de Tomás de Mercado e do Papa Gregório XIV. Em primeiro lugar, o Teólogo de Sevilha afirma que os seres humanos não são mercadoria e, portanto, não podem ser tratados como uma propriedade nas mãos de outras pessoas. Assim sendo, ele combate, frontalmente, o tráfico de escravos. Ademais, com a bula Cum Sicuti, de 1591, a Santa Igreja Católica condena todos os tipos de escravidão, marcando um importante ponto de posição sobre o tema. Nota-se, portanto, que a Igreja não servia aos interesses de políticos, do avanço da economia e de posições de superioridade dos europeus em relação aos demais.
A Igreja Católica se manifestou sobre a situação da escravidão no Brasil. A luta abolicionista, no Brasil, tem início em 1850 com a chamada Lei Eusébio de Queiróz, que proíbe o tráfico de escravos no país. Entre os anos de 1850 à 1888, o país passou por um processo de gradualismo no combate às forças escravocratas, gerando leis como a do Ventre Livre, em 1871 e a dos Sexagenários, em 1885. É preciso notar, no entanto, que esse gradualismo não condenava, ipso facto, a escravidão. Nesse sentido, o Papa Leão XIII, em uma encíclica dirigida para os bispos do Brasil, pede apoio à Princesa Isabel e a Dom Pedro II que contribuam para o fim da escravidão no país.
Nota-se que a Igreja Católica atuou, desde a Idade Média, para o combate ao regime de escravidão. Esse fato evidencia a necessidade de garantir a dignidade humana como pressuposto para a busca pela santidade e ordenação, livre, a Deus. Sem isso, seria impossível ordenar os atos humanos para que eles fossem bons. No Brasil, a Santa Sé atuou, por meio do Papa Leão XIII, para combater a escravidão no país. É necessário lembrar que o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão na América. Assim sendo, mesmo que interesses econômicos e políticos estivessem sendo contrariados, a Igreja Católica foi categórica em não apoiar as práticas escravagistas.
A Igreja Católica, portanto, soube acolher todos os povos, batizando, ministrando os sacramentos e dando os auxílios, como Mãe, para que as pessoas pudessem chegar à contemplação do Sumo Bem. Em Curitiba, a Igreja do Rosário foi construída com esses objetivos; para levar os negros a Deus, e não para servir como palanque político, ideológico ou partidário. Por essa razão, é fundamental observar que o ato de vandalismo cometido contra a Igreja do Rosário demonstra um profundo desconhecimento da missão apostólica da Igreja, bem como aponta para a partidarização de um lugar sagrado.