Em certos momentos da história da Igreja, as controvérsias se deslocam como marés silenciosas. O que outrora foi o foco da discussão — a ortodoxia dos documentos conciliares — cedeu lugar, após a Traditiones Custodes, a uma inquietação mais profunda: o culto.
Hoje, o ponto sensível não está mais nas notas de rodapé dos documentos, mas no modo como o Céu toca a Terra. E essa epifania acontece — ou deixa de acontecer — na Missa. A Missa Tridentina, como um velho mosteiro em ruínas que ainda exala santidade, tornou-se o centro de uma batalha invisível entre o tempo e a eternidade.
Distinguem-se atualmente três grupos que, com diferentes motivações, se colocam diante do altar do Senhor:
(1) Os que amam a Missa Nova e desejam o fim da Missa Antiga. Chamam-se conservadores, mas seu amor pela novidade soa mais como febre que como fidelidade. São os apóstolos da modernidade litúrgica, os continuístas fervorosos da Traditiones Custodes. Em minha modesta opinião, representam a ala mais desastrosa do cenário. Porque, afinal, o zelo pela destruição de algo que santificou séculos parece mais iconoclasta do que cristão.
(2) Os que desejam apenas a Missa Tridentina e a extinção da Missa Nova. Alguns, é verdade, marcham como cruzados; outros, como monges. Aqui encontramos os seguidores de Monsenhor Lefebvre, que rejeitam o Novus Ordo, bem como outros tradicionalistas que, embora não nutram aversão ao novo rito, reconhecem na Missa Tridentina o único instrumento eficaz para sanar a atual crise litúrgica.
(3) Aqueles — tanto conservadores quanto tradicionalistas — que defendem a convivência pacífica entre os dois ritos. Trata-se, em grande medida, dos discípulos de João Paulo II e de Bento XVI.
A verdade é que, quando se permite a convivência entre os ritos, o Antigo atrai. Atrai porque não se explica. Atrai porque é estranho demais para ser moderno e belo demais para ser descartado. O Pe. Françoá — que, sim, caminha, infelizmente, fora da estrutura eclesiástica — descobriu que só no Rito Antigo sentia-se herdeiro de uma Tradição Universal, pois ouvia do altar um eco da eternidade de uma Missa que, por justiça, se denomina “de Sempre”. E esse sentimento não é um argumento, mas um sacramento não declarado. Não se trata de nostalgia, mas de memória. E a memória é a humildade da inteligência diante dos séculos.
Essa constatação, que é uma intuição mística, não pode ser ignorada, pois é difícil encontrar um sacerdote que celebre regularmente os dois ritos e manifeste sincera predileção pelo Novus Ordo. Afinal, a Missa Tridentina carrega um peso de glória incomensurável e difícil de expressar. Nela, os gestos não explicam: evocam. Os silêncios não interrompem: preenchem. E mesmo os fiéis que se encontram nela pela primeira vez sentem-se como quem entrou em uma casa antiga e, sem saber por quê, reconhece o perfume dos santos.
Não é prudente, portanto, tratar a Reforma Litúrgica como um dogma irreformável. A Igreja, mestra da verdade, não canoniza documentos pastorais, mas examina os frutos à luz do Espírito Santo. E os frutos não são apenas textos, mas lágrimas, conversões, silêncios e adorações.
A Traditiones Custodes colocou os grupos “1” e “2” em combate, como se a solução fosse um duelo litúrgico. Ela acirrou os extremos como se a Cruz pudesse ser dividida entre esquerda e direita. Mas a Cruz só se compreende quando é elevada. E dela, como dizia o poeta, pende um homem que não é nem progressista nem tradicionalista, mas simplesmente Deus. A verdade é que a guerra contra a Tradição não salva almas — apenas as expulsa. E a exclusão súbita de qualquer um dos ritos seria, como quase tudo o que é súbito, imprudente e cruel.
Sim, creio que só a Missa Tridentina tem o vigor espiritual necessário para curar nossa crise. Mas proibir a Missa Nova, de modo abrupto, seria também amputar um membro ferido sem unção nem anestesia ou tentar curar uma ferida com uma espada.
A liturgia nova, do jeito que se apresenta, não mostrou força para ser o rito ordinário — mas sua salvação talvez venha exatamente do que ela tentou esquecer: o passado.
A esperança, penso eu, reside, naquela obra que Bento XVI delineou com clarividência: a “Reforma da Reforma”. Ou, se preferirem um nome mais honesto: “voltar à Tradição”. Ela pode ser o único barco que ainda flutua no dilúvio litúrgico. Ela não é o Éden, mas pode ser um caminho de volta que devolva o que a liturgia nova jamais teve: continuidade.
E foi isso que Bento XVI viu com olhos mais teológicos que políticos. A Summorum Pontificum não foi um resgate da nostalgia, mas uma tentativa de reconciliar o tempo com a eternidade. Pois só quando a Missa Nova for iluminada pelo ouro antigo do Rito Tridentino é que poderá, talvez, tornar-se aquilo que seu irmão mais velho sempre foi: a coisa mais bela deste lado do céu.