A vaticanista Mirti Medeiros esbravejou: Há quem deseje apagar da memória o Papa Francisco com “damnatio memoriae” no que se refere ao latim, como se o pontífice nunca tivesse recorrido à língua da Igreja em suas celebrações.
Sim, ele rezou em latim. A questão aqui não é se Francisco usou a latim, mas se o defendeu — e mais ainda, se o fez florescer. O fato da prece não é negado, o que se discute é a alma do gesto.
Há uma diferença entre tolerar um milagre e promovê-lo. Entre não impedir uma vela de queimar e abastecer os candelabros do templo.
Para se determinar, com objetividade, se um Pontífice foi um verdadeiro defensor da língua de Cícero, é necessário responder duas perguntas fundamentais:
- (i) Quais são os meios ordinários pelos quais o latim se propaga na Igreja?
- (ii) O Pontífice em questão promoveu esses meios com eficácia e constância?
Ora, a liturgia e o canto constituem, historicamente, os veículos privilegiados de conservação e difusão do latim na Igreja. Abandoná-los equivale, por força das circunstâncias, a reduzir consideravelmente a vitalidade da língua eclesiástica.
Paulo VI, com toda a tragédia de um homem dividido entre o espírito do Concílio e os ventos do mundo, declarou — não em rumor, mas com palavras claras — que o latim seria sacrificado, e que a nova era falaria em vernáculo. Também profetizou o fim do canto gregoriano, que é a alma do latim entoada em notas que sobem como incenso.
Francisco seguiu a mesma trilha, mas com passos mais apressados.
- Retirou o latim dos sínodos: um passo simbólico e funcional contra sua presença no governo da Igreja.
- Restringiu a Missa Tridentina: o último templo onde o latim ainda era o idioma da eternidade. Isso equivale, praticamente, a reduzir o latim à irrelevância pastoral.
- Ordenou que o Evangelho fosse lido em vernáculo mesmo onde a antiga Missa era celebrada: um gesto que simboliza a marginalização da língua e sua suposta “incompreensibilidade”, conceito frequentemente usado como pretexto por correntes que desejam erradicar o latim da vida litúrgica.
- Não cantava: há quem diga, com voz de desculpa piedosa, que “jesuítas não cantam”. Mas essa justificação não se sustenta. O sucessor de Pedro não é um membro de clube: é uma rocha que deve conservar com diligência aquilo que recebeu de seus predecessores — como bem recordava o antigo juramento papal. Ainda outros dizem que isto é uma quimera sem importância, mas o novo sucessor de Pedro cantou e parece que rugiu.
Por fim: no livro “Esperança”, Francisco narra com admiração o episódio de um cardeal norte-americano que, ao ser procurado por dois padres recém-ordenados desejosos de aprender a celebrar em latim, recomendou-lhes, ao invés disso, que aprendessem vietnamita, dada a presença de imigrantes do Vietnã na diocese. Tal atitude, embora pastoralmente bem-intencionada, revela um traço característico do pontificado argentino: a subordinação do elemento universal da Tradição à lógica da pastoral de ocasião. Igual a ele foi Paulo VI e, de modo geral, ainda o é o horizonte conciliar.
Não se trata aqui de negar méritos ou virtudes ao Pontífice, mas de restituir à realidade histórica e eclesial sua legítima complexidade. A verdade, mesmo quando desconfortável, deve ser preferida à narrativa construída com fins ideológicos.
Os francisquistas — raça curiosa que parece confundir São Francisco com o Papa Francisco e este com o próprio Espírito Santo — não gostam muito de distinções. Preferem os superlativos. Para eles, o Papa não foi apenas bom — foi o mais bom, o mais humilde, o mais novo, o mais velho, o mais qualquer coisa desde Jesus Cristo.
O que tentam fazer com Francisco é uma espécie de damnatio memoriae ao contrário: não se tenta apagar um nome, mas reescrevê-lo.
A verdade é que o maior promotor do latim depois do Concílio não foi Francisco, nem Paulo VI, nem mesmo João Paulo II — foi Bento XVI, o Papa de voz serena e coração monástico. Bento não apenas falava o latim — ele sonhava em latim. Ele não apenas o permitiu: ele o ergueu. Fundou a Pontifícia Academia de Latinidade, libertou a Missa tradicional, reavivou a Veterum Sapientia, e, sobretudo, rezava como quem sabia que cada palavra latina é uma relíquia viva.
Mas mesmo se ninguém o tivesse feito — mesmo se todos os Papas o tivessem deixado de lado — o latim ainda voltaria. Pois ele não vive por decreto, mas por milagre. Ressurgiu com Leão XIV e ressurgirá em catacumbas e capelas, em seminários esquecidos e corações fiéis. Porque o latim é a língua da memória da Igreja — e uma Igreja sem memória não é Igreja, mas construção em areia.