Sermão para o Domingo da paixão
Evangelho para o Domingo da Paixão (calendário segundo a forma extraordinária):
Qual de vós me arguirá de pecado? Se vos digo a verdade, por que não me credes? Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus. Por isto não as ouvis: porque não sois de Deus. Responderam-Lhe, pois, os judeus: Não dizemos bem, nós, que és Samaritano, e que estás possesso do demônio? Respondeu Jesus. Eu não estou possesso do demônio: mas honro a meu Pai, e vós outros me desonrais. Eu não procuro a minha glória: há quem a procure e julgue. Em verdade, em verdade, eu vos digo, que se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte para sempre. Disseram-Lhe então os judeus: Agora conhecemos que estás possesso do demônio. Abraão morreu assim como os Profetas. E Tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte para sempre. És porventura, maior que o nosso pai Abraão, que morreu? Ou maior que os Profetas que morreram? Por quem pretendes passar? Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, nula é minha glória. Quem me glorifica é meu Pai, Aquele que dizeis que é vosso Deus. E vós não O conheceis: porém eu O conheço, e se dissesse que não O conheço, seria mentiroso como vós outros. Eu porém O conheço e guardo a sua palavra. Abraão, vosso pai, sentiu júbilo porque havia de ver meu dia; ele o viu e alegrou-se. Disseram-Lhe então os judeus: Ainda não tens cinquenta anos, e viste Abraão? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade, eu vos digo: antes que Abraão existisse, Eu sou. Apanharam eles então pedras para Lhe atirar; mas Jesus escondeu-se e abandonou o templo.
Encontramo-nos às portas da Semana Santa, a semana maior da liturgia romana; mediante Deus, teremos a graça de na próxima semana participar do Domingo de Ramos, rememorando a entrada triunfal de Cristo, o Messias esperado em Jerusalém.
Estamos então às portas do mistério da salvação; são as portas do céu.
E no Evangelho que se lê hoje também estão as turbas às portas de quem é a salvação mesma, Yeshua, “Deus salva”: o único sóter, o único salvador do gênero humano, princípio e fim, alfa e ômega, como ficará pintado no círio pascal.
As turbas vinham encurralando o Senhor depois da ressurreição de Lázaro (esse foi o milagre que o condenaria à morte); e agora estão no Gazofilacio, o hall de entrada onde se reuniam as oferendas para o grande templo de Jerusalém.
Ali se desata esta discussão acerca do Messias.
Já haviam passado as 70 semanas de Daniel.
Havia vindo o Precursor.
Haviam visto os cegos verem, os mancos andarem, os surdos ouvirem; haviam dito que ninguém Nunca havia falado assim (Jo 7)… Então: seria possível que este carpinteiro da Galiléia, discípulo de ninguém e vindo do norte fosse o Messias esperado?
E então vem a primeira munição:
Se vos digo a verdade, por que não me credes? Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus. Por isto não as ouvis: porque não sois de Deus.
Porque não é a inteligência a que salva, mas a vontade, o exercício de nossa liberdade que quer abraçar o bem.
“Digo a verdade… mas não me credes”.
Eu não procuro a minha glória: há quem a procure e julgue.
As obras que Deus faz na terra, de modo habitual, as realiza por meio de enviados: os anjos, que sustentam o firmamento, os profetas que anunciam Sua mensagem, os evangelistas que narram Sua palavra, etc. Porque toda obra boa surge, como um monte quando é regado desde os céus, de parte da fonte da Bondade, que é Ele mesmo. Por isso, só a Deus se dá a glória.
Não podemos realizar nenhuma obra boa, nenhuma obra santa, nenhuma que mereça merecimento, sem estar unidos a Deus; assim como a videira não pode dar frutos se não estiver unida aos ramos. Daí que Deus busque Sua glória por meio de sua criação e, nós que somos seus filhos, devemos deixar que tudo resulte d’Ele: “que Ele cresça e que eu diminua”, como dizia São João Batista.
E isto é o que os judeus não entendiam; ou não queriam entender. A Verdade estava na frente deles, haviam visto suas obras, seus milagres, seus ensinamentos e não queriam ver: “Têm boca, e não falam; têm olhos, e não veem; tem ouvidos, e não ouvem”, como diz o salmista.
É que o soberbo, o duro de coração, não é que seja surdo, cego ou mudo: quer sê-lo. Ficou assim porque a única coisa que pode ver, dizer ou ouvir é o que ele diz, ouve ou vê. Perdeu o órgão da percepção da realidade, e por isso não pode chegar à verdade; a verdade que liberta. A verdade que nos faz livres.
Porque busca sua própria glória.
Isso é o que o filho único de Deus, Jesus Cristo, o Leão de Judá, fez ao longo de toda sua vida terrena: dar testemunho da verdade por meio de uma vontade inquebrável; e assim consegue, por conquista, que Deus Pai o glorifique.
Se eu me glorifico a mim mesmo, nula é minha glória. Quem me glorifica é meu Pai
Porque só quem busca fazer a vontade do Pai recebe os prêmios verdadeiros e não as migalhas dos deuses e senhores da terra, que não valem nada; não têm nenhum valor… Porque a glória humana, a vanglória, a que não se dirige a Deus, é como uma pedra que impede de voar ao Céu: prende, aprisiona, põe em cárcere.
E este é o centro deste Evangelho: buscar a glória de Deus e não a dos homens. Ad maiorem Dei gloriam, como dizia São Inácio de Loyola. Tudo para a maior glória de Deus.
O outro é um mal negócio, pois o mundo “não paga”, como dizem os jovens de hoje.
A glória humana, a fama, o aplauso e o reconhecimento deste mundo são como palha levada pelo vento, como grama que logo murcha e amanhã será lançada ao fogo. É isto o que Nosso Senhor Jesus Cristo tenta explicar em um dos últimos sermões ante sua paixão e morte: quer comamos, bebamos, trabalhemos, limpemos, passemos ou invistamos, quer ensinemos ou cozinhemos ou cantemos…, tudo, tudo, tudo, como dizia São Paulo, devemos fazer para a glória de Deus e não para nossa própria glória.
Termina o episódio do Evangelho com a clara alusão de Cristo acerca de sua divindade:
Em verdade, em verdade, eu vos digo: antes que Abraão existisse, Eu sou.
Que é como se dissesse: “Em verdade, em verdade vos digo YAHVÉ” (Ex 3,14), ou seja, eu sou aquele que é; “Eu sou; e vós não sois nada”. Por isso quiseram apedrejá-lo, claro…
Porque em Sua infinita misericórdia, Deus quer que seus próprios inimigos o glorifiquem.
***
O texto do Evangelho termina dizendo que, não podendo mais aguentar tantas verdades, os judeus, que buscavam a própria glória e não em verdade a de Deus, pegaram em pedras para jogá-las, mas Jesus lhes saiu das mãos. Porque a glória humana, no final das contas, é como essas pedras intimidativas: antes convém esquivá-las.
Peçamos a Deus Nosso Senhor, às portas de sua Paixão, que nos conceda tudo obrar para Sua maior glória.
Padre Javier Olivera Ravasi, SE
03/04/2022
Fonte: Que no te la cuenten