Usaremos o texto do Padre Leonel Franca, presente em seu “A Crise do Mundo Moderno”, para explorar e desmistificar a mentira iluminista de que a Ciência está em contraposição a Fé. Pois, antes de ir ao texto, vejamos como isso reverbera na atualidade com um exemplo bem recente.
A ministra Damares (Direitos Humanos) declarou que “a igreja evangélica perdeu espaço na História. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A igreja evangélica deixou a ciência para lá. ‘Ah, vamos deixar a ciência caminhar sozinha’. E aí cientistas tomaram conta dessa área. E nós nos afastamos”. Por outro lado, o ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) declarou à rádio que “não se deve misturar ciência com religião”, afirmando que “do ponto de vista da ciência, são muitas décadas de estudo pra formar a Teoria da Evolução, de (Charles) Darwin em diante”. Fonte: O Globo
Sem entrar no mérito da teoria da evolução. Nota-se que o pano de fundo é se a religião tem legitimidade ou não para adentrar na discussão científica. Em outras palavras, se fé e ciência seriam realidades opostas ou complementares. Para ajudar na reflexão sobre o tema, vamos ao prometido texto do Padre Leonel Franca:
Padre Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno
Trecho do capítulo Cristianismo e Ciência:
Por mais viva e eficiente que nos antolhe a ação histórica do cristianismo na gênese e no progresso da ciência moderna, muito mais profunda e interessante é, na realidade, a sua influência doutrinária. À averiguação do fato, sucede a questão de direito: à conexão contingente dos acontecimentos, a relação necessária das idéias.
Ao examinar a evolução da ciência cumpre distinguir o conhecimento científico propriamente dito e o sistema geral do mundo que ele supõe e interpreta. Situada num plano mais elevado esta concepção do universo justifica, harmoniza e estimula o trabalho de investigação. Acima das normas técnicas que orientam imediatamente a atividade dos laboratórios há, consciente ou inconscientemente pressuposto, um panorama cósmico sem o qual a ciência não seria racional nem coerente. O cristianismo não nos trouxe um formulário prático de metodologia científica, mas transfigurou radicalmente a nossa concepção da natureza, tornando possível a ciência moderna.
Num mundo visto com olhos pagãos a cultura ocidental não teria respirado a atmosfera indispensável ao seu desenvolvimento. Ainda os príncipes da inteligência antiga não conseguiram dar-nos do mundo uma noção geral compatível com os postulados do pensamento científico. Para Platão o mundo submetido à observação dos sentidos não podia constituir objeto de conhecimento certo. A realidade verdadeira, estável, era privilégio das Formas inteligíveis (= Idéias), existentes fora do campo da experiência, num lugar dos inteligíveis, de determinação difícil e só acessível à inteligência dialética. O que atinge o nosso conhecimento sensível é precário, fugaz, sombra de realidade mais do que realidade genuína. Na visão platônica do mundo não há lugar para uma ciência experimental. O domínio da experiência não é suscetível de ciência, o domínio da ciência está fora da experiência. Aristóteles é mais positivo. A sua concepção hilemórfica das naturezas, imergida a forma na matéria, para constituir uma só realidade, corrige um dos erros essenciais do platonismo. Mas o mundo aristotélico não foi ainda de todo purificado para os olhos da inteligência. Subsiste ainda a noção do acaso, que nele introduz um elemento irracional e portanto imprevisível. Subsiste ainda a noção de uma matéria incriada, como força cega a limitar a inteligibilidade total do universo. Em quase todas as outras escolas – entre os estóicos de modo particular – a idéia de Destino, como princípio de determinação superior ao mundo da vontade divina e das vontades humanas, introduz ainda no dinamismo cósmico um princípio rebelde à universalidade de uma ordem racional. Além destes erros filosófico, a religião do vulgo povoava a natureza de uma multidão sem conta de grandes e pequenos deuses a inserirem no jogo dos fenômenos a ação arbitrária e indisciplinada de seus caprichos e paixões. Não é este certamente um mundo que se possa apresentar à inteligência como objeto de explicação científica.
O cristianismo transformou a visão das coisas. O dogma da criação e da Providência restituiu ao universo a solidez de sua realidade e transparência de sua racionalidade. Porque o mundo é criado e livremente criado a sua existência é contingente, é um fato, é livre a escolha das essências possível que serão efetivamente realizadas e livre ainda é a determinação dos indivíduos que hão de existir. Esta verdade dogmática justifica a atitude inicial da ciência que problema a necessidade imprescindível da experiência para atingir a existência do mundo, dos singulares concretos e das leis, que entre outras possíveis, de fato regem as atividades naturais. Porque a Criação é uma obra de uma Inteligência infinita que tudo dispõe in mensura et numero et pondere’ (Sap XI, 21) a razão investigadora do sábio encontra-se na realidade em face de um Cosmos ou de um Todo harmonioso, ordenado e inteligível. O mundo é uma obra d’arte. Os grandes princípios de unidade e simplicidade da natureza, que constituem os postulados indispensáveis da investigação científica, são um corolário espontâneo da concepção cristã do universo. Eliminam-se assim todos os elementos turvos e irremediavelmente irracionais na visão antiga do mundo. Achamo-nos na presença de um Todo, feito e ordenado, inteiramente permeável à razão. À ciência o cristianismo oferece um mundo inteligível.
No teatro deste mundo o homem desempenha um papel protagonista superior, pela singularidade de seus destinos. Não é apenas mais uma roda, ainda que em primeira importância, no complicado mecanismo da natureza. O homem é o rei da criação; todos os demais seres estão a seu serviço, como meios postos à sua disposição para a conquista de destinos que o elevam acima de toda a ordem cósmica. Filho de Deus, destinado à união e ao amor de Deus, todo o reino infra-humano dos objetos fica-lhe infinitamente abaixo. A consciência desta superioridade libertou-o do medo da natureza e deu-lhe, em face das coisas, a segurança tranquila de um senhor que explora domínio seus. “A ciência moderna, com seus caracteres de relatividade, de atividade conquistadora, de potência dominadora da natureza, de exaltação civilizadora e de libertação humana – caracteres que se opõe à concepção antiga de uma contemplação inoperante e de uma humanidade imersa no nível das coisas – pôde nascer, graças à superioridade do homem e de seu destino transcendente à natureza” (BLONDEL). Tanto pela sua idéia do universo como pela sua concepção do homem, o cristianismo infundiu no dinamismo interno da ciência a sua energia motriz, geradora de progressos indefinidos.
Nem se nos diga que o surto da ciência moderna não coincide cronologicamente com a aurora da pregação evangélica. Pouco importa outrossim que esta ou aquela verdade científica tivesse encontrado na resistência de alguns teólogos cristãos a barreira de oposição tenazes. O cristianismo agiu como um fermento que aos poucos penetra e transforma silenciosamente toda a massa. O tesouro das suas verdades vivido desde os primeiros dias em toda sua intensidade religiosa, só a pouco e pouco, através da longa elaboração medieval, fez entrar, no domínio da atividade científica, as ressonâncias profundas de suas consequências. Todas as contingências históricas, com a variedade de suas peripécias e episódios, não destroem a relação interna e necessária das idéias, mostram apenas que o tempo é um colaborador indispensável na evolução das doutrinas e realçam, com vivo relevo, que o cristianismo, feito à medida da humanidade, precisa de toda a sua história para realizar as riquezas de suas possibilidades inexauríveis. O reino dos céus é semelhante ao pequenino grão de mostarda.
Mas a benemerência real é incontestável. Reconhecem-no quantos, na análise do movimento civilizador, costumam descer à profundidade fecunda das grandes idéias diretrizes. Whitehead, um dos príncipes da ciência inglesa de nossos dias, escreve desassombradamente: “A Idade Média foi um exercício secular (training) da inteligência no sentido da ordem… foi uma época de pensamento ordenado… tinha fé na razão… Com o longe exercício da lógica e da teologia escolástica implantou-se no espírito europeu o hábito de pensar exatamente… A contribuição mais importante, porém, da Idade Média para a ciência moderna reside na concepção medieval da sabedoria de Deus Criador… A fé na possibilidade da ciência é um produto inconsciente da teologia da Idade Média”. Ao mesmo tempo Max Scherer na Alemanha ponha em relevo a mesma verdade: “A idéia judeu-cristã de um só Deus Criado e seu triunfo sobre a religião e a metafísica da antiguidade foi, sem nenhuma dúvida, a condição primordial do surto magnífico das ciências da natureza no Ocidente. Este desencantamento da natureza e, portanto, a preparação para as pesquisas realmente objetivas e científica foi um acontecimento de alcance sem par na história da ciência no Ocidente. A idéia de um Deus que é ao mesmo tempo, Espírito, Vontade, Atividade e Criador – idéia que não entreviram o gênio grego e o gênio romano, Platão ou Aristóteles -, envolveu de claridade incomparável o trabalho da investigação científica e da conquista do mundo infra-humano e conseguiu que no Ocidente a natureza fosse desencantada, exorcizada, distanciada e racionalizada em grau desconhecido aos povos do Oriente e da antiguidade”.
Obs: foram feitas pequenas adaptações para um português mais modernos e, para dar mais fluidez ao texto, não trouxemos as esclarecedoras e ricas notas de rodapé (mas que com certeza estarão na reedição da obra por nossa editora).