O mundo tradicional ligado ao Rito Romano Tradicional está em apreensão ante os burbúrios quentes noticiado pelo site católico Rorate Caeli da publicação iminente de um documento que dará uma “solução final” para o rito, isto é, a abolição do rito.
Diante disso, novamente, debate-se a possibilidade de um Papa abolir o venerável rito romano.
No debate, situam-se, geralmente, os católicos tradicionalistas e os continuístas. Os primeiros, em regra, suscitam como argumento de impossibilidade de abolição da Missa Tradicional a Bula Quo Primum Tempore de São Pio V, arguindo que o documento assegura que qualquer padre, sem nenhuma restrição, pode rezar a Missa Tradicional. Aduzem ainda que o Missal Romano não pode sofrer grandes alterações em razão das seguintes palavras do documento:
“Em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo teor da presente Bula, concedemos e damos o indulto seguinte: que, doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição seguir este Missal com permissão e poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto para sempre.”
Já os segundos, os continuístas, respondem aos primeiros argumentando que a referida bula é um documento meramente disciplinar, não se tratando de uma declaração ex cathedra. Opiniões como esta podem ser vistas, por exemplo, no livro dos escritores católicos James Likoudis e Kenneth Withehead “The Pope, the Council, and Mass“:
“É claramente um documento disciplinar. O Papa São Pio V não está empenhado em definir a doutrina sobre a Missa; ele se preocupa em estabelecer uma disciplina uniforme em todo o Rito Romano no que diz respeito à forma de celebrar a Missa.
Assim, Quo Primum não envolve a questão da infalibilidade do papa; não é uma declaração que trata de fé e de moral que nunca poderia ser revertida em virtude de ter sido emitida ex cathedra por um papa agindo na sua qualidade de pastor e professor de todos os cristãos ou por outras formas pelas quais o papa pudesse exercer a sua infalibilidade. Pelo contrário, é um documento disciplinar no qual o papa se esforça para garantir que a nova revisão do Missal Romano que ele está promulgando será seguida em todos os lugares onde o Rito Romano é celebrado. Isso fica evidente pela linguagem do texto. O papa dedica tanto espaço para especificar como o novo Rito Romano deve ser celebrado e tanto espaço para especificar como o novo Missal Romano deve ser impresso e divulgado em toda a Igreja – até mesmo entrando na diferença entre os padres ao sul dos Alpes ou além dos Alpes e o tempo necessário para transmitir mensagens naqueles dias – como ele faz com os pontos que alguns interpretaram como significando que este documento estabelece uma disciplina particular da Missa de uma vez por todas.”
Em apoio a esta interpretação, os continuístas citam uma resposta sobre a Quo Primum Tempore da Congregação do Culto Divino, em 11 de junho de 1999:
“Pode um Papa fixar um rito para sempre?
Resp.: Não. Sobre ‘Ecclesiae potestas circa dispensationem sacramenti Eucharistiae’, o Concílio de Trento declara expressamente: “Existe perpetuamente na Igreja este poder para, na dispensação (ministério) dos sacramentos, salva a substância deles, estatuir e mudar aquelas coisas que julgar melhor para a utilidade dos que os recebem ou veneração dos próprios sacramentos, segundo a variedade das coisas, tempos e lugares” (DS 1728). Do ponto de vista canônico, deve-se dizer que quando um Papa escreve ‘perpetuo concedimus’, deve-se sempre subentender ‘até que seja ordenado de outro modo’. É próprio da autoridade soberana do Romano Pontífice não ser limitado nas leis meramente eclesiásticas, muito menos pelas disposições dos seus Predecessores. Ele é ligado somente à imutabilidade das leis divina e natural, além da própria constituição da Igreja.”
Uma Nova Abordagem
Em que pese a posição de ambos, trataremos neste artigo de uma terceira abordagem que não nega fundamentalmente a impossibilidade de abolição do Rito Tradicional e nem postula que o Papa não possa propor um novo rito romano para a Igreja.
O argumento deste artigo será de tipo provável. A tese que defenderemos é: O Missal de São Pio V, provavelmente, não pode ser extinto, porque ele é o modelo perfectivo de como rezar a missa.
1. A longevidade da Missa de São Pio V como sinal de aprovação divina
A probabilidade do Missal de São Pio V não ser ab-rogado advém do fato de que este missal, apesar da superveniência do missal paulino e das inúmeras restrições que sofreu nos anos recentes com o motu proprio Traditiones Custodes, não foi extinto.
Este estilo de argumentação também é utilizado por São Roberto Belarmino em suas “Disputas sobre a Fé Cristã“, primeiro volume, acerca da impossibilidade da transferência da Sé de Pedro para outra diocese:
“Não obstante, é piedosa e muito provável a sentença de que a cátedra de Pedro não pode ser separada de Roma, e que, portanto, a Igreja Romana não pode absolutamente errar nem desfalecer. Isso se prova, em primeiro lugar, porque a Sé Apostólica permaneceu em Roma por tanto tempo, apesar de inumeráveis perseguições e ocasiões de retirar-se. Primeiramente, houve a maior ocasião de transferir a Sé de Roma para algum outro lugar nos tempos dos imperadores gentios. Eles, de fato, não toleravam de muito bom grado que a Sé Apostólica estivesse em Roma; e por isso, tão logo ouviam que fora criado um novo pontífice, ou o matavam ou o deportavam para o exílio. É por isso que Cipriano, louvando a constância do Papa Cornélio, assim diz: “Quão grande é a virtude que ele demonstrou ao assumir o episcopado? Quão grande a força de espírito, que firmeza de fé! Ele se sentou intrepidamente em Roma, na cátedra sacerdotal, no tempo em que o tirano, inimigo dos sacerdotes de Deus, ameaçava coisas dizíveis e indizíveis. Ele ouvia que se levantava contra ele um príncipe rival com muito mais paciência e tolerância do que ouvia que era constituído em Roma um sacerdote de Deus.” (p. 660)
Belarmino não trata esta sentença como de fé, mas compreende como provável e pia. No entanto, é provável pelo tempo de duração que a Sé Apostólica permaneceu Roma, apesar das oportunidades de ser se retirar. Neste caso, Belarmino enxerga a longevidade da Sé Romana como um inequívoco sinal de proteção divina e de provável sinal e de que a cátedra de Pedro não pode se separar de Roma.
A honestidade intelectual pede-nos que reconheçamos que o Missal de São Pio V não se tratou de uma revolução litúrgica, mas da codificação do desenvolvimento do rito até então. Este fato é confessado pela própria Instrução Geral do Missal Romano, que alega que o Missal de São Pio V não era substancialmente diferente do Missal de 1474, isto é, de 100 anos antes, e que o mais importante para o Pontífice de então era salvaguardar a tradição da Missa Romana trazendo o mínimo de alterações nos ritos sagrados:
“Numa época particularmente difícil como aquela, em que estava em perigo a fé católica sobre o caráter sacrificial da Missa, sobre o sacerdócio ministerial, sobre a presença real e permanente de Cristo sob as espécies eucarísticas, o que acima de tudo importava, para S. Pio V, era salvaguardar uma tradição, algo recente, é certo, mas injustamente atacada, e, consequentemente, introduzir o mínimo de alterações nos ritos sagrados. De fato, este Missal de 1570 pouco difere do primeiro que fora impresso em 1474, o qual, por sua vez, reproduz fielmente o Missal do tempo de Inocêncio III. Além disso, se bem que os códices da Biblioteca Vaticana tenham ajudado a corrigir algumas expressões, não permitiram, no que respeita aos “antigos autores mais insignes”, conduzir o trabalho de investigação para além dos comentários litúrgicos da Idade Média.”
Assim, corretamente disse Michael Davies, no livro A Missa Nova de Paulo VI, que a Bula Quo Primum Tempore
“não legislava sobre como a Missa deveria ser celebrada, mas dava sanção legal à maneira como a Missa já estava sendo celebrada. A característica primária do desenvolvimento litúrgico até o Vaticano II era que a legislação codificava o desenvolvimento, não que o desenvolvimento fosse iniciado pela legislação”
A autoridade de Joseph Ratzinger confirma este entendimento:
“O Concílio de Trento não “fez” nenhuma liturgia. E tampouco há nenhum missal de Pio V em sentido estrito. O missal que apareceu no ano de 1570 por encargo de Pio V só diferia em pequenezas da primeira edição impressa do missal romano, aparecida uns cem anos antes. Na reforma de Pio V se tratava simplesmente de eliminar as impurezas que foram se infiltrando durante a Baixa Idade Média e os erros que se cometeram ao copiar e imprimir, voltando a estabelecer como regulamentar para toda a igreja o Missal Romano, que quase não havia sido afetado por estes avatares. Ao mesmo tempo era preciso acabar com as inseguranças, que se produziram na confusão das mudanças litúrgicas do tempo da reforma luterana, já que a diferença entre o católico e o específico da reforma se havia feito cada vez mais difusa; tentou-se evitar este problema estabelecendo o uso exclusivo e o caráter obrigatório do missal “typicum”, impresso em Roma. Também se pode ver que essa era a única intenção no fato de que não se reformassem os costumes litúrgicos de mais de duzentos anos de antiguidade.” (RATZINGER, Josep. La fiesta de la fe: Ensayo de Teología Litúrgica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1999, p. 116.)
O Rito Romano Tradicional, 400 anos depois, mesmo depois do Concílio Vaticano II, não foi ab-rogado e continua a ser celebrado em inúmeras dioceses do mundo inteiro tanto por padres diocesanos quanto por sacerdotes vinculados aos institutos tradicionais de direito pontifício, sendo, portanto, inequívoco que Deus quer que a Missa Tradicional continue. A respeito, resume bem este pensamento o Pe. Chad Ripperger em seu livro “The Limits of Papal Authority over the Liturgy“:
“… Uma vez que a Igreja foi estabelecida para dar a Deus um culto devidamente ordenado, qualquer coisa que desordene ou desagrade a Deus acabará por ser removida da liturgia da Igreja. Isso não significa que, durante um período de heresia, elementos errôneos ou desordenados não entrarão na liturgia, mas que eventualmente Deus moverá o papa ou as autoridades legítimas a remover aqueles elementos que são contrários à fé. Portanto, o princípio que sustenta este processo é que Deus vigia a liturgia e move o papa ou as autoridades legítimas a remover aquelas coisas que não O agradam.
O inverso disso, portanto, também é válido. Devido ao fato de Deus ser o Senhor da História, de ter estabelecido a Igreja para Lhe dar um culto bem ordenado, tanto que Ele deu instruções detalhadas, nada permanece na liturgia durante um longo período de tempo que não seja a Vontade de Deus que esteja aí. A partir disso, o princípio é que a longevidade de um elemento da liturgia dá indicação da Vontade de Deus em relação a esse elemento. Formulando de outra forma, a duração de algo nos livros litúrgicos determina o quanto Deus deseja isso na liturgia. Se algo é da Tradição Apostólica, isso indica que Deus geralmente quer esse elemento na liturgia por toda a duração da História da Igreja.” (p. 42-43)
A longevidade de um rito inequivocamente o torna venerável e refreia o poder disciplinar da Igreja sobre ele, pois as coisas antiquíssimas da Igreja sinalizam aprovação divina e também perfectibilidade ou maturidade para santificar e ilustrar a doutrina. A Igreja simplesmente não pode destruir o que é perfeitamente sacro.
Exemplos de tradições longevas na Igreja são o canto gregoriano, a comunhão na língua e o celibato sacerdotal. Algum continuísta mais progressista poderá dizer que são coisas que podem ser abolidas por um papa, mas a verdade é que não podem.
O canto gregoriano não é música sacra por direito eclesiástico, mas por excelência, isto é, é de sua natureza ser música sacra. Ele não nasceu com a Igreja, mas nela permaneceu por vontade divina. Sua longevidade fez a Igreja concluir que música gregoriana também fosse o seu autêntico canto litúrgico para a missa romana. Nesse sentido, dizia o Papa São Pio X, no motu proprio Tra Le Sollicitude:
“Estas qualidades [da música sacra] se encontram em grau sumo no canto gregoriano, que é por conseqüência o canto próprio da Igreja Romana, o único que ela herdou dos antigos Padres, que conservou cuidadosamente no decurso dos séculos em seus códigos litúrgicos e que, como seu, propõe diretamente aos fiéis, o qual estudos recentíssimos restituíram à sua integridade e pureza.
Por tais motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo.”
A comunhão na língua, como ensinou Paulo VI na instrução “Memoriale Domini“, foi um desenvolvimento oriundo de uma maior compreensão do mistério eucarístico e da reverência devida ao Sacramento da Eucaristia:
“Posteriormente, com uma (i) compreensão mais profunda da verdade do mistério eucarístico, de seu poder e da presença de Cristo nele, sobreveio (ii) um maior sentimento de reverência para com esse sacramento e sentiu-se que se demandava uma maior humildade quando de seu recebimento. Foi, portanto, estabelecido o costume do ministro colocar uma partícula de pão consagrado sobre a língua do comungante.
Esse método de distribuição da Santa Comunhão deve ser conservado, levando-se em consideração a situação atual da Igreja em todo o mundo, não apenas porque possui (iii) por trás de si muitos séculos de tradição, mas especialmente (iv) porque expressa a reverência do fiel pela Eucaristia“
Se resumíssimos as razões dadas por Paulo VI para a comunhão na língua seriam quatro:
- a longevidade da prática;
- a demonstração inequívoca da reverência do fiel;
- a distinção perfeita que faz entre o Sacramento e o pão e vinho comuns;
- a garantia, mais efetiva, da recepção digna da Eucaristia;
Apesar da comunhão na mão, hoje, ser majoritária, a Igreja assegura que a forma preferencial de comunhão é na língua. Os séculos de tradição por trás dessa prática são arguidos por Paulo VI como razão para a Igreja não abolir esta forma de comungar e para demonstrá-la como forma perfectiva de comunhão.
Por fim, sobre o celibato sacerdotal, Pio XI, na Encíclica Ad Catholici Sacerdotti, declara que esta disciplina corresponde mais ao desejo de Cristo para os sacerdotes:
“Apesar de tudo isto, não desejamos que o que dissemos em elogio ao celibato clerical seja interpretado como se fosse de alguma forma culpar ou, por assim dizer, desaprovar a diferente disciplina legitimamente prevalecente na Igreja Oriental. O que dissemos pretendeu apenas exaltar no Senhor algo que consideramos uma das mais puras glórias do sacerdócio católico; algo que nos parece corresponder melhor aos desejos do Sagrado Coração de Jesus e aos Seus propósitos em relação às almas sacerdotais.” (n. 47)
Paulo VI, na Encíclica Sacerdotalis Caelibatus, aduz que a vivência do celibato tanto no passado quanto no presente, apesar de tantas objeções, demonstram a ativa atuação divina na proteção dessa disciplina:
“Este coro de objeções parece que sufoca a voz secular e solene dos Pastores da Igreja, dos mestres de espírito, do testemunho vivido duma legião sem número de santos e de fiéis ministros de Deus, que fizeram do celibato objeto interior e sinal exterior da sua alegre e total doação ao mistério de Cristo. Não, esta voz é ainda forte e serena; não vem só do passado, vem do presente também. Constantemente atento como estamos a observar a realidade, não podemos fechar os olhos a este fato magnífico e surpreendente: na santa Igreja de Deus, em todas as partes do mundo onde ela levantou felizmente as suas tendas, ainda hoje há inumeráveis ministros sagrados – subdiáconos, diáconos, presbíteros e bispos – que vivem de modo ilibado o celibato voluntário e consagrado; e, ao lado destes, não podemos deixar de notar as falanges imensas de religiosos, religiosas, e também de jovens e leigos, todos fiéis ao compromisso da perfeita castidade: vivem-na, não por desprezo do dom divino da vida, mas por amor superior à vida nova que brota do mistério pascal; vivem-na com austeridade corajosa, com religiosidade alegre, dum modo exemplar e íntegro, e mesmo com relativa facilidade. Este grandioso fenômeno prova a realidade singular do reino de Deus, vivo no seio da sociedade moderna, à qual presta o humilde e benéfico serviço de “luz do mundo” e de “sal da terra” (cf. Mt 5, 13-14). Não podemos calar a nossa admiração: neste fenômeno, sopra indubitavelmente o Espírito de Cristo.” (n. 13)
Todos estes exemplos são concordes em apontar que a longevidade de uma tradição, geralmente, significa direitos de cidadania dela na Igreja bem como a perfectibilidade dela enquanto tradição, a despeito de outras tradições ou disciplinas.
O mesmo raciocínio é aplicado por Bento XVI no motu proprio Summorum Pontificum para o Rito Romano Tradicional:
Art. 1. O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da «lex orandi» («norma de oração») da Igreja Católica de rito latino. Contudo o Missal Romano promulgado por São Pio V e reeditado pelo Beato João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma «lex orandi» e deve gozar da devida honra pelo seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da «lex orandi» da Igreja não levarão de forma alguma a uma divisão na «lex credendi» («norma de fé») da Igreja; com efeito, são dois usos do único rito romano.
Por isso é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano, promulgada pelo Beato João XXIII em 1962 e nunca ab-rogada, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja.
Nota-se que Bento XVI não nega o poder da Igreja de formular novas edições do Missal Romano, mas reconhece que, quando se está diante de um rito venerável e antigo, o poder disciplinar da Igreja não pode simplesmente ab-rogá-lo, pois a presunção existente é: numa longeva tradição se contém a Tradição Apostólica e os melhores desenvolvimentos doutrinários e disciplinares.
O mesmo cuidado teve São Pio V, na ocasião da publicação da Quo Primum Tempore, quando determinou a abolição de ritos com menos de 200 anos de existência, isto é, ritos sem apostolicidade e longevidade garantidas.
2. A perfectibilidade da Missa de São Pio V
Como dissemos, a longevidade de uma tradição, em regra, também demonstra que ela é perfectível enquanto tradição ou disciplina, pois manifesta a vontade de Deus e a ação da sua Providência.
Diremos, portanto, que é muito provável que a Missa de São Pio V seja o ápice da maturidade do Rito Romano e dos ritos católicos.
Bento XIV, sobre o tema, em seu Breve “Etsi pastoralis“, de 26 de maio de 1742, ensina o seguinte:
“[…] pois o rito latino, em razão de sua preeminência, por ser o rito da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, está acima do rito grego e prevalece, sobretudo nas regiões italianas em que os gregos estão sujeitos a Bispos latinos”.
Alguns dirão, no entanto, que esta prevalência referida por Bento XIV é meramente canônica, de iure, que não significa em absoluto superioridade intrínseca do Rito Romano sobre os demais.
No entanto, há motivos para sustentarmos que a prevalência do Rito Romano Tradicional, rito a que se referia Bento XIV, sobre os demais não é meramente jurídica, mas também de fato.
Esta opinião é sustentada pelo renomado liturgista Adrian Fortescue em seu livro “A Missa: um estudo sobre a liturgia romana“;
“Assim, nossa Missa remonta, sem mudança essencial, à época em que primeiro se desenvolveu a de partir da mais antiga liturgia de todas. Mantém ainda a fragrância daquela liturgia, dos dias em que César governava o mundo e pensava que poderia eliminar a fé em Cristo, quando nossos pais se reuniam antes do amanhecer e cantavam um hino a Cristo reconhecendo-O como Deus”. O resultado final de nossa investigação é que, apesar dos problemas não resolvidos, apesar das mudanças posteriores, não há na cristandade outro rito tão venerável quanto o nosso.” (p. 157)
A nossa razão para a primazia do Rito Romano Tradicional é esta: é conveniente que haja entre os ritos católicos aquele que melhor demonstre a celebração do Mistério Eucarístico naquilo que é essencial. É melhor que este rito seja o da Igreja Romana, pois ela preside todas as demais igrejas.
Constitui o essencial do sacrifício da Missa não somente as palavras da Consagração como também o Ofertório da missa e a comunhão do padre. Nesse sentido, citamos, novamente, o Pe. Chad Ripperger em seu livro já mencionado neste artigo:
“A essência do sacrifício da Missa não consiste apenas na forma e na matéria do sacramento. Na verdade, inclui três elementos essenciais, a saber, o Ofertório, o Cânon (mais especificamente o assassinato da vítima) e a comunhão do sacerdote. Quanto ao Ofertório, se um ritual da Missa não contivesse um ofertório adequado, então seria uma refeição no sentido próprio. Pois o que distingue uma refeição de um sacrifício é precisamente o Ofertório. Se uma pessoa mata uma vítima e a come, sem dedicá-la ou consagrá-la a Deus por meio de ofertório, isso é o que constitui uma refeição. Ao passo que, feito o Ofertório, as oblatas ficam afastadas do uso profano e seu objetivo principal não é mais satisfazer quem as come, ainda que isso possa ocorrer. Em vez disso, os oblata estão agora destinados a serem mortos e consumidos precisamente para a adoração de Deus e Seu prazer. Embora o Santo Sacrifício da Missa retenha elementos de uma refeição ao ter um assassinato de uma vítima e uma consumação, esses elementos não são mais vistos sob esse aspecto, uma vez feito o Ofertório, porque a satisfação da criatura no consumo da vítima não é mais o fim primário.” (p. 54-55)
Não é possível sustentar que todos os ritos sejam iguais em dignidade em seus elementos particulares. Há rito, como o das igrejas caldéia e assíria, que sequer possui as palavras da consagração (anáfora de Addai e Mari). Basta este exemplo para demonstrar que deve existir uma hierarquia entre os ritos da Igreja Católica não apenas de direito, mas também de fato.
Não é o âmbito deste artigo, contudo, comparar absolutamente todos os ritos da Igreja para demonstrar que, nos três aspectos essenciais do sacrifício da missa, o Rito Romano Tradicional é superior e mais venerável. Deixemos isso aos liturgistas. Ainda assim, é provável esta sentença, tendo em vista aquilo que ensinava Santo Tomás de Aquino:
“O que possui a mais alta autoridade é o costume da Igreja, que deve ser preferido a tudo o mais, pois a própria doutrina dos doutores católicos tira a sua autoridade da Igreja. Por onde, devemos nos apoiar, antes, na autoridade da Igreja do que na de Agostinho, de Jerônimo ou de qualquer outro doutor” (Summa Theologica, II-II, q. 10, a.12)
Não são apenas os doutores católicos que tiram a sua doutrina da Igreja Romana, mas também as demais igrejas sui iuris. Assim, é razoável concluir que os melhores frutos da Cristandade são produzidos, ulteriormente, pela Igreja Romana, incluindo aí a melhor norma para a celebração da Santa Missa.
Neste contexto, sobre a norma da Missa, diz Dom Prósper Guéranger na obra “Missa Tridentina“:
“o Canon Missae significa regra da missa, e essa parte é verdadeiramente o que constitui a missa: é o que se pode chamar missa por excelência” (p. 86)
Ora, a única “regra de Missa” definida infalivelmente pela Igreja como ausente de todo erro e dotada de todas as virtudes para se celebrar santamente o Sacrifício da Missa não foi a de qualquer rito bizantino ou mesmo a do missal paulino, mas a do Rito Romano Tradicional. O Concílio de Trento, a respeito, assim ensina:
“942. Sendo conveniente que as coisas santas se administrem santamente, e sendo este sacrifício entre todos o mais santo, instituiu a Igreja Católica já há muitos séculos o Cânon sagrado, tão purificado de todo o erro [cân. 6], que nele não há nada que não rescenda a suma santidade e piedade, nada que não eleve a Deus as almas dos que o oferecem. Pois ele se compõe das palavras do mesmo Senhor, como das tradições dos Apóstolos e das piedosas instituições dos Sumos Pontífices.”
Nota-se que nem todos os ritos da Igreja são compostos integralmente das palavras de Nosso Senhor, da Tradição Apostólica e das instituições dos Romanos Pontífices. Do Rito Romano Tradicional, porém, podemos ter certeza que o Canon Missae, isto é, a regra da Missa Romana, é divinamente revelado, tradicional e suscita a mais alta (“suma”) forma de piedade, sendo um verdadeiro modelo de Missa para todas as missas assim como Santo Tomás de Aquino é modelo de mestre entre os teólogos e o canto gregoriano modelo de música sacra.
Assim, a conclusão inexorável da argumentação exposta é: a Missa de São Pio V não pode ser extinta.
O professor e filósofo Joathas Bello forneceu a conclusão que aderimos integralmente:
“Que o Missal de S. Pio V (com as reformas até 1962) nunca tenha sido ab-rogado é confirmado pelo Motu Proprio Summorum Pontificum, de 2007, do Papa Bento XVI. Agora, a perpetuidade da Bula se funda, não na autoridade eclesiástica suprema de Pio V – idêntica à de Paulo VI –, mas na perpetuidade do caráter tradicional, revelado, da Liturgia Romana então purificada e codificada: esta última é que determina a perpetuidade da primeira, e não o contrário. O Missal de S. Pio V nunca foi e nunca será ab-rogado (em sua parte essencial) porque isto significaria ab-rogar… a Liturgia Romana de São Pedro e São Paulo! De São Gregório Magno, de São Pio V e de todos os Papas até o CVII.”
3. Pecando contra a Tradição
Renomados teólogos são concordes que seria um pecado gravíssimo contra a fé e a caridade se um Papa abolisse os ritos tradicionais da Igreja.
Francisco Suarez:
“O Papa poderia ser cismático, se não quisesse manter a união e a conjunção que deveria ter com todo o corpo da Igreja, como se tentasse excomungar toda a Igreja ou se quisesse derrubar todas as cerimônias eclesiásticas estabelecidas pela tradição apostólica, que Caetano observou, 2.2, 9.39.” (De Caritate, XII, I)
Karl Rahner:
“Imagine que o Papa, como pastor supremo da Igreja, emitiu hoje um decreto exigindo que todas as igrejas unidas do Oriente abandonassem a sua liturgia oriental e adotassem o rito latino….O Papa não excederia a competência do seu primado jurisdicional e o decreto seria legalmente válido.
Mas também podemos colocar uma questão totalmente diferente. Seria moralmente lícito que o Papa emitisse tal decreto? Qualquer homem razoável e qualquer cristão verdadeiro teria de responder “não”. Qualquer confessor do Papa teria de lhe dizer que na situação concreta da Igreja hoje tal decreto, apesar da sua validade jurídica, seria subjetiva e objetivamente uma ofensa moral gravíssima contra a caridade, contra a unidade da Igreja bem entendida (que não exige uniformidade), contra a possível reunião dos Ortodoxos com a Igreja Católica Romana, etc., um pecado mortal do qual o Papa só poderia ser absolvido se revogasse o decreto.” (Studies in Modern Theology de Karl Rahner (Herder, 1965, pp. 394-395)
(Obs: Discordamos de Rahner apenas no entendimento de que o Papa não excederia a competência do seu primado jurisdicional. Se um tal decreto configura uma ofensa moral gravíssima contra a unidade da Igreja, então ele seria iníquo e não teria validade jurídica alguma.)
O Pe. Chad Ripperger em seu livro “The Binding Force of Tradition” diz que a rejeição dos monumentos construídos pela Tradição, nos quais os ritos tradicionais se inserem, seria um pecado contra fé:
“Quando uma pessoa não aceita a Sagrada Tradição que lhe é transmitida ou não transmite o que lhe foi confiado, peca contra a virtude da fé. Pois a fé é a virtude sobrenatural infundida no intelecto pela qual damos consentimento ao que é revelado. No entanto, o que é revelado é transmitido através da tradição e, portanto, a virtude da fé exige que dêmos assentimento ao que pertence à Sagrada Tradição. Mas em certos momentos da história, e particularmente nos tempos modernos, houve uma rejeição da tradição, uma introdução de novidades e uma mudança constante de tudo, desde as formulações doutrinárias até aos monumentos. Como a estrutura monumental das igrejas mudou, muitas vezes aquilo que as pessoas acreditam mudou. Visto que os monumentos manifestam a nossa fé (como a liturgia), se eles forem modificados demais, pode-se ficar com a impressão de que a fé mudou. Os próprios monumentos são uma forma de expressão da fé e encarnam a fé numa matéria visível. Quando estas manifestações visíveis da fé são atacadas ou alteradas, psicologicamente as pessoas sentem a sua fé atacada ou alterada. Portanto, se uma pessoa rejeita qualquer parte da tradição, recusando-se a aceitar tudo, desde os monumentos até às formulações doutrinárias, ela peca contra a fé, não apenas na medida em que estes ataques são muitas vezes uma expressão contra a fé ou mesmo uma manifestação da sua vontade, a própria falta de fé é um ataque à fé de quem construiu o monumento ou de quem formulou a doutrina e é também um ataque à fé de quem deveria receber esses monumentos ou formulações de doutrina para dar maior clareza, estabilidade e certeza à sua fé.”
Também seria um pecado contra a caridade:
“A caridade é definida como a virtude sobrenatural infundida na vontade pela qual a pessoa ama a Deus e ao próximo por amor de Deus. Se alguém ama a Deus e ao próximo, sempre se certificará de que a tradição seja transmitida intacta para a maior garantia possível da salvação daqueles que recebem essa tradição. Mesmo a própria construção de monumentos foi muitas vezes feita por amor de Deus e, portanto, destruir um monumento sem uma razão suficiente é um pecado contra a caridade, ou seja, um pecado contra o amor de Deus. Mas é também um pecado contra o próximo que é privado do magnífico monumento que o inspiraria e elevaria a sua mente e o seu coração a orar e a amar a Deus.
Se alguém ama o próximo, desejará garantir que o próximo receba a tradição tão plenamente quanto possível para o bem da sua salvação. As extensas mudanças recentes na tradição tornaram mais difícil a salvação das nossas almas, o que é contra a caridade. O assalto aos monumentos, bem como a clareza doutrinária sobre a fé e a moral ensinada pela Igreja, devastou os afetos que as pessoas têm pelas coisas da fé, às quais deviam estar apegadas de uma forma devidamente ordenada. O impacto que teve nas pessoas é claramente contra a caridade e não pode ser interpretado de outra forma que não seja pecaminoso, muitas vezes gravemente pecaminoso, especialmente quando falamos do desprezo com que estas coisas foram mudadas, bem como do desprezo demonstrado por aqueles que foram atados a elas de maneira corretamente ordenada.”
Também seria um pecado contra a prudência:
“Tem havido uma violação da virtude da prudência sobrenatural pela obscuridade do ensino nos documentos provenientes do Magistério, o que é um reflexo da prudência carnal. Existe esta ideia de que se eles não suavizarem as expressões doutrinárias, modificarem o rito da Missa para acomodar o homem moderno, deixarem de evangelizar os Judeus ou os Ortodoxos ou coisas deste tipo, então não seremos capazes de apelar a eles para obterem-los na Igreja. Por causa do respeito humano, a prudência sobrenatural ficou em segundo plano e esta mentalidade não consegue compreender que as pessoas se convertem quando as doutrinas da Igreja lhes são esclarecidas. A fé vem através do ouvir, mas o que uma pessoa ouve deve ser claro, caso contrário, ela não poderá concordar. O rito da Missa deve ter todo o seu esplendor que lhe foi legado pela tradição porque, na medida em que o faz, apelará ao que há de nobre no homem e se tornará um instrumento de conversão, o que acontecia muitas vezes antes do Concílio Vaticano II. Muitas pessoas se converteram devido ao esplendor, clareza e profundidade da antiga liturgia.”
Contra a justiça:
“Sendo a construção deste tipo de monumentos uma manifestação da devoção que surge da caridade e da fé daqueles que os construíram, modificá-los radicalmente, sem razão suficiente, é um pecado contra a piedade. Os monumentos são patrimônio geral da Igreja, sob a guarda de particulares, mas esses particulares não têm o direito de destruir esses monumentos, uma vez que pertencem ao patrimônio geral da Igreja. Não é propriedade deles. Tal destruição é uma espécie de roubo em que as gerações subsequentes são roubadas de monumentos que enobreceriam o seu espírito e elevariam as suas mentes e corações a Deus. É uma espécie de roubo a Deus, que merece adoração em igrejas devidamente designadas. Monumentos deste tipo fortalecem a fé de quem os vê e os instrui nos ensinamentos da Igreja através das diversas estátuas e santos ali representados.”
Por fim, contra a virtude da religião:
“Ao passo que, quando a liturgia sofre grandes mudanças como um afastamento da tradição, é difícil garantir que essas mudanças estejam em congruência com os princípios tradicionais, princípios que recebemos dos Padres e dos santos da Igreja. Neste sentido, não podemos ter certeza de que adoraremos corretamente se nos afastarmos dos princípios tradicionais e podemos até dizer que muito provavelmente não adoraremos corretamente se nos desviarmos da tradição. Seguindo a tradição, salvaguardamos a nossa capacidade de seguir o Primeiro Mandamento que nos ordena prestar o devido e adequado culto a Deus. Qualquer desvio da tradição que não esteja enraizado nos princípios tradicionais corre o risco de violar o Primeiro Mandamento. O Primeiro Mandamento existe para garantir que prestamos a devida adoração a Deus e, uma vez que a adoração se enquadra na justiça, existe para garantir que cumpramos as nossas obrigações em justiça para com Deus. O desvio da tradição corre o risco de cometer injustiça contra Deus.”
Como demonstrado, a rejeição dos monumentos da Tradição, isto é, as grandes devoções e os grandes ritos da Igreja, constituem uma rejeição virtual à própria Igreja e, ulteriormente, ao próprio Deus.
Nenhum papa, bispo ou teólogo pode ter em seu coração o desejo de simplesmente acabar com ritos tradicionais sem pecar contra a Igreja.
Disso se conclui que, se a Igreja Romana não pode desfalecer na fé, ela jamais abolirá os ritos da Tradição.
Por isso que, mesmo depois das mudanças litúrgicas de 1969, os Pontífices e teólogos da Igreja foram constrangidos a reconhecer que a Missa Tridentina jamais foi ab-rogada.
Conclusão
A respeito, diante do quadro da iminente publicação de um documento que visa “dar uma solução final para a Missa Tridentina“, devemos entender que a solução jamais poderá ser “final”. A Missa Tradicional é indestrutível e jamais será extinta pela Igreja.
O documento, se publicado, como muitos antecipam, deverá salvaguardar os institutos sacerdotais que possuem como carisma exclusivo a celebração da liturgia tradicional. Evidentemente, a extinção das missas tradicionais diocesanas já seria a pior tragédia da História da Igreja, mas Deus deverá evitar que a tragédia seja total.
No mundo do futebol, quando um time poderoso está em crise, mas ninguém o elimina de um campeonato, dizemos que se perdeu uma grande oportunidade de “torcer a faca”. Em regra, nesses casos, o time se recupera da crise e vence o campeonato.
A Missa Tradicional é um gigante, um colosso, não importa os ataques, ela sempre sobreviverá no final.
Viva a Missa de São Pio V, rito santo e venerável!