1. O INSTINTO NARRATIVO
A clássica ideia de logos utilizada por Aristóteles na sua famosa definição de homem não abarca apenas a noção de razão enquanto pensamento abstrato. Razão é compreendida também em seu domínio linguístico. É próprio do “animal racional” não apenas ver e pensar. O homem é o animal que fala o que vê e conta o que pensa.
Além disso, a capacidade reflexiva da racionalidade possibilita que o homem busque conhecer – e, portanto, contar – não apenas elementos do mundo externo, mas também do seu mundo interior e de sua identidade. Esse esforço racional do sujeito, refletido sobre si mesmo e transmutado em linguagem, se chama narrativa.
“O único modo de ser da vida é viver e o único modo de falar da mesma em sua concretude real é contá-la. A narração é a forma de apresentação ou patentização da vida humana em sua articulação interna” (Julian Marías[1]).
A verdade da vida do homem é essencialmente verdade no tempo, é verdade como distensão temporal. Racionalidade torna-se aqui necessariamente narração. O homem só encontra sua verdade quando se compreende narrativamente. É desse confronto entre a individualidade e a história que emerge algo que poderíamos chamar de instinto narrativo. É somente contando sua história que o homem pode se compreender. Ele é vocacionado a se entender narrativamente.
Talvez o exemplo mais claro dessa atividade seja a figura de Santo Agostinho. Não é à toa que a sua busca pela verdade tenha assumido a forma de uma Confissão. Não há busca sincera pela verdade sem a narrativa confessional da minha verdade.
No entanto, um olhar mais demorado sobre esse fenômeno nos mostra que a busca dessa verdade do eu não é apenas a construção de uma narrativa histórica, mas sim a compreensão do eu dentro de uma história. Esse instinto narrativo não é apenas o chamado a criar um arco narrativo ficcional, mas é o mecanismo pelo qual eu me entendo ao entender o arco narrativo real no qual me encontro. Em última análise, vida é narrativa encarnada, e narrativa é vida contada.
2. NARRATIVA E HISTÓRIA NA MODERNIDADE
É somente compreendendo o lugar que esse instinto narrativo ocupa na constituição ontológica do sujeito que se pode vislumbrar o efeito catastrófico da concepção moderna de “história”.
O pensamento de Hegel – e posteriormente o de figuras como Marx e Comte – inaugura uma visão moderna que tende a ver a história como um organismo independente que se desenvolve a partir de uma série de leis próprias. A história surge aqui como um jogo condicionado por um certo número de regras – sejam elas as regras da dialética do espírito, sejam as da luta de classes ou ainda as regras dos três estágios da humanidade.
Essa nova visão da história, no entanto, não é apenas a elaboração de uma teoria abstrata. Essa concepção macro da história – justamente por ser materialmente história –acaba se oferecendo como pauta para a história individual do sujeito que a escuta. Aqui o indivíduo hegeliano, marxista ou positivista, passa a compreender a si mesmo dentro da pauta ideológica; sua vida passa ser interpretada e orientada pela concepção falseada de história e, nesse momento, aquele instinto narrativo incrustado na essência mesma do homem passa a identificar na ideologia a sua narrativa pessoal. A narrativa individual passa a ser subjugada pela identificação com o personagem oferecido pela pauta ideológica da vez.
Se a história é a dialética idealista, eu sou um momento da autoconsciência do espírito.
Se a história é luta de classes, eu sou um agente de transformação social comprometido a práxis.
Se a história é a evolução dos estágios, eu sou uma das peças da vanguarda científica.
O fato é que a visão falseada da história – em qualquer um desses personagens – se converte em falsificação da imagem com que o sujeito compreende a si mesmo. A lógica é simples: se a compreensão da minha narrativa é a compreensão do arco biográfico da minha própria existência, então a falsificação da narrativa é a falsificação da existência. A visão reducionista da história se torna aqui um veneno para autocompreensão do indivíduo.
Lima Barreto exemplifica esse fenômeno no personagem do jornalista Leiva. Ao relembrar a visita que fez com seu colega jornalista a uma Igreja Positivista, Isaías Caminha[2] escreve:
“Não me esqueci que ele [Leiva] amava repetir que a física, a química, a biologia, a sociologia, todas as ciências e todo o esforço humano de qualquer ordem se tinham preparado lentamente e tendiam para a religião da humanidade; era ela como a coroação, a cúpula do edifício do pensamento e dos sentimentos da humanidade”
Eis aqui o “auge” da história! Não o auge seco de uma teoria abstrata, mas a cúpula do edifício do “pensamento” e dos “sentimentos”. É a coroação da história que me envolve existencialmente se tornando ela mesma o meu sentido.
É a partir desse encanto que o indivíduo decide abrir mão de interpretar sua história pessoal a partir da própria individualidade e passa a compreender-se a partir da narrativa ideológica. Ele não apenas acredita na ideologia, ele se torna ideologia na medida em que se entende e se assume dentro do seu movimento histórico.
Aqui o centro deixa de ser a confissão da história concreta da personalidade individual (como em Agostinho) e passa a ser a execução de um papel específico ditado pela cosmovisão; aqui o centro passa a ser o fingimento existencial aceito e desejado justamente por fornecer aquele senso de segurança próprio da previsibilidade de uma história simplista reduzida a meia dúzia de regras.
“Os homens têm amor à utopia quando condensada em fórmulas de felicidade; e aqueles militares, funcionários, estudantes, encontravam naquelas afirmações, repetidas com tanta segurança e cuja verdade não procuravam examinar, um alimento para a fome de felicidade da espécie e um consolo para os seus maus dias presentes” [3].
Em suma, o carisma e o encanto de se compreender como um personagem na construção da utopia não é nada mais do que o despertar de um instinto narrativo em meio à uma cosmovisão viciada.
É por isso que a adesão as correntes revolucionárias não é apenas a crença em um conjunto de ideias. A raiz da ideologia não é a adesão a um bloco doutrinal coeso, mas sim a identificação existencial que o indivíduo passa a ter com a sua narrativa. A adesão se torna uma forma de vida, uma forma de se compreender na história. Ideologia se torna aqui uma forma degradada de cultura, e é o cultivo dessa narrativa que gradualmente passa a se enraizar não apenas no arcabouço teórico do sujeito, mas sobretudo na sua vida concreta enquanto indivíduo.
3. A NARRATIVA HISTÓRICA LIBERTÁRIA: GUTIERREZ E DUSSEL
A falsificação da identidade biográfica ocorre quando a existência individual é submergida pela narrativa global da ideologia.
É muito significativo a forma com que esse fenômeno é absorvido na cosmovisão da Teologia da Libertação. De fato, o pensamento libertário efetivamente nasce marxista. Vale aqui relembrar o testemunho de Dussel[4]:
“A relação marxismo-teologia da libertação é tão antiga como essa teologia (…). Os autores citados pelos teólogos são: Marx (em especial, o “jovem Marx”: pouca ou nenhuma referência a O Capital, com exceção de F. Hinkelammert ou meus estudos recentes) Lukács, Gramsci, Bloch, e, em alguns casos, Althusser e a Escola de Frankfurth. Entre os marxistas latino-americanos são usados J. C. Mariátegui e o “Che” Guevara – em seu tema do “homem novo” e seu marxismo ético e humanista”.
Ser marxista, no entanto, não deve ser confundido com a adesão a uma série de “posições dogmáticas frequentes da esquerda”. Isso a rigor é até impossível, uma vez que é próprio da cultura marxista sustentar contradições como expressão da dialética inerente ao movimento.
A Teologia da Libertação não é a mera repetição de uma série de princípios marxistas. Ela é – substancialmente – a forma mesma que o ideal histórico marxista assume no espaço eclesiástico. Não é simples absorção de ideias. É princípio prático, criativo. É movimento. É ação na história; mas é também – este é o elemento central –ação a partir de uma “história”.
Se a Teologia da Libertação nasce marxista, então sua cosmovisão já nasceu pautada pela noção viciada de história que descrevíamos anteriormente.
A “história” da concepção dialética não é a história real enquanto sucessão dos fatos. O pensamento libertário nascendo marxista, nasce pautado pela cosmovisão histórica do marxismo. O compromisso com a ação histórica aqui é a ação efetiva na história real a partir da narrativa pautada pela “história” ideal.
Com efeito, um olhar mais atento sobre a diversa gama de textos libertários nos mostra que grande parte da atividade dos seus intelectuais está na construção e consolidação de uma narrativa.
Há sempre presente o elemento do velho e do novo. Há o medieval, o europeu, o romano, o ultrapassado. E há a emergência de uma nova hermenêutica, de uma nova “consciência histórica”, de uma nova teologia capaz de dar um passo além.
Para exemplificar o fenômeno trago aqui duas narrativas que parecem ter sido mais eficazes no nosso ambiente eclesial brasileiro.
3.1 A narrativa de Gutierrez
Segundo Gutierrez a história da teologia poderia ser dividia em três fases.
No primeiro milênio ela se caracterizaria por ser uma reflexão de tipo sapiencial. No segundo milênio, com o advento do pensamento escolástico, a reflexão teológica teria se transmutado em um modelo com ênfase mais racional e sistemática. Por fim, a teologia do terceiro milênio deveria assumir o desafio de ser reflexão crítica sobre a práxis, respondendo assim ao chamado feito pela própria história. Eis aqui a emergência da consciência crítica como “auge” da consciência histórica.
Gutierrez “defende” a legitimidade dos momentos anteriores afirmando que cada um deles fazia sentido no seu TEMPO. Mas, justamente por estarmos em um novo momento histórico, seria próprio do compromisso do teólogo reinterpretar as chaves de pensamento antigas em uma NOVA hermenêutica.
Percebe?
A base da argumentação não é a confrontação de ideias; não é a retomada do significado autêntico das posições teológicas na história, mas sim a rotulação das mesmas nos moldes de um arco narrativo artificial.
Gutierrez posiciona as ideias como peças em um tabuleiro viciado que ele mesmo criou. Essa narrativa fornece ao intelectual libertário, desde o primeiro momento, a autoridade para julgar – em nome da história – toda e qualquer ideia que tenha vindo do “passado”. A narrativa impõe uma pauta: o dever de um teólogo no advento do terceiro milênio é o de ser crítico.
Note: isso não é proposto como ideia. Isso é imposto como pressuposto.
3.2 A narrativa de Dussel
Mais efetiva ainda acaba sendo a narrativa proposta por Dussel. De fato, se a narrativa de Gutierrez oferecia uma visão global que abarcava o movimento da teologia, Dussel propunha uma narrativa eclesial local/ uma narrativa própria do território latino-americano.
Essa proposta ganhou corpo em 1973, em Quito, no Equador, com a criação da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina. No CEHILA, Dussel conseguiu reunir ao seu redor uma série de intelectuais da libertação com o objetivo de criar uma narrativa histórica a respeito da presença da Igreja na América Latina.
A tese central do grupo era apresentar a existência de um confronto dialético entre uma Igreja presente NA América Latina em contraposição a uma Igreja nascente DA América Latina.
Embora muito tenha se discutido sobre a periodização dessa narrativa, prevaleceu a noção básica de que o movimento parte de (a) uma Igreja da Cristandade presente NA América Latina aos moldes de um ideário colonialista (b) que sofreu certa crise com as transformações dos Estados Liberais e (c) agora tende a perder força devido a emergência de uma Igreja propriamente DA América Latina.
Essa Igreja da América Latina – isso é fundamental – não é proposta como uma ruptura com a Igreja Católica, mas sim como a suposta descoberta do verdadeiro espírito da Igreja Católica no território latino-americano; verdadeiro espirito este que, a partir da autoridade de um certo carisma profético – sempre meio politizado –, teria liberdade para se contrapor aos modelos culturais impostos no continente desde fora. Não é à toa que o primeiro tema central na reflexão libertária seja o da Eclesiologia. A reflexão de uma nova eclesiologia se desenvolve na base dialética da superação de uma visão eclesiológica romana, europeia e medieval. É isto que sustenta tudo.
É a partir desta base que a fé passa a ser negada em nome de uma inculturação viciada. Os estereótipos dialéticos são: América Latina versus Roma. A narrativa de Dussel – repito: a narrativa – permite que pontos substanciais da fé católica passem a ser considerados como pontos da cultura romana; pontos de um modelo eclesiológico ultrapassado, modelo que não faz sentido em um ambiente latino-americano.
4. A NARRATIVA E A CRISE DA FÉ
Vale nesse ponto lembrar as palavras com que Hugo Assmann[5] finaliza seu artigo a respeito do CEHILA:
“Para concluir, gostaria de deixar claro o seguinte: o CEHILA considera todos os seus projetos e todas as suas realizações como passos incipientes de uma caminhada, que os intelectuais “orgânicos” dos pobres só podem realizar frutiferamente na medida em que estejam realmente comprometidos com a Igreja que emerge, sempre penitente e sempre nova, da ação pastoral, cujo sujeito maior e principal é o próprio povo oprimido”.
Notem o aspecto narrativo: eu enquanto padre latino-americano “comprometido com a igreja que emerge” ganho uma posição dentro da marcha histórica e, a partir desta posição, ganho também a autoridade do “lugar de fala”, sou um “intelectual orgânico dos pobres”. Assim, sinto a segurança para me opor à fé porque não a considero realmente fé, mas sim um amálgama ideológico que reflete uma cultura europeia externa à minha realidade.
Nesse mecanismo de relativização, a fé católica nunca é negada frontalmente. Ela é primeiramente rotulada como fé romana, fé medieval, fé tridentina, fé – note isso! – sempre posta em algum lugar histórico ultrapassado; sempre como reflexo de uma cultura extrínseca; é sempre algum lugar narrativo desprezado.
É com base nessa redução que o intelectual libertário pode propor uma “opção” intelectual e desenvolver um pensamento “novo” com a aparência de reflexão eclesial. Mais ainda: é justamente por contornar uma ruptura explícita que as “novas” ideias ganham a aparência de reflexão católica legítima, aparência de “passos incipientes de uma caminhada”.
Esse eixo narrativo é tão forte que permanece estável em meio as diversas mutações que a própria mentalidade libertária possa sofrer. Na verdade, é ele que permite e sustenta essas transformações. A Teologia da Libertação não é um bloco doutrinal fixo e imutável. Ela é um movimento. É um conjunto de ações orientadas em determinada direção. É por isso que as novas ideias ecofeministas podem ser adotadas sem nenhum problema. A pauta da Teologia da Libertação não é somente teológica, ela é sobretudo uma pauta histórica. Antes de ser teologia libertária ela é narrativa libertária.
Nesse sentido, compreender a narrativa no qual um intelectual libertário entende a si mesmo é mais importante do que esmiuçar todas as suas ideias. É da narrativa que surge o direcionamento da ação. E é do seu vício que provêm a energia para a relativização a fé.
Uma narrativa é muito mais do que uma ideia: a narrativa engloba toda a existência.
Por isso tentar refutar cada ideia libertária sem expor o vício da narrativa global parece muito com cortar as cabeças de uma hidra. Para acabar com o problema é necessário não só cortar cada cabeça, mas também impedir que nasçam mais duas no lugar. E isso só se faz cauterizando o problema com a verdade completa. É necessário dar um passo a mais e pôr em descoberto não só os erros pontuais, mas a falsidade da narrativa existencial que move uma parte significativa do clero hoje.
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O aspecto narrativo tem seu lugar na crise da Igreja. E não é um lugar pequeno.
A narrativa compromete a vida. E a vida comprometida vai, com o tempo, se apegando cada vez mais à narrativa.
Alguém que tenha construído a vida em cima da falsidade somente com muito esforço e honestidade consegue se desvencilhar do erro enraizado em si mesmo no decurso do tempo.
Confessar o erro é, nesse caso, confessar o erro de uma vida.
Daí a teimosia e o fechamento para toda posição divergente.
Daí a incapacidade de confrontação com a verdade.
Daí a dificuldade de estabelecer um diálogo honesto sobre a situação real do passado e do presente da Igreja.
Sem conhecer a força desse apego existencial não é possível entender totalmente o cenário de crise que vislumbramos nas estruturas da Igreja hoje.
O fato é que sem a libertação da nossa narrativa – tanto pessoal quanto eclesial – e sem a busca sincera pela verdade da nossa história o povo de Deus continuará infelizmente fadado a ser guiado por adolescentes e governado pelos caprichos pessoais de crianças.
Dar-lhe-ei adolescentes por príncipes,
Crianças e seus caprichos governaram sobre eles
(cf Is 3,4)
Bibliografia:
DUSSEL, Enrique. Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. VOZES: Petrópolis.
MARÌAS, Julian. Introdução a Filosofia. Livraria Duas Cidades: São Paulo.
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Círculo do livro: São Paulo.
ASSMANN, Hugo. CEHILA: Uma nova maneira de estudar a História da Igreja e da Teologia na América Latina: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/Caminhando/article/view/1506
Notas:
[1] MARÌAS, Julian. Introdução a Filosofia. Livraria Duas Cidades: São Paulo, p. 187.
[2] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Círculo do livro: São Paulo, p. 81.
[3] BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Círculo do livro: São Paulo, p. 82.
[4] DUSSEL, Enrique. Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. VOZES: Petrópolis, p. 105-106.
[5] ASSMANN, Hugo. CEHILA: Uma nova maneira de estudar a História da Igreja e da Teologia na América Latina.