Faço aqui algumas reflexões a partir do artigo “Amizade Social” escrito por Dom Leomar Antônio Brustolin – Arcebispo de Santa Maria (RS), publicado em 15/02 no site da CNBB. No momento da redação deste texto, o artigo encontrava-se em destaque no mesmo site. Certamente porque o contexto que envolve este artigo é a Campanha da Fraternidade 2024.
Segue:
Na quarta-feira de cinzas de 2024 foi lançada, em todo o Brasil, a Campanha da Fraternidade sobre amizade social, cujo lema é “Vós sois todos irmãos”. Seu objetivo é despertar para a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todos.
Concorda-se que é em Jesus Cristo que a paz é realizada entre todos, mas isso não se dá pela “beleza da fraternidade humana”, fraternidade esta carcomida pelo pecado, mas sim pela conversão à Fé Católica, porque nesta ocorre a regeneração operada pela graça santificante.
Entre seus propósitos, está a missão de compreender como a mentalidade de divisão está afetando o conjunto da vida, inclusive a dimensão religiosa, e identificar as principais causas da atual mentalidade de oposição e conflito, que gera a incapacidade de ver nas outras pessoas um irmão e irmã. Pretende-se, também, conscientizar sobre a necessidade de superar as divisões e polarizações, construindo a unidade em meio à pluralidade.
Como dito num ISA Notícias anterior, só é possível unidade em meio à pluralidade na Fé Católica. Detalhe que a Campanha da Fraternidade escamoteia. Ademais, é caridade refutar a mentira com a verdade; e no campo doutrinal, a heresia com a sã doutrina. Isso não é gerar divisão, polarização ou extremismo, mas é um convite a sair da soberba do erro para ir à humildade da verdade. E é nesta humildade é que se tem unidade. A verdade é una; a mentira é dispersa, porque a verdade diz o que a coisa é, enquanto a mentira tem incontáveis maneiras de dizer o que esta mesma coisa não é.
Feito esta distinção, é necessário concordar que a mentalidade proveniente de um espírito de contenda é maléfica, como diz São Tiago (3, 16): “Onde houver ciúme e contenda, ali há também perturbação e toda espécie de vícios“. E não sem razão o ciúme antecede a contenda, porque todo ciúme implica alguma paixão de posse imoderada, de modo que não devemos usar a verdade para causar brigas e polêmicas tolas, pois neste caso estou usando da verdade para a minha causa; senão que devemos ser servos da verdade. Usar da verdade para promover a mesma Verdade. Portanto, a politização da fé, muito comum em tempos de Campanha da Fraternidade, gerará ciúmes e contendas, e por isso, a má divisão, pois neste caso a fé estará a serviço da política, e não a política a serviço da fé.
O texto-base destaca os Sinais de predisposição à fraternidade e amizade social, e afirma que a fraternidade inscrita em nossa natureza humana a partir da comum filiação divina impele-nos constantemente, apesar dos desequilíbrios causados pelo pecado original, a viver a amizade social querida por Deus.
No detalhe em que grifamos, reside todo um cavalo de batalha do modernismo contra a fé católica. Os católicos irão dizer que a filiação divina se dá pelo sacramento do batismo e pela conservação da fé após ele (o pecado grave não tira o caráter batismal, mas nos tira da regeneração em Deus; é como o filho pródigo decaindo longe da casa do pai. Não deixa de ser filho, mas está ausente da proteção paterna por ter rejeitado – objetivamente – o pai). Já os modernistas dirão que todos nascem “filhos de Deus”, ou com uma “semente divina” e coisas assim, de modo que “somos todos irmãos” significa que todos estamos filiados à natureza divina. E isto não é verdade. A vida sobrenatural só está presente nos batizados e em quem está livre de pecado mortal na consciência. Mais catolicamente seria dizer que a graça nos impele à caridade, que é amor sobrenatural, e não à amizade social, que pode subsistir em certo grau apenas com amor humano, o qual não é meritório fora da vida sobrenatural.
Outro dado a ser considerado é a solidariedade que caracteriza o povo brasileiro e que se manifesta de forma gratuita e voluntária nas grandes tragédias, sejam elas naturais ou criminosas, quando as comunidades se mobilizam, organizam-se e colocam em comum bens e serviços necessários para o socorro das vítimas, realizando, mesmo que temporariamente, a fraternidade e amizade social querida por Deus em todo tempo e lugar.
Deus quer que todos se convertam. Aqueles que fazem boas obras sem estar em estado de graça “já receberam a sua recompensa” (Mt 6, 1-6), ou seja, estão em paz com a fraternidade humana, pode considerar-se um bom cidadão. Outra sorte é quem faz obra em estado de graça, porque, agindo por caridade, está em concórdia com Deus e, mesmo fazendo o bem aqui, não faz questão da recompensa daqui, senão que quer a recompensa no céu, porque o que o moveu não foi primeiramente o bem-comum social, mas a caridade da Religião que ilumina o social. Na vida espiritual, uma mesma ação pode ter valores infinitamente distantes por conta da intenção que a move. Era isso que a Campanha da Fraternidade 2024 deveria estar ensinando, mas, embora até cheguem a falar de conversão, o modo de abordagem faz com que o social eclipse a realidade espiritual (a figura da figueira seca é uma boa representação disso, porque a ação pode até ser socialmente boa, mas ao mesmo tempo ser nula de mérito sobrenatural).
Também é mencionada a sadia e complementar pluralidade existente entre todos os seres humanos nas suas mais diversas expressões, dom da multiforme fecundidade do Criador para promover a integração e o crescimento da família humana, a partir da valorização de nossas diferenças.
Não necessariamente a diversidade de expressões é elogiável. Podem haver expressões que sejam disfuncionais, as quais não são fecundas. A diversidade de expressões só é boa se, e somente se, o fim converge – efetivamente – para a Beatitude Eterna. Ademais, tanto a diversidade de expressões não é elogiável em si, que Nosso Senhor nos deu a parábola do joio e do trigo, mostrando que há expressões que o inimigo planta. Analogamente podemos dizer de “nossas diferenças”. Estas só são benéficas ao crescimento da “família humana” (não deveria ser da família cristã? Pois o humano está naturalmente separado do divino) se os talentos – estes de fato diversos – trabalharem em favor da verdade! Porém, na parábola dos talentos, o senhor repreendeu o servo mau. E esta parábola não se dissocia da parábola do semeador, que nos ensina que as sementes só geram frutos se cair em solo fértil. De fato, as que os pássaros comeram (tentação do demônio que funcionou), as que caíram nas pedras (quando se trai a fé por causa das adversidades) e as que caíram nos espinhos (quando a fé é negada em favor do mundo – lembra um pouco a Campanha da Fraternidade, não?), não geraram fecundidade.
Mas o texto também alerta sobre os riscos de nosso tempo, como o uso e a exploração do outro, a indiferença generalizada, os julgamentos precipitados, a rejeição gratuita, o ódio desmedido, o combate a pessoas e não a ideias ou propostas, a morte sem sentido, como aquelas das crianças nas creches e escolas atacadas por jovens e adultos armados. Tudo isso nos leva a crer que o mal de que padece a nossa sociedade é o da alterofobia, ou seja, medo, rejeição, aversão a tudo aquilo que é outro, que não sou eu mesmo. Vivemos fisicamente próximos, mas absolutamente distantes.
Confesso que desconhecia este paradigma da alterofobia. Parece uma maneira alternativa e mais sofisticada de dizer que aqueles que praticam más ações são vítimas da sociedade. Isso é estranho à antropologia cristã. Ora, sabemos que o ser humano, embora receba condicionamentos do meio ao qual está inserido (o que a teologia chama de mundo), pratica a má ação mediante o uso do seu livre-arbítrio, pela sua vontade desordenada que consentiu na iniquidade. O ser humano tem, em sua alma, a inteligência para aprender a distinguir o bem do mal; e tem o livre-arbítrio para fazer ações benéficas ou maléficas à sua natureza e/ou sociedade circundante. E tanto não é vítima de uma “alterofobia” quanto seja responsável de delito, que o que serve para o perpetrador do mal serve para qualquer outro: se não se converter e crer no evangelho (ou seja, na doutrina católica, praticando ações em coerência com os santos ensinamentos), irá para a geena. De fato, alterofobia contribui para tirar a culpa da responsabilidade pessoal (o que é péssimo para a noção de juízo final) para jogá-la num psicologismo pseudo-piedoso de boteco. Alterofobias à parte, se não pagar nesta vida por seus crimes – e pode ser que não pague, porque a justiça humana é falha – com certeza pagará na outra.
Sobre viver fisicamente próximos, mas absolutamente distantes, isso é irrelevante. A proximidade com alguém não é garantia de inibição de más ações. Vários pecados atentam contra a proximidade: mentira, roubo, fraude, infidelidade, ciúme, etc. Ora, Nosso Senhor foi traído por Judas. Ademais, as pessoas não são burras, elas sabem que se eu me aproximo de alguém que é mau caráter, por estar próximo, sofrerei do mal caratismo dela. Claro, devemos rezar para que essa pessoa abandone sua iniquidade, mas tal processo, ordinariamente, não ocorre do dia para a noite. Então, certa distância prudencial nunca é demais.
Tornamo-nos incapazes de nos colocar no lugar do outro, incapazes do que Jesus chama no Evangelho de compaixão, de padecer o sofrimento alheio. Vivemos um agudo processo de subjetivação, isto é, a única ótica que importa é a minha. E ignoramos o que o refrão cantado durante o Sínodo da Amazônia nos ensinou: “tudo está interligado como se fôssemos um, tudo está interligado nessa Casa Comum”.
Fulano vai lá e mata ciclano. Ok, fulano sofre da dita alterofobia. Não recebeu amor em sua infância, e hoje vive com medo até o ponto de matar alguém. Coloquei-me no lugar dele. Mudou o fato de ele ter cometido um crime? Mudou o fato de que ele deve pagar por este crime? Como terapeuta, posso até tentar ajudá-lo quanto às suas “fobias”, mas espero que o faça com ele na prisão. Mesmo porque, aceitar a punição por nossos erros é um ato de humildade, e é um passo importantíssimo para a cura de várias (para não dizer para a maioria) das neuroses.
Sobre a ótica da subjetivação, a questão não é se “a única ótica que importa é a minha”. Se a minha ótica está fundamentada na verdade, então sim, a única que importa é a minha; se não, devo rever meus conceitos e estudar mais. O esquema já foi dado por São Paulo: analisar tudo e reter o que é bom. E podemos acrescentar sem erro: e não largar o que é bom! A questão parece deslocada, porque o problema não é tanto a “subjetivação” a ser resolvida com “compaixão”, mas uma dimensão subjetiva que deve ser dócil, mediante o amor, à verdade. De fato, a verdade é a adequação do intelecto (esfera subjetiva) com a coisa (esfera objetiva). Se o subjetivo não concorda com o objetivo, eu estou no que pode ser chamado delírio.
Por fim, a conclusão do artigo: “tudo está interligado como se fôssemos um, tudo está interligado nessa Casa Comum”. De fato, tudo está interligado nessa casa comum (seja lá o que isso signifique), porque Deus, como Criador, governa todas as coisas através de seus insondáveis desígnios. Porém, é falso que estamos interligados como se “fôssemos todos um” – XÔ PANTEÍSMO – porque, na mente divina, há os eleitos e há os réprobos. E, deste modo, novamente São Paulo: “Não se ponham em jugo desigual com descrentes. Pois o que têm em comum a justiça e a maldade? Ou que comunhão pode ter a luz com as trevas?” (2Cor 6, 14-15). Para um católico, a Casa Comum está mais voltada a tolerar o desterro desta vida para colher o fruto de recompensa na outra – vale de lágrimas, como rezamos no Salve Rainha; e não esta paçocagem de confiança otimista no homem. Pois, “maldito o homem que confia no homem – e acrescenta Jeremias – que faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor!” E acrescento por minha conta: e aparta o seu coração do Senhor com pretextos humanistas e/ou panteístas!
Obs: Com este artigo dialético não quero acusar o bispo em questão de qualquer coisa, mesmo porque está longe da minha competência. Que indiscutivelmente seu artigo tenha elementos humanistas, não significa que despreze a vida sobrenatural ou que usurpa da fé para propósitos meramente humanos. Um breve artigo sobre “Amizade Social” é insuficiente para fazer tal juízo e, ademais, como já disse, não tenho competência para emitir tal juízo, sendo como sou apenas um leigo que se esforça para não negligenciar seus estudos quanto à fé. E neste papel que me cabe, o que eu fiz foi usar do artigo do prelado para, no esforço de minha subjetividade que percebe na objetividade problemas doutrinais rotineiros no orbe católico, tecer algumas considerações. Novamente, o propósito não é entrar em contenda com o bispo, mas para usar o texto do bispo para expor considerações que, em tempos de confusões doutrinais como a nossa, beneficiem ao próximo.
Todos somos vítimas deste espírito humanista que se inflamou na Igreja após o Concílio Vaticano II. É normal que estejamos mais ou menos confusos neste tempo de crise. E assim, dada a urgência da situação, mais tempo nossos joelhos devem estar fincados à oração, sobretudo rogando para que o Espírito Santo ilumine a mente de nossos prelados.
Viva Cristo Rei!