“O maior santo que já viveu não era diácono, nem padre, nem bispo, nem papa, nem eremita, nem monge… ele era marido, pai e trabalhador.”
Tenho visto com frequência essa citação ultimamente e acho que ela dá ocasião para uma reflexão muito necessária que nos ajudará a esclarecer um ponto assaz desvirtuado no meio católico corrente.
Muitos leigos católicos gostam de usar a citação acima – que, salvo engano, é de S. Josemaría Escrivá, ou ao menos inspirada nos ensinamentos dele – para sugerir que há uma suposta equivalência entre os estados de vida consagrada (padre, monge, freira, etc) e o estado natural (casado), ou até mesmo uma superioridade deste último sobre o primeiro, já que, como diz a citação, “o maior santo” era um “marido, pai e trabalhador”.
Está muito comum também ver influencers na internet asseverando que a melhor coisa para o bom católico hoje é trabalhar duro, fazer um pé-de-meia, casar-se com uma moça virtuosa e ter muitos filhos. Bem, nas tristes condições clericais atuais – de franca degradação doutrinal e moral dos seminários, dioceses e casas religiosas – isso até pode ser circunstancialmente verdadeiro, por causa da crise que assola a hierarquia da Igreja, mas não podemos dizer que o seja substancialmente.
Tanto as S. Escrituras (conselho paulino de I Coríntios 7 + exemplos de S. João Batista, dos santos apóstolos e do próprio Senhor) quanto os ensinamentos dos doutores da espiritualidade católica (Sto. Afonso, Sta. Catarina de Sena, Sto. Agostinho, Sta. Teresa…) nos informam com clareza que há, ao contrário, uma proeminente superioridade da vida consagrada sobre o estado laical.
Cada vocação e estado de vida tem os seus deveres, seus sacrifícios e seus encantos próprios, mas não são todos equivalentes.
O estado religioso consiste no sacrifício da própria natureza (inclinada instintivamente ao casamento) – e dos seus lícitos prazeres e comodidades anexos – a Deus Altíssimo, por uma razão de ordem sobrenatural: a busca da perfeita caridade, do amor indiviso ao Senhor.
No Diálogo de Sta. Catarina de Sena, o próprio Deus Pai chama aos bons fiéis casados de “fiéis da caridade comum”, e se refere a eles de forma condescendente, legitimadora, porém menos honrosa, enquanto chama os religiosos fervorosos de “meus servidores”, e se refere a eles de forma muito mais honrosa.
Depois, São José, pela vida que efetivamente levou – com seus muitos aspectos de pobreza, castidade e obediência -, teve uma existência terrena muito mais similar à vida de um religioso (que exercia certos deveres de pai e esposo como que ad hoc, isto é, somente pelas circunstâncias especiais da sua vocação) do que à vida de um pai e esposo comum.
Ora, ainda que ele fosse um artesão bem estabelecido no ramo da carpintaria, certamente José colocou todos os seus recursos a serviço da sua altíssima vocação de pai adotivo do Cristo, tão logo foi dela informado pelo Anjo em sonho. Para o seu próprio conforto e prazer, muito provavelmente nada, ou quase nada, era despendido do que ele ganhava.
Ademais, diversas situações vividas pela Sagrada Família o obrigaram à pobreza ou nos sugerem condições financeiras nada confortáveis: primeiro, a onerosa viagem a Belém para fazer o recenseamento por ordem do imperador romano. Seria como se, por ordem de Lula ou Alexandre de Moraes, tivéssemos todos que viajar a pé ou a cavalo até nossa cidade natal para lá prestar informações ao governo…
Chegando lá, José teve que lidar com a falta de vagas em hospedarias, o que os obriga a se alojarem num curral, um abrigo de animais, e ali, naquelas condições, aconteceria o sacrossanto parto de Virgem Maria e o Natal do Senhor.
Depois, a Bíblia diz que o sacrifício oferecido pela purificação ritual do Menino e da Mãe puérpera foi, segundo alguns exegetas, o mesmo que era oferecido pelos judeus mais pobres: dois pombinhos.
Em seguida, José teve que deixar tudo – casa própria, se ele a tinha, oficina montada, parentes, amigos e a sua clientela conhecida – para viajar para o longínquo Egito, numa jornada difícil e incerta, fugindo da sanha infanticida de Herodes contra o Divino Infante.
Mais tarde – novamente por ordem do Alto – José teve que deixar uma vida estruturada no Egito, onde depois de uns anos ele certamente já se tinha estabelecido e conquistado uma nova clientela, novos vínculos sociais e alguma tranquilidade, para voltar de novo à sua pátria, onde não sabia ao certo o que o aguardava…
Em tudo isso, vemos clara também a obediência estrita que o pautava, acatando sempre a voz dos Santos Anjos de Deus que lhe falavam em sonhos.
José vivia como pobre, completamente desapegado das coisas da terra e sem qualquer “zona de conforto”, e era totalmente obediente à lei mosaica e às revelações privadas que recebia.
Que o virtuosíssimo José fosse, além de pobre e obediente, também exemplarmente casto e celibatário, nenhum católico sensato duvida. A sólida exegese referente a esse ponto é bastante ampla, não obstante ainda existam ignaros protestantes que, fazendo uma leitura parva e recortada de certos versículos, fantasiem que ele e Nossa Senhora tiveram outros filhos, o que já está biblicamente refutado desde os anos 300 por São Jerônimo.
Logo, José era mais um religioso com uma Santíssima Esposa e um Filho Divino do que um simples pai de família normal com virtudes próximas às de um religioso.
O fato de ele trabalhar e cuidar de Maria e Jesus não o aproximam mais do leigo normal do que os seus sacrifícios, santas renúncias e alegres abnegações o aproximam do religioso vinculado por votos.
Não é à toa que as casas religiosas das mais diversas congregações e inúmeros seminários o tenham por solícito patrono. E são muitos os relatos até miraculosos de auxílios josefinos a essas casas de almas virgens consagradas a Deus.
Recorde-se o expressivo dizer de Santo Afonso: “As almas virgens são extraordinariamente belas aos olhos de Deus”, encontrado no cap. V, intitulado Da Virgindade, do seu Tratado da Castidade.
Tampouco era em vão que os Santos Padres o chamassem mais de “guardião” do que de “esposo” da Virgem Maria. E muitos santos doutores acreditaram mesmo num voto formal de celibato feito pelo Sagrado Casal. Diz Edward Healy Thompson em seu Vida e Glórias de São José:
“Santo Agostinho, Santo Tomás e o Mestre das Sentenças [Pedro Lombardo], para não mencionar outros, defendem firmemente que Maria e José fizerem dois votos de virgindade; o primeiro, mental, simples e condicional, ou seja, dependente de que Deus não dispusesse de outra maneira. Este voto foi feito por cada um muito antes de sua união. O segundo voto foi absoluto, perpétuo e sem limitação, e ocorreu imediatamente após o casamento.” (p. 147)
Quando falamos, porém, de São Luís Martin, São Luís IX da França ou do Beato Carlos d’Áustria, então sim, estamos falando de homens que tiveram maior autonomia pessoal, maior disposição dos recursos e bens particulares, relações conjugais fisicamente íntimas e outras licenças do estado laical que São José efetivamente não teve, pois alegremente a elas renunciou em prol de sua altíssima missão e de Bens muito maiores.
Enfim, é claro que não devemos desprestigiar a vocação familiar e deixar de reconhecer o seu devido valor, mas esse excessivo (e moderno) culto ao “ordinário” e à vida laica que ganhou ênfase em muitos movimentos eclesiais a partir do Concílio Vaticano II – como Focolares, Opus Dei, Cursilhos de Cristandade, CEBs e outros – não é compatível com o que os Santos Doutores e a Tradição da Igreja sempre ensinaram.
E o pior de tudo é que o tempo provou serem totalmente instrumentais e falaciosas as ênfases que as teologias modernistas colocaram no tal “protagonismo dos leigos”… Só lhes servem os leigos que sejam tão revolucionários quanto o clero da pérfida Teologia da Libertação, ao que parece. Pois nunca se viu tanto autoritarismo do clero como nos dias de hoje, em que porções cada vez maiores do laicato pedem por um salutar retorno às sagradas e pias tradições católicas, o que tem feito o clero revolucionário espumar de raiva, perseguir bons padres e até ameaçar com a excomunhão os fiéis que quiserem ouvir a mesma Santa Missa que foi ouvida e usufruída pelos santos ao longo dos séculos.
Se os católicos pensassem desde o início da Igreja que a vida familiar é tão boa quanto a religiosa, não teríamos tido as Santas Virgens mártires, nem Santo Antão e os Padres do Deserto, nem São Bento e toda a sua esplêndida descendência monacal, nem os belos frutos das Ordens mendicantes, nem das pias Congregações religiosas que vieram na esteira de Trento, nem das que vieram mais tarde para remediar a obra demoníaca das revoluções modernas.
A Igreja sempre entendeu que seguir a natureza no uso das coisas lícitas não tem o mesmo valor que sacrificá-la para seguir um caminho sobrenatural de ascética renúncia aos bens naturais, que é o que está patente nas palavras de Nosso Senhor: “Se alguém quiser Me seguir, renuncie a si mesmo…”
Portanto, pão, pão, queijo, queijo. A vocação familiar é boa, sim, mas não é, nem de longe, equivalente à perfeição da vida consagrada e devotada aos três votos evangélicos praticados pelo próprio Senhor Nosso, Jesus Cristo.
Se os santos casados nos provam que é possível, sim, santificar-se em meio às dissipações da vida familiar, também é fato que uma longa e pia Tradição nos informa que muito mais bem-aventurado é o caminho do religioso, visto ser este o caminho mais desembaraçado, mais indiviso, mais puro, belo e aplainado para se chegar ao Céu.
A restauração das famílias naturais, hoje maximamente atacadas e sabotadas, passa também por uma regeneração da sua contraparte sobrenatural, que é a vida religiosa, de onde as famílias bebem os sacramentos, aconselhamentos, exemplos de virtude, dons de paternidade e maternidade espiritual, além de intercessões e sacrifícios expiatórios feitos por elas.
Rezemos para que a crise da vida religiosa tenha logo um fim e volte a apresentar a pujança dos tempos em que os claustros eram repletos de almas santas, os seminários formavam pios e zelosos sacerdotes, cheios de autêntica Caridade e ancorados na Verdade, e muitos missionários consagrados eram enviados a lugares remotos para ganhar almas para Deus.
Que todas as coisas sejam restauradas em Cristo, como rezava o motto de São Pio X.