Os leitores antigos deste blog saberão que sempre estive profundamente interessado nas questões de como a Igreja avalia supostas aparições privadas. Escrevi extensivamente sobre Medjugorje, Bayside e muitas outras aparições menores. A minha abordagem geralmente foi crítica, seguindo a abordagem tradicional em que uma alegada aparição é presumida ser falsa a não ser que provas contundentes sugiram o contrário. Fiquei alarmado e irritado com a credulidade daqueles que perseguem todas as novidades espirituais, e desanimado com a lentidão da inatividade da Igreja em conter a sua proliferação.
O novo documento do Vaticano, “Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais”, é, pois, de grande interesse para mim. Este novo documento substitui a instrução anterior emitida em 1978 , durante as últimas semanas do pontificado de Paulo VI. Infelizmente, não creio que este novo documento traga qualquer disciplina à situação atual. Na verdade, acredito que representa a abdicação da Igreja de qualquer papel na avaliação deste fenômeno e conduzirá à propagação de falsas aparições a um nível até agora sem precedentes.
Universalizando o Modelo de Medjugorje
A abordagem do novo documento pode ser melhor entendida como a universalização da abordagem de Francisco para com Medjugorje. No caso de Medjugorje, Roma fez uma clara distinção entre as supostas aparições e as manifestações de piedade popular que delas emergiram. A proibição de peregrinações a Medjugorje foi suspensa, apesar de o Vaticano não ter tomado posição sobre a natureza sobrenatural dos acontecimentos. A Sala de Imprensa da Santa Sé disse:
Considerando o significativo fluxo de pessoas que vão a Medjugorje e os abundantes frutos da graça que brotaram esta disposição faz parte da particular atenção pastoral que o Santo Padre quis dar àquela realidade, destinada a encorajar e promover os frutos do bem (fonte).
A licença para o culto ficou divorciada da realidade objetiva das aparições, como esclareceu a Assessoria de Imprensa ao acrescentar, que o culto deve “ser acompanhada de cautela, para evitar que estas peregrinações sejam interpretadas como uma autenticação dos eventos ocorridos, que ainda precisam ser examinados pela Igreja” (ibid.). Esta é uma afirmação verdadeiramente notável, afinal, por que existem peregrinações a Medjugorje senão porque os participantes acreditam que as aparições são autênticas? Alguém parte em peregrinação a um local em cujas aparições desacredita? Se uma peregrinação não deve ser tomada como uma autenticação das aparições, então o que ela testemunha? Ora, todo ato exterior de piedade testemunha algo.
A resposta, surpreendentemente, é que as próprias peregrinações se auto-validam. O Arcebispo Henrick Hoser, enviado especial do Papa a Medjugorje e vulgarmente conhecido como o “Czar de Medjugorje”, acreditava que o alcance e o fruto das peregrinações eram o verdadeiro milagre. Ao comentar sobre os milhões de peregrinos que iam a Medjugorje e sobre as centenas de confissões ouvidas lá todos os dias, ele disse:
Este é um fenômeno. E o que confirma a autenticidade do lugar é a grande quantidade de instituições de caridade que existem ao redor do santuário. Outra dimensão a levar em conta é o grande esforço que se está fazendo em nível de formação cristã. Vários congressos para diferentes públicos (padres, religiosos, casais…) são realizados todos os anos (fonte).
A Santíssima Virgem Maria apareceu a seis crianças em 1981? Quem o sabe? O real fenômeno não é a aparição, mas os frutos espirituais das peregrinações. Há algo nas aparições que as autentique como sobrenaturais? Não interessa, porque “o que confirma a autenticidade do lugar” são os frutos espirituais que ali se encontram. Em última análise, os detalhes da aparição não são tão importantes quanto as pessoas de fé. As verdadeiras aparições são os amigos que você fez ao longo do caminho.
É claro que essa política foi formada a fim de contornar a questão da validade das mesmas aparições. A Igreja acreditou que bons frutos estavam saindo de Medjugorje, e quis encontrar uma maneira de encorajá-los, sem se comprometer de nenhuma maneira com as próprias aparições. Então encolheu os ombros, disse que o mais importante é a situação pastoral, e acolheu os peregrinos enquanto remetia as aparições mesmas para uma eternidade de “estudo mais aprofundado”. Problema resolvido.
Subjetivando o Sobrenatural
Para mim, a diferença mais marcante entre as normas de 1978 e as novas normas é que a possibilidade de autenticar uma aparição foi removida. Segundo as normas de 1978, havia três maneiras possíveis de categorizar uma aparição:
- Constat de sobrenaturalitate: As afirmações sobrenaturais sobre a aparição são declaradas dignas de crença. Esta é uma aparição “aprovada”.
- Non constante de sobrenaturalitate: Conhecida como “nada contrário à fé”, esta designação significa que a natureza sobrenatural da aparição não é afirmada, mas também não contém nada contrário à fé. Isso significa que a aparição pode ou não ser sobrenatural.
- Constat de nonnaturalitate: Esta é uma aparição que “não é digna de crença”. Em outras palavras, foi positivamente determinado que a aparição não é sobrenatural.
A nova instrução substitui estas três designações por seis designações possíveis, cujos detalhes não nos interessam aqui, exceto para dizer que a determinação positiva (constat de supernaturalitate) foi removida. Isto é claramente afirmado nas Diretrizes Gerais:
Em via ordinária, não se deverá prever um reconhecimento positivo por parte da Autoridade eclesiástica acerca da origem divina de presumidos fenômenos sobrenaturais. (§11)
O nível mais alto de reconhecimento que uma aparição pode receber agora se chama Nihil obstat, “nada obstrui”, que é análogo à segunda designação no antigo sistema. O Nihil obstat nada diz sobre a natureza objetiva das aparições; afirma simplesmente que elas têm valor pastoral e não são positivamente perigosas. Aqui está como Nihil obstat é definido:
Nihil obstat — Mesmo se não se exprime nenhuma certeza sobre a autenticidade sobrenatural do fenômeno, reconhecem-se muitos sinais de uma ação do Espírito Santo “em meio” a uma dada experiência espiritual, não tendo sido relevados, pelo menos até aquele momento, aspectos particularmente críticos ou arriscados. Por esta razão, encoraja-se o Bispo Diocesano a apreciar o valor pastoral e a promover a difusão dessa proposta espiritual, inclusive através de eventuais peregrinações a um lugar sacro. (§17)
O bispo é encorajado a promover a difusão de devoções a uma aparição sem expressar “nenhuma certeza sobre a autenticidade sobrenatural do fenômeno”. A “ação do Espírito Santo” manifestada numa “dada experiência espiritual” do povo passa a ser muito mais importante. Assim, já não importa se um evento sobrenatural realmente aconteceu; a verdadeira importância de uma aparição é que ela oferece aos fiéis “algumas vias para aprofundar o conhecimento de Cristo e para doar-se mais generosamente a ele, enraizando-se ao mesmo tempo sempre mais na comunhão com todo o Povo cristão” (§12). Mas o documento deixa claro que nada disso deve ser interpretado como endosso à natureza sobrenatural de qualquer fenômeno; na realidade, as autoridades estão positivamente proibidas de dizer o seguinte:
Reafirma-se que normalmente nem o Bispo Diocesano, nem as Conferências Episcopais, nem o Dicastério declararão que estes fenômenos são de origem sobrenatural, mesmo nos casos em que se conceda um Nihil obstat (§23).
A Santa Sé reserva-se ao direito de fazer tais declarações em circunstâncias extraordinárias, mas pelo teor do documento, pode-se presumir que tais declarações não estão previstas. O resultado disso tudo é que o foco é totalmente transferido para a experiência do adorador e para longe dos objetos de veneração. Os objetos são praticamente irrelevantes; o máximo que podemos dizer sobre eles é que não contradizem a fé. Fora isso, tudo o que podemos fazer é encolher nossos ombros.
O cerne da questão
Qual é o ponto aqui? Por que a Igreja está fazendo isso? Em última análise, suspeito que o cerne da questão é que a Igreja tem medo de ser ridicularizada pela ciência reducionista. A Igreja moderna habitou-se a contorcer-se para provar que não é uma oponente da ciência moderna. A afirmação de um evento sobrenatural é uma grande afronta às sensibilidades da ciência reducionista moderna. Uma coisa é afirmar a natureza milagrosa de eventos antigos que estão tão distantes da nossa experiência atual, que não podem ser submetidos ao escrutínio empírico; outra é afirmar a natureza milagrosa de algo que ocorreu na era da tecnologia digital e da ciência forense avançada. Penso que, neste contexto, o maior pesadelo da Igreja seria declarar como algo milagroso àquilo que posteriormente pode ser desmascarado pela ciência. Pode-se ver no documento que Fernández nem sequer se sente confortável com as declarações anteriores de constat de supernaturalitate, visto que fez de tudo para sublinhar que os juízos históricos sobre a “sobrenaturalidade” de eventos anteriores estão sujeitos à revisão. Em tese, até mesmo a natureza sobrenatural de aparições como Guadalupe ou Lourdes poderia ser revertida. O documento afirma:
Deve-se notar ainda que chegar a uma declaração de “sobrenaturalidade”, por sua natureza, não apenas requer um tempo adequado de análise, mas pode dar espaço a que se emita hoje uma declaração de “sobrenaturalidade” e muitos anos depois um juízo de “não-sobrenaturalidade”, como de fato já aconteceu. Vale a pena recordar um caso de presumidas aparições dos anos ’50, em que o Bispo, no ano 1956, emitiu uma sentença definitiva de “não-sobrenaturalidade”. No ano seguinte, o então Santo Ofício aprovou as determinações daquele Bispo. Em seguida, pediu-se novamente a aprovação daquela veneração, mas em 1974 a Congregação para a Doutrina da Fé declarou a respeito da mesmas aparições um constat de non supernaturalitate. Sucessivamente, em 1996, o Bispo do lugar reconheceu aquela devoção e um sucessivo Bispo do mesmo lugar, em 2002, reconheceu a “origem sobrenatural” das aparições e a devoção se difundiu em outros Países. Por último, a pedido da Congregação para a Doutrina da Fé, em 2020, o novo Bispo reafirmou o “juízo negativo” dado precedentemente pela mesma Congregação, impondo que cessasse qualquer divulgação a respeito das presumidas aparições e revelações. Foram necessários cerca de setenta tormentosos anos para se chegar à conclusão do caso.
É mais fácil, portanto, se abster de afirmar que qualquer coisa é sobrenatural, pois, já que a nossa avaliação do caráter sobrenatural de um acontecimento pode estar sujeita ao escrutínio empírico, as experiências das pessoas não podem ser questionadas. Ao mudar o locus da aparição do evento para as experiências espirituais das pessoas em relação ao evento, a aparição recua para proteger-se atrás de um muro de subjetivismo que o escrutínio empírico não pode superar. Se estou crescendo na caridade, se minha vida de oração está mudando para melhor, se as pessoas estão se confessando, como isso pode ser questionado? Não podem; são as experiências das pessoas e são o que são, independentemente da veracidade da aparição que as ocasionou. Por serem inexpugnáveis, a Igreja então opta por mudar o foco das aparições, como um baluarte de segurança contra a crítica científica.
Mas como a filosofia é importante, esta virada para o subjetivo terá consequências profundas. O novo documento mantém a prerrogativa da Igreja de decidir negativamente sobre uma aparição. A Igreja acredita que ainda pode exercer o Constat de nonnaturalitate ao mesmo tempo que renuncia ao Constat de supernaturalitate. Ela espera usar a sua autoridade para conter a propagação de falsas aparições, mantendo silêncio sobre o “sobrenatural” das verdadeiras. Na realidade, esta política enfraquecerá a fé das pessoas em aparições credíveis, ao mesmo tempo que não conseguirá conter a propagação das menos credíveis. Lembremos: as próprias manifestações de piedade são centrais para autenticar uma aparição; vimos como uma aparição totalmente falsa como Medjugorje recebeu algum tipo de status oficial na medida em que a piedade popular em torno do local foi abstraída dos fatos da própria aparição. Este precedente só encorajará a persistência contínua de outras falsas aparições, como Garabandal, Bayside, etc.
O documento também retira a determinação final do Ordinário local e a confia ao Dicastério para a Doutrina da Fé. A premissa para isto é dupla: (1) por causa da comunicação digital, as aparições “locais” não são mais locais; elas assumem um significado global e, por isso, merecem a intervenção de Roma, e (2) isto irá acelerar o processo de avaliação das aparições, resultando em determinações mais rápidas.
Em primeiro lugar, tenho dificuldade para pensar em qualquer circunstância na qual enviar um problema para Roma resultará numa resolução mais rápida. Mas, em segundo lugar, isto apenas criará mais confusão à nível local, uma vez que a cada visionário maluco é dado o direito de persistir na sua loucura – não importando quão bizarras sejam as suas mensagens, quão absurdas sejam as suas reivindicações, quão contestadas sejam pelo Ordinário local – com base em que “Roma ainda não o condenou”, pois as normas dizem que mesmo um juízo negativo deve ser confirmado pelo Dicastério em Roma. E enquanto todos esperam anos para que Roma tome uma decisão, a devoção à aparição irá proliferar, até chegar o momento em que, como afirma o documento, “desaconselha-se uma proibição (…) que poderia perturbar o Povo de Deus” (§19) devido a grande perturbação que causará às dezenas de milhares de devotos que investiram na aparição. Diante de um fato consumado, Roma lavará suas mãos e autorizará peregrinações.
O falecido James Larson, em sua magnum opus The War Against Being and the Return to God [A Guerra contra o Ser e o Retorno a Deus], observou que muitos dos erros teológicos de hoje se predicam numa virada para o subjetivo, permitindo aos teólogos retrocederem do terreno da verdade objetiva para uma cidadela de experiência pessoal, onde estarão a salvo da devastação da ciência reducionista. Creio que este último documento seja mais uma manifestação desta tendência.
Há muito mais a ser dito sobre este documento, e muitos outros já ofereceram suas perspicazes observações sobre ele. Eu também tenho mais a dizer, mas isso é suficiente por enquanto.
Fonte: Unam Sanctam Catholicam
Observações:
- A frase “o que importa são os amigos que fazemos pelo caminho” virou meme na internet. Trata-se de um clichê recorrente em animações japonesas. A coisa ganhou corpo quando uma dessas animações, chamada One Piece, que conta com mais de mil episódios (ou seja, nunca acaba e ninguém sabe se vai acabar), teve seu suposto final revelado. O final de toda sua história, a moral de uma história “milenar”, seria o protagonista falando: “o importante são os amigos que fazemos no caminho”. Ou seja, no fundo do meme, está uma grande saga sem um sentido realmente concreto.
- Sobre os juízos que o artigo faz em relação às aparições citadas (Medjugorje, Bayside, Garabandal), o Instituto Santo Atanásio não tem opinião a respeito.