A intenção do Papa com seu Motu Proprio Traditionis Custodes é assegurar ou restaurar a unidade da Igreja. O meio proposto para isso é a unificação total do Rito Romano na forma do Missal de Paulo VI (incluindo suas variações subsequentes). Por isso, a celebração da Missa na Forma Extraordinária de Rito Romano, introduzida pelo Papa Bento XVI com a Summorum Pontificum (2007) e fundamentada no Missal que existiu de São Pio V (1570) a João XXIII (1962), foi drasticamente restrita. A clara intenção é condenar a Forma Extraordinária à extinção no longo prazo.
Em sua “Carta aos Bispos de todo o mundo”, que acompanha o Motu Proprio, o Papa Francisco tenta explicar os motivos que o levaram, como o portador da autoridade suprema da Igreja, a limitar a liturgia na forma extraordinária. Para além da apresentação de suas reações subjetivas, entretanto, uma argumentação teológica estrita e logicamente compreensível também teria sido apropriada. Pois a autoridade papal não consiste em exigir superficialmente dos fiéis a mera obediência, isto é, uma submissão formal da vontade, mas, muito mais essencialmente, em permitir que os fiéis também sejam convencidos com o consentimento da mente. Como São Paulo, cortês para com seus coríntios muitas vezes rebeldes, disse: “Na igreja, prefiro falar cinco palavras com a minha mente, para instruir também os outros, do que dez mil palavras em línguas” (1 Cor 14:19).
Essa dicotomia entre boa intenção e má execução sempre surge quando as objeções de funcionários competentes são percebidas como um obstáculo às intenções de seus superiores, e, por causa disso, nem mesmo são oferecidas. Por mais bem-vindas que sejam as referências ao Vaticano II, deve-se ter cuidado para garantir que as declarações do Concílio sejam usadas com precisão e no contexto. A citação de Santo Agostinho sobre a pertença à Igreja “segundo o corpo” e “segundo o coração” (Lumen Gentium 14) refere-se à adesão plena da Igreja à fé católica. Consiste na incorporação visível no corpo de Cristo (comunhão religiosa, sacramental, eclesiástica-hierárquica) bem como na união do coração, ou seja, no Espírito Santo. Assim sendo, o que isso significa não é a obediência ao papa e aos bispos na disciplina dos sacramentos, mas a graça santificadora, que nos envolve plenamente na Igreja invisível como comunhão com o Deus Trino.
Pois a unidade na confissão da fé revelada e a celebração dos mistérios da graça nos sete sacramentos não requerem de nenhuma forma uma uniformidade estéril na forma litúrgica externa, como se a Igreja fosse igual às cadeias hoteleiras internacionais com seu desenho homogêneo. A unidade dos crentes uns com os outros está enraizada na unidade em Deus através da fé, esperança e amor, não tendo nada a ver com uniformidade na aparência, marcha de uma formação militar ou pensamento de manada na era das grandes tecnologias.
Mesmo depois do Concílio de Trento, sempre houve uma certa diversidade (musical, celebrativa, regional) na organização litúrgica das Missas. A intenção do Papa São Pio V não era suprimir a variedade de ritos, mas sim conter os abusos que conduziram a uma falta de compreensão devastadora entre os Reformadores Protestantes na consideração da substância do sacrifício da Missa (seu caráter Sacrificial e Presença Real). No Missal de Paulo VI, a homogeneização ritualística (rubricista) foi interrompida, precisamente para superar uma execução mecânica em favor de uma participação ativa interna e externa de todos os crentes em suas respectivas línguas e culturas. A unidade do rito latino, entretanto, deve ser preservada através da mesma estrutura litúrgica básica e da orientação precisa das traduções do Latim original.
A Igreja Romana não deve transferir sua responsabilidade a respeito da unidade no culto às Conferências Episcopais. Roma deve supervisionar a tradução dos textos normativos do Missal de Paulo VI, e mesmo dos textos bíblicos, que podem obscurecer o conteúdo da fé. As presunções de que se pode “melhorar” o verba domini (por exemplo, pro multis – “para muitos” – na consagração, o et ne nos inducas in tentationem – “e não nos deixeis cair em tentação” – no Pai Nosso), contradizem a verdade da fé e a unidade da Igreja muito mais do que celebrar a Missa segundo o Missal de João XXIII.
A chave para uma compreensão católica da liturgia reside na percepção de que a substância dos sacramentos é dada à Igreja como um sinal visível e meio da graça invisível em virtude da lei divina, mas cabe à Sé Apostólica e, em conformidade com a lei, aos bispos regular a forma externa da liturgia (na medida em que ainda não existia desde os tempos apostólicos) (Sacrosanctum Concilium, 22 § 1).
As disposições dos Traditionis Custodes são de natureza disciplinar e não dogmática e podem ser modificadas novamente por qualquer papa futuro. Naturalmente, o papa, em sua preocupação com a unidade da Igreja na fé revelada, deve ser plenamente apoiado quando a celebração da Santa Missa segundo o Missal de 1962 for uma expressão de resistência à autoridade do Vaticano II, ou seja, quando a doutrina da fé e a ética da Igreja são relativizadas ou mesmo negadas na ordem litúrgica e pastoral.
Em Traditionis Custodes, o Papa insiste corretamente no reconhecimento incondicional do Vaticano II. Ninguém pode se denominar católico se quiser voltar para trás do Vaticano II (ou qualquer outro concílio reconhecido pelo papa) e dizer que era o tempo da “verdadeira” Igreja ou se quiser deixar aquela Igreja para trás e considerá-la como um passo intermediário em direção a uma “nova Igreja”. Pode-se medir a vontade do Papa Francisco para fazer retornar à unidade os deplorados ditos “tradicionalistas” (isto é, aqueles que se opõem ao Missal de Paulo VI) na comparação com sua determinação em pôr fim aos inúmeros abusos “progressistas” da liturgia (renovada de acordo com o Vaticano II), que são equivalentes à blasfêmia. A paganização da liturgia católica – que em sua essência nada mais é do que a adoração do Deus Único e Trino – por meio da mitologização da natureza, da idolatria do meio ambiente, do clima, bem como do espetáculo da Pachamama, os quais foram bastante contraproducentes para a restauração e renovação de uma digna e ortodoxa liturgia que refletisse a plenitude da fé Católica.
Ninguém pode fechar os olhos para o fato de que até mesmo os padres e leigos que celebram a Missa segundo a ordem do Missal de São Paulo VI estão agora sendo amplamente criticados como tradicionalistas. Os ensinamentos do Vaticano II sobre a singularidade da redenção em Cristo, a plena realização da Igreja de Cristo na Igreja Católica, a essência da liturgia católica como adoração a Deus e mediação da graça, a Revelação e sua presença nas Escrituras e na Tradição Apostólica, a infalibilidade do magistério, o primado do papa, a sacramentalidade da Igreja, a dignidade do sacerdócio, a santidade e indissolubilidade do casamento – tudo isso está sendo hereticamente negado em contradição aberta ao Vaticano II pela maioria dos bispos e funcionários leigos alemães (ainda que disfarçados sob pretextos pastorais).
E apesar de todo o aparente entusiasmo que expressam pelo Papa Francisco, eles estão negando categoricamente a autoridade conferida a ele por Cristo como o sucessor de Pedro. O documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a impossibilidade de legitimar contatos sexuais extraconjugais entre pessoas do mesmo sexo por meio de uma bênção é ridicularizado por bispos, padres e teólogos alemães (e não apenas alemães) como se fosse meramente a opinião de funcionários curiais subqualificados. Aqui temos uma ameaça à unidade da Igreja na fé revelada, uma reminiscência do tamanho da separação protestante com Roma no século dezesseis. Dada a desproporção entre a resposta relativamente modesta aos ataques massivos à unidade da igreja feitos pelo “Caminho Sinodal” alemão (bem como em outras pseudo-reformas) e o severo disciplinamento sobre a minoria do rito antigo, a imagem de uma brigada de incêndios atrapalhada vem à mente, a qual – em vez de salvar a casa em chamas – salva primeiro o pequeno celeiro próximo a ela.
Sem a menor empatia, ignora-se o sentimento religioso dos (frequentemente jovens) participantes das missas segundo o Missal João XXIII (1962). Em vez de apreciar o cheiro das ovelhas, o pastor aqui as golpeia fortemente com seu cajado. Também simplesmente parece injusto abolir as celebrações do “antigo” rito apenas porque atrai algumas pessoas problemáticas: abusus non tollit usum.
O que merece atenção especial em Traditionis Custodes é o uso do axioma lex orandi-lex credendi (“lei da oração – lei da fé”). Esta frase aparece primeiro no Indiculus antipelagiano (“Contra as superstições e o paganismo”), que falava sobre “os sacramentos das orações sacerdotais transmitidos pelos apóstolos para serem celebrados uniformemente em todo o mundo e em toda a Igreja Católica, a fim de que a regra da oração seja a regra da fé” (Denzinger Hünermann, Enchiridion symbolorum 3). Refere-se à sustentação dos sacramentos (em sinais e palavras), mas não ao rito litúrgico, dos quais havia muitos (com diferentes variantes) na era patrística. Não se pode simplesmente declarar o último missal como a única norma válida da fé católica sem distinguir entre a “parte que é imutável em virtude da instituição divina e as partes que estão sujeitas a mudanças” (Sacrosanctum Concilium 21). A mudança litúrgica dos ritos não representam uma fé diferente, mas antes testemunham a única e mesma fé apostólica da Igreja em suas diferentes expressões.
A carta do papa confirma que ele permite a celebração de acordo com a forma mais antiga sob certas condições. Ele aponta corretamente para a centralidade do cânone romano no Missal mais recente como o coração do rito romano. Isso garante a continuidade crucial da liturgia romana em sua essência, desenvolvimento orgânico e unidade interna. Para que haja justiça, espera-se que os amantes da liturgia antiga reconheçam a liturgia renovada; mas também os seguidores do Missal Paulo VI devem confessar que a Missa segundo o Missal de João XXIII é uma liturgia católica verdadeira e válida, ou seja, contém a substância da Eucaristia instituída por Cristo e, portanto, há e só pode ser “a única Missa de todos os tempos”.
Um pouco mais de conhecimento da dogmática católica e da história da liturgia poderia neutralizar a infeliz formação dos partidos opostos e também salvar os bispos da tentação de agir de forma autoritária, sem amor e tacanhamente contra os partidários da “velha” Missa. Os bispos são nomeados pastores pelo Espírito Santo: “Vigiai sobre vós mesmos e sobre todo o rebanho do qual o Espírito Santo vos constituiu supervisores. Sede pastores da igreja de Deus, que Ele comprou com o seu próprio sangue” (Atos 20, 28). Eles não são meramente representantes de um escritório central onde há oportunidades de promoção. O bom pastor pode ser reconhecido pelo fato de que ele se preocupa mais com a salvação das almas do que com a sua recomendação a uma autoridade superior por meio de um “bom comportamento” subserviente (1 Pedro 5). Se a lei da não-contradição ainda se aplica, não se pode logicamente castigar o carreirismo na Igreja e, ao mesmo tempo, promover os carreiristas.
Esperemos que as Congregação para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramento, com sua nova autoridade, não se embriaguem pelo poder e pensem que devam travar uma campanha de destruição contra as comunidades do antigo rito – na tola crença de que assim eles estão prestando um serviço à Igreja e promovendo o Vaticano II.
Se o Traditionis Custodes deve servir à unidade da Igreja, isso só pode significar uma unidade na fé que nos permita “chegar ao conhecimento perfeito do Filho de Deus”, ou seja, unidade na verdade e no amor (cf. Ef 4, 12-15).
Créditos
Fonte: The Catholic Thing
Traduzido do alemão por Robert Royal com Mons. Hans Feichtinger.
Traduzido do inglês por Carolain Mendes.
Revisão por Augusto