Estamos em uma época particularmente conturbada com grande aplicação de uma espécie de maquiavelismo jornalístico, seja por conta de guerra de narrativa, onde a interpretação ideológica sobre fatos recortados são colocados acima da própria realidade, seja por marketing opinativo, onde se apresenta um (ou alguns) “especialista” para dar sua opinião (para não usar o termo palpite ou ideologia) e esta, por associação sutil, ser tida como “científica” sem a apresentação de nenhuma evidência científica. Esse maquiavelismo é praticado tanto pela direita, quanto pela esquerda.
Nesse contexto de pandemia, a ciência virou o grande “super-trunfo” das discussões. Quem se colocar como defensor e obediente a ela, é o bom e, por conseguinte, quem objetar a decisão supostamente científica é malvado. Ciência para cá, Ciência para lá, e, no meio de tudo isso, todo um jogo de interesse que também não pode ser negligenciado em análises de conjuntura.
Mas, afinal, no meio de tanta verborragia e/ou recortes pseudocientíficos, como não se perder?
Pois bem, o meu conselho é simples. Quem fala de ciência sem qualquer referência ou leitura de literatura científica está de malandragem. Quem não consegue lidar com o debate e a dúvida científica, cujos experimentos não raramente (geralmente por questão de metodologia, mas pode ser por muitos fatores) divergem, mas insiste em recortar as informações que mais lhe apraz, também está de malandragem.
De qualquer forma, meu objetivo neste artigo não é desmerecer a ciência que se desenvolve pelo método científico, mas antes usá-la de modo mais apropriado e honesto, buscando fazer o oposto do que critiquei acima, para abordar uma determinada questão que aflige muitos católicos.
Neste contexto de caos de informação, somado a necessárias restrições por conta da pandemia, a Santa Missa não pode ser celebrada de forma usual, precisando ser tomadas medidas higiênico-sanitárias para minimizar o risco de contaminação. Isso é ponto pacífico em todo o debate e nenhum católico razoável se opõe a isso. O problema aparece, porém, quando entra em cena a modificação quanto a um aspecto que é especialmente sensível ao católico: a comunhão. E não poderia ser diferente, porque a Eucaristia é o centro da vida católica, onde o católico comunga do próprio Cristo!
Por conta deste contexto epidêmico, muitas dioceses obrigaram que a comunhão seja dada na mão, suprimindo o direito (ordinário) do fiel receber a comunhão na boca, magoando, assim, muitos católicos habituados a comungar desta maneira, pois têm consciência de ser um ato de maior reverência para com Deus. Há toda uma discussão histórica, doutrinal e jurídica presente a respeito da legitimidade dessa supressão temporária do direito de comungar na boca, mas que não é o objeto deste artigo. O que quero aqui analisar, do ponto de vista científico, é se a justificativa de limitar que a comunhão seja dada somente na mão é de fato plausível, ou seja, se ela realmente é mais segura em relação à comunhão na boca quanto ao aspecto de transmissão de doenças.
Ao buscar por tal informação na internet, haverá posições controversas em relação a isso. Fazer o mero recorte de posição X seria temerário. O conjunto multidisciplinar de especialistas [1] (ver nota 1) da Thomistic Institute Dominican House of Studies, em um documento que visa passar recomendações de cuidados higiênico-sanitários para o retorno das missas nesse período de pandemia [2], reconhece a controvérsia em relação a comunhão:
Comunhão na língua vs. na mão: Nós consideramos cuidadosamente a questão da Comunhão na língua vs. Comunhão na mão. Considerando que existe uma orientação da Igreja sobre este ponto (ver Redemptionis Sacramentum, nº 92) e reconhecendo os diferentes julgamentos e sensibilidades que estão envolvidos, nós acreditamos que, junto com as precauções adicionais já aqui listadas, é possível distribuir na língua sem que, com isso, haja risco desnecessário.
Opiniões sobre esta questão são variadas dentro da comunidade médica e científica. Alguns acreditam que a Comunhão na língua envolve um elevado e, dentro das atuais circunstâncias, desnecessário risco; outros discordam. Se a Comunhão na língua for providenciada, nós recomendamos neste caso que, ou seja separado um lugar próprio para os que vão receber a Comunhão na língua ou, que eles recebam no final da distribuição da Santa Comunhão, e sugerimos que o ministro use desinfetante para as mãos após cada comungante.
Eis um documento honesto e, como podemos perceber, estamos longe do sonhado consenso científico quanto a esta questão. Aliás, ao contrário do que o maquiavelismo jornalístico quer fazer acreditar, não é tão simples se chegar ao consenso científico. Para alcançá-lo são necessárias muitas corroborações entre muitos estudos e a mitigação de muitas dúvidas e questionamentos. Mesmo assim, quando obtido, não é infalível e nem intocável. Algum questionamento inédito e válido pode fazer retornar a dúvida e dissolver o consenso.
Diante disso, fui atrás de pesquisa científica sobre o assunto. Afinal, como falar de ciência sem recorrer à literatura científica? Pois bem, apesar do barulho envolto na questão da comunhão, não há nenhum experimento para testar as hipóteses envolvidas: 1) a comunhão na boca é mais segura; 2) a comunhão na língua é mais segura; 3) ambas são equivalentes quanto ao risco de contágio. Deixo aqui a sugestão para pesquisadores.
Por outro lado, o que há na literatura científica são estudos para verificar o risco de contágio no cálice comum (common communion cup). A respeito deste ponto, há o artigo de revisão de Pellerin & Edmond (2013): Infecções associadas com rituais religiosos [3]. Transcrevo abaixo a seção quatro do artigo que trata sobre a comunhão no cálice (e não deixarei de listar nas notas os trabalhos citados).
4. O cálice da comunhão comum [4]
A Santa Comunhão é uma prática cristã que consiste em um grupo reunido para compartilhar o pão e o vinho de um ministro ou sacerdote [18]. O vinho é frequentemente compartilhado em um copo ou mergulhando o pão no vinho, uma prática chamada intinction. Depois que cada participante bebe do copo, o ministro limpa a borda antes do próximo comungante beber do copo. Além disso, em algumas igrejas, as bolachas de comunhão são colocadas dentro do copo contendo vinho e com uma colher (conhecida como cochlear) retira-se a bolacha de comunhão do cálice para colocá-la na boca do destinatário. A colher comum não é limpa entre as comunhões.
A capacidade do cálice transmitir infecções tem sido debatida na literatura médica desde o século XIX, quando Forbes e Anders levantaram a hipótese de que a contaminação da boca pode transmitir bactérias ao vinho [19]. Desde então, quatro estudos experimentais, uma revisão, e várias opiniões pontuais, incluindo uma do CDC [Center for Disease Control and Prevention], foram publicadas para discutir o risco de infecção pelo cálice.
O risco de infecção depende de vários fatores, incluindo a carga bacteriana ou viral na saliva dos comungantes, a capacidade do microrganismo em suportar as propriedades antimicrobianas do cálice de ouro/prata e o teor alcoólico do vinho, o pano de linho usado para limpar a borda e a capacidade da pessoa para destruir qualquer microrganismo patogênico. Exemplos de patógenos potenciais são aqueles que são transmitidos via saliva, lesões cutâneas orais/labiais, via oral-fecal ou por gotículas aéreas [18,19,20,21,22,23,24]
Em 1946, Burrows demonstrou que quando voluntários dividiram um copo de comunhão, com instruções para deixar o máximo de saliva possível na borda, as bactérias foram recuperadas em pequeno número [18]. Em 1967, Gregory mostrou, através de uma simulação mais realista do serviço de comunhão, que várias espécies de bactérias podiam ser recuperadas do copo, incluindo estafilococos, espécies de Neisseria, estreptococos beta-hemolíticos e não-hemolíticos e espécies de Micrococcus [18]. Em 1967, Hobbs e colaboradores realizaram experimentos que concluíram que a prata e o vinho podem conter propriedades antimicrobianas. Entretanto, o intervalo de tempo entre cada comunhão no cálice, que é tipicamente de menos de cinco segundos, não era suficiente para causar o decréscimo da contagem bacteriana. Eles também descobriram que girar o cálice era ineficaz na diminuição da colonização; contudo, limpar a borda com pano de linho diminuiu a contagem em 90%. Todos os estudos concluíram que o risco de espalhar doenças não podia ser excluído, mas eram extremamente baixos [19].
Em 1993, Furlow e Dougherty usaram cálices de prata e cerâmica, antes e depois de oito cultos. Eles cultivaram microrganismos potencialmente patogênicos, como Staphylococcus aureus, Haemophilius parainfluenzae e Moraxella catarrhalis. Eles concluíram que copos individuais poderiam ser usados para eliminar o risco de infecção [20].
Por fim, em 1998, a CDC relatou que nunca houve um surto de infecção relacionada ao cálice da comunhão [23]. Eles referenciaram um estudo de 1997 onde 681 participantes que bebiam diariamente do cálice comum não apresentavam maior risco de infecção do que aqueles que participavam com menos frequência ou que se abstinham completamente do serviço cristão. Eles concluíram que é provavelmente seguro participar dos serviços onde o cálice comum é usado, com a ressalva de que qualquer membro da congregação com doença respiratória ativa ou feridas labiais ou na boca se abstivessem de participar [23].
Como conclusão, existem evidências experimentais sugerindo que compartilhar o cálice comum contamina o vinho e o copo. Contudo, nunca houve caso documentado de doença causada pelo compartilhamento do cálice relatado na literatura.
Curiosamente, a Igreja Ortodoxa Grega, certamente desconhecendo tais estudos, decidiu manter a comunhão com cochlear, mas argumentando mais na experiência dos séculos e mantendo um ceticismo quanto a opinião dos cientistas [5].
Mas nem tudo está perdido! Houve um especialista que, quando consultado, fez recomendações pautado no que existe de científico sobre o assunto, não proibindo o uso do cálice comum [6]:
Com base nessa avaliação [o review de Pellerin e Edmond (2013) e o estudo da CDC (1998)], por favor considerar uma destas recomendações:
1) Se a decisão da liderança da igreja foi de usar o cálice da comunhão compartilhado, recomendamos as salvaguardas citadas em 1998. Quem portar o cálice deve ser consistentemente treinado para:
- Limpar a borda interna e externa entre as comunhões
- Girar o pano ou o purificador durante o uso
- Usar um pano limpo para cada serviço
2) É nosso entendimento que o recebimento da hóstia ou a bênção pode ser suficiente. Neste caso, pode ser apropriado limitar a Comunhão a um desses tipos durante este período de grande propagação de germes em toda a comunidade.
Pois bem, e onde fica a Comunhão na boca vs. Comunhão na mão neste contexto de pandemia? Por comparação e bom senso, penso que o modo ocidental de comungar é mais seguro que o uso do cochlear e mais ainda que o do compartilhamento do cálice. Sendo assim, há fortes indícios que a proibição da comunhão na boca sob pretexto de segurança higiênico-sanitária é exagerada. Se é mais seguro que a comunhão na mão, não sabemos (seria ótimo se este artigo pudesse motivar experimentos com vistas a responder cientificamente esta dúvida), mas os estudos que existem apontam que a opinião e as recomendações do Thomistic Institute são provavelmente as mais prudentes.
Eu ainda arriscaria a dizer mais. Dado que o vinho e a prata possuem características antimicrobianas, não somente recomendaria a possibilidade de comunhão na boca, mas inclusive na boca e em duas espécies.
Notas:
[1] Dr. Timothy P. Flanigan, M.D. (Prof. of Medicine (infectious diseases), Alpert Medical School of Brown University); Fr. Nicanor Austriaco, O.P. (Prof. of Biology, Providence College); Dr. Thomas W. McGovern, M.D. (Catholic Medical Association National Board Member, Former Clinical Research Physician, U.S. Army Medical Research Institute of Infectious Diseases); Fr. Dominic Legge, O.P. (Assist. Prof. of Theology, Director of the Thomistic Institute, Dominican House of Studies); Fr. Dominic Langevin, O.P. (Assistant Professor, Editor of The Thomist, Dominican House of Studies); Fr. Paul Scalia (Vicar for Clergy, Diocese of Arlington); Fr. Gregory Pine, O.P. (Thomistic Institute). We are grateful for the comments and review of Rev. Msgr. Robert J. Vitillo ( Attaché, Permanent Observer Mission of the Holy See to the UN in Geneva and Secretary General, International Catholic Migration Commission ); Dr. Thomas Cesario, M.D. ( Prof. of Medicine (infectious diseases), Univ. of Calif. Irvine School of Medicine ); Dr. Paul Cieslak, M.D. ( Infectious Diseases & Public Health, Catholic Medical Association member ); Dr. Daniel Sulmasy, M.D., Ph.D. ( Prof. of Medicine, Georgetown University ); Dr. Suzanne Strom, M.D. ( Associate Clinical Professor, University of California, Irvine ); Fr. Christopher Pollard ( Diocese of Arlington ); and Fr. John Baptist Ku, O.P. ( Assoc. Prof., Dominican House of Studies )
[2] Working Group on Infectious Disease Protocols for Sacraments & Pastoral Care. Guidelines on Sacraments and Pastoral Care: Part III – Phased Restoration of Public Masses. Version 1.2, May 7, 2020, pp. 1-24. Link: https://static1.squarespace.com/static/580e5b23579fb3fdc10ab03c/t/5ebb085a563107184e616409/1589315675057/Guidelines+for+Mass+%285.7.2020%29.pdf
[3] PELLERIN, J., EDMOND, M. B. Infections associated with religious rituals. International Journal of Infectious Diseases, v. 17, n. 11, 2013, pp. 945-948. Link: https://doi.org/10.1016/j.ijid.2013.05.001
[4] Referências desta seção do artigo:
[18] O.N. Gill. The hazard of infection from the shared communion cup. J Infect, 16 (1988), pp. 3-23.
[19] B. Hobbs, J. Knowlden, A. White Experiments on the communion cup. J Hyg (Lond), 65 (1967), pp. 37-48.
[20] T. Furlow, M. Dougherty. Bacteria on the common communion cup. Ann Intern Med, 118 (1993), p. 572.
[21] J.B. Janeke, G. Bruin. Holy communion—chalice or challicles? S Afr Med J, 95 (2005), p. 544.
[22] D. Kingston. Memorandum on the infections hazards of the common communion cup with especial reference to AIDS. Eur J Epidemiol, 4 (1988), pp. 164-170.
[23] L. Managan, L. Sehulster, L. Chiarelo, D. Simonds, W. Jarvis. Risk of infectious disease transmission from a common communion cup. Am J Infect Control, 26 (1998), pp. 538-539.
[24] Infection at the altar. Can Med Assoc J, 1967;96:1383.
[5] Ver a matéria do jornal Los Angeles Times: Communion shared-spoon ritual unchanged in Orthodox Church despite virus. Link: https://www.latimes.com/world-nation/story/2020-05-29/communion-ritual-unchanged-in-orthodox-church-despite-virus
[6] VARGHESE, K. Reuben. Coronavirus and Religious Rituals. Arligton Virginia – Department of Human Services – Public Health Division, 6 March 2020. Link: https://arlingtonva.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/sites/25/2020/03/Coronavirus-and-Religious-Rituals.pdf