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Do Guadalupe à Ucrânia

Por Gabriel

Não fale muito alto, caro leitor… É porque hoje Clio e Têmis acordaram de mau humor. Aquela porque ignoraram os seus conselhos, esta porque não é mais levada a sério. Também fale baixo porque André, Círilo, Metódio e Valdomiro estão rezando no oratório e, é um péssimo momento para atrapalhar as preces dos Santos. Todos na casa já estão enfezados porque Climene é a única que está de bom humor. Parece até que dormiu com o Bozo. Eu testemunhei e vocês também, desde os últimos dias, o motivo deste clima tão tenso. Eu primeiro notei isto lá na Praça do Guadalupe, aquela suíte dos coitados, pois é ao mesmo tempo seu dormitório e sua latrina.

Isso é uma daquelas metáforas para o estado de alma das pessoas, não só as que frequentam aquela encruzilhada pitoresca do centro desta capital, mas de todos que pegam um ônibus também em Paris e Berlim, Londres e Nova York, pois, neste mundo pequeno da modernidade, os modos aqui são os mesmos das pessoas de todo hemisfério. Agora, já podem entender que aquela cena irritante dos fura-catracas entrando num ônibus sem pagar é uma microrreprodução da nossa política internacional nesta manhã cinzenta de 24 de fevereiro. Tal cena está para a Invasão da Ucrânia como um vírus atacando uma célula está para o corpo todo cujo nariz escorre, a febre escalda e as forças se diluem. Vejamos o porquê…

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Quando uma daquelas pragas urbanas (piores que os pombos, estes ratos alados) pula a catraca, é retumbante a indiferença daqueles que entram no ônibus com toda a indolência, arrastando-se para mais um dia sem sentido e sofrido em suas vidas com propósitos meramente venéreos e estomacais. Este delito onera os motoristas, extorque os passageiros e faz cada curitibano de trouxa, mas ainda assim ocorre à granel pela cidade, não só no pitoresco Guadalupe. Se alguém tem ainda (aleluia!) senso de justiça, ele é, todavia, compelido pelo medo a ficar parado, pois sabe que vai ser o único a se opor ao ato de vadiagem. Já que talvez ninguém se solidarize, o cidadão justo prefere abrir alas ao injusto, pois não quer se pôr em risco de tomar uma facada.

Eis aí a razão da irritação de Têmis: ninguém mais leva a sério a justiça. A maioria das pessoas prefere lavar as mãos e fechar os olhos para a injustiça flagrante, ao invés de ter a monotonia do seu dia estragada pelo dever de guardar a justiça. Se é assim na vida quotidiana do cidadão médio, porque seria diferente na vida da política internacional? Assim como, pelo menosprezo da justiça e do correto, não se fazem mais cavalheiros nos dias de hoje, também não se fazem mais estadistas pelo mesmo menosprezo. Uma injustiça clamorosa, pois datada de séculos, foi mais uma vez deflagrada nesta madrugada no Leste Europeu; quem vai olhar nos olhos do fura-catraca e dizer “aqui você não entra”? O delinquente geopolítico agradece a todos os dirigentes políticos das grandes nações ocidentais pela indiferença hipócrita, porque ela é dissimulada com hashtags, notas de repúdio, iluminação de prédios públicos com as cores nacionais da Ucrânia e uma retórica de Twitter tão impressionante e hiperbólica, que se fosse algo além de palavras já teria causado um Armageddon. Nesta estação-tubo do globo terrestre, todos os passageiros aceitam serem feitos de trouxa. Eles ignoraram por completo a “mulher do ônibus” que diz a cada viagem: “não pagar a passagem encarece a tarifa”. A tarifa vai ficar bem cara para os senhores Scholz, Biden, Johnson, Macron e congêneres.

Mas aí começamos a saber o porquê Clio também está irritada: todo mundo ignora os seus sábios conselhos e a sua experiência de vida milenar. Há dois séculos que Alexis de Tocqueville disse que a Rússia seria imparável no futuro. Muito óbvio: quem poderia desconfiar que um país tão largo e tão rico em recursos não tornar-se-ia uma tal potência? Se o destino da Rússia era este, ao menos deveria se tomar cuidado para que neste futuro em que estamos ela tivesse um governo equilibrado, sábio e, que se enfatize mais uma vez, justo. Os czares não foram nem um pouco justos com seus súditos (que estavam mais para escravos) ucranianos; todavia, ainda guiavam-se pelos preceitos religiosos e por uma visão de mundo política que não conhecemos mais hoje. Mas – que tragédia patética! – quem é que poderia dizer que ucranianos ou russos estariam melhor sob o regime comunista do que sob o czarista? E mais: se a Rússia tinha um futuro de poder a sua frente, quem poderia achar que os comunistas seriam mais qualificados moralmente para governar esta potência do que os czares, com todos os defeitos que estes tinham? Percebes agora, leitor, como a catraca do mundo já vinha sendo furada a muito tempo…

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Quando a tragédia foi anunciada, em 1917, Lênin, que não era nem um pouco tonto, ofereceu aos socialistas ucranianos a independência em relação à Rússia desde que eles aceitassem o comunismo. Houve quem se opusesse, os nacionalistas, porém foram derrotados na guerra civil que se seguiu à Revolução. Qual foi a retribuição comunista? Um genocídio ignominioso quatorze anos mais tarde e o aumento da tarifa para os passageiros malemolentes do Ocidente materialista e liberal, qual foi ele? Foi bem além dos infames 20 centavos: foi a disseminação do comunismo pelo mundo com o financiamento e auspícios do Comintern, bem como o acordo de amizade entre Alemanha e Rússia que permitiu àquela a reestruturação militar necessária para a II Guerra Mundial.

Não foi por falta de aviso. Churchill, naqueles anos do fim da I Guerra Mundial, alertava ao Parlamento Britânico que era necessário esmagar o comunismo antes que ele assumisse o controle da Rússia; entretanto, LLoyd George e Clemanceau, primeiros ministros da Inglaterra e França respectivamente, estavam mais preocupados com as bolsas de valores em Londres ou Paris, com os gastos de guerra, as próximas eleições, etc. Em suma, todas as preocupações medíocres do ocidental liberal e materialista, que não pensam no amanhã e que preferem não ter o dia incomodado pelo dever de mandar o trombadinha pagar a passagem (isso para não falar da Alemanha, que ajudou ativamente o estabelecimento do regime bolchevique; e ainda há quem acenda uma velinha para a velha monarquia alemã…). Ao invés de invadir a Rússia Soviética, os aliados fizeram pouco caso da catástrofe que se anunciava.

Houve ainda mais uma chance para evitar que a passagem disparasse: em 1945, quando os aliados acabavam de chegar a Berlim, o general americano George Patton disse à Casa Branca: “aproveitemos que a Alemanha está fora do jogo e que a Rússia está fragilizada, e vamos invadir a URSS e derrubar o comunismo; estamos muito próximos de Moscou”. Que insano! Jogar o mundo em mais uma guerra mundial?! “Que mal poderia acontecer se deixássemos a Rússia em paz?” – perguntaram com arrogância os dirigentes políticos ocidentais. Clio nos conta o que de fato aconteceu por isso: a Guerra Fria, uma maior disseminação do comunismo pelo mundo, conquistando a China e Vietnã, muito da África e quase causando guerras civis endêmicas na América Latina.

Não obstante tudo isto, hoje o Ocidente novamente faz de conta que nada vê, enquanto a Ucrânia luta pela sua própria causa e, sem que o mundo o saiba, pela do Ocidente também. A nós católicos, como bem lembrou um amigo meu hoje, foi dado um aviso pela Chanceler do Reino dos Céus do que havia de acontecer. Aqui estamos nós, entretanto, sendo os desprezados do mundo que gostaríamos de salvar com nossos fraternais e sábios conselhos. Eis-nos aqui, quais Dons-Quixotes, ainda hoje nos interpondo aos fura-catracas, mesmo sem o apoio daqueles a nossa volta, sem medo de facadas ou pancadas; fazemos isto porque não temos senão poder sobre nossa própria vida quotidiana, enquanto assistimos, sem poder impedir, a mesma tragédia no teatro do mundo, que custa muito mais do que os centavos adicionais que pagaremos na passagem para o trabalho neste dia. Entendes agora porque a musa da história é totalmente compreensível em sua irritação de hoje?

O amanhã não nos pertence, mas Deus não vai suspender o movimento que deu aos astros e ao universo só para, com prodígios e milagres, fazer no nosso lugar o que poderíamos e deveríamos fazer por nós mesmos. Isto quer dizer, encarar com coragem o drama que ocorre na nossa frente e nele defender a justiça, a caridade e a retidão. Não podemos muito fazer diante do que vemos na Europa, só podemos nas nossas próprias vidas fazer algo. Ao menos não sejamos como o povo de cabeça dura, que nada aprende, mas aprendamos a coragem e o amor à justiça, sem os quais estaremos condenados, como o Ocidente apóstata neste dia de hoje, a sermos uma eterna presa do mal. E neste martírio não haverá glória, pois não é causado por piedade heróica, mas pela covardia e pela negligência de quem enterrou os talentos da ciência que recebeu de Deus.

Sobre Gabriel

Coordenador do Grupo de Estudo Jusnaturalismo e Cristandade

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