A Santa Sé anunciou o texto da consagração solene que o Santo Padre Francisco pronunciará em 25 de março. A oração é bela e exprime uma Mariologia essencial, profunda e biblicamente bem fundamentada. Neste breve estudo pretendo deter-me naquelas palavras que, precedidas de uma adequada explicação e preparação, indubitavelmente constituem o coração da própria oração.
“Por isso, Mãe de Deus e nossa, nós solenemente confiamos e consagramos ao vosso Imaculado Coração nós mesmos, a Igreja e toda a humanidade, de modo especial a Rússia e a Ucrânia”.
Primeiro devemos ver o significado das palavras “confiamos” e “consagramos”; em seguida veremos a inter-relação desses dois conceitos.
1. O que queremos dizer com a expressão “nos consagramos”, referindo-se ao Imaculado Coração de Maria.
Os termos “consagração” e “confiança” podem, por si mesmos, ter diferentes significados: basta pensar em “consagração do pão e do vinho”, “consagração a Nossa Senhora”, “consagrados pelo batismo”, “pessoas consagradas com votos religiosos”, Consagrar-se a …” etc. Um argumento semelhante poderia ser feito com o termo “confiança”.
Para entender melhor o que é “consagração” e a diferença que há com “confiança”, no campo semântico da expressão “consagração a…”, leiamos o Magistério dos Papas.
O termo “consagração”, no sentido que nos interessa, foi muito bem explicado por Leão XIII na Encíclica Annum Sacrum (25-5-1899).
“… Jesus, por sua bondade,… permite que nós acrescentemos, da nossa parte, o título de uma consagração voluntária. Jesus Cristo, como Deus e Redentor, está sem dúvida na posse plena e perfeita de tudo o que existe, enquanto nós somos tão pobres e destituídos, que nada temos para poder oferecer-lhe como coisa verdadeiramente nossa. No entanto, na sua infinita bondade e amor, não só não se recusa a oferecer e consagrar o que é seu, como se fosse um bem nosso, mas também o deseja e pede: «Filho, dá-me o teu coração» (Pr 23,26). Podemos, portanto, com nossa boa vontade e com a nossa boa disposição de espírito, apresentar-lhe um dom agradável. De fato, consagrando-nos a ele, não só reconhecemos e aceitamos seu domínio aberta e alegremente, mas afirmamos com os fatos que, se o que oferecemos fosse verdadeiramente nosso, nós o ofereceríamos a ele da mesma forma com todo o coração. Além disso, oramos para que ele não se importe em receber de nós o que, na realidade, é plenamente dele. É assim que o ato de que falamos deve ser entendido, e esse é o significado de nossa palavra”.
Trata-se aqui da consagração ao Coração de Jesus, fundamentada…
a) … no reconhecimento de que Jesus Cristo é o Senhor de tudo e, portanto, também de tudo o que é nosso e…
b) … no fato de que o Senhor quer que lhe re-ofereçamos tudo de novo.
Ora, a Divina Providência não se dispôs a reinar sozinha, mas a compartilhar a sua realeza e o seu senhorio: basta pensar que todos os batizados são reis ungidos, sacerdotes e profetas. Essa realeza e senhorio não são compartilhados por todos no mesmo grau; é claro que Maria é aquela que participa no mais alto grau do senhorio e da realeza de Jesus Cristo. São Luís de Montfort, em seu Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, explica bem este conceito:
[37]… Maria recebeu de Deus um grande poder sobre as almas dos eleitos. Ela não pode fazer neles a sua morada, como Deus Pai lho ordenou; formá-los, alimentá-los e gerá-los para a vida eterna como sua mãe; recebê-los por sua herança e quinhão; formá-los em Jesus Cristo e a Jesus Cristo neles; lançar nos seus corações a raiz das suas virtudes e ser a companheira inseparável do Espírito Santo nas obras de sua graça; não pode, repito, fazer tudo isto se não tiver direito e poder sobre as suas almas. Por singularíssima graça, o Altíssimo, tendo-lhe dado o poder sobre o seu Filho Único e natural, lho deu também sobre os Seus filhos adotivos, e isto não somente quanto ao corpo, o que seria pouco, mas também quanto à alma.
[38] Maria é Rainha do Céu e da Terra por graça, como Jesus Cristo o é por natureza e conquista. Ora, assim como o Reino de Jesus Cristo consiste principalmente no coração ou interior do homem, segundo estas palavras: “O Reino de Deus está dentro de vós ” (Lc 17, 21), assim também o Reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, na sua alma. É sobretudo nas almas que Ela é mais glorificada com seu Filho do que em todas as criaturas visíveis, e podemos chamá-la, com os santos, Rainha dos corações..
O pensamento de Montfort encontra-se no ensinamento de Pio XII: “A Santíssima Virgem teve não apenas o grau supremo, depois de Cristo, de excelência e de perfeição, mas também participou daquela eficácia pela qual justamente se afirma que o seu divino Filho e nosso Redentor reina na mente e na vontade dos homens” (Enc. Ad Caeli Reginam, 11.10.1954).
Agora vamos modificar um pouco – adaptando-o à Nossa Senhora – o que Leão XIII escreveu sobre o Sagrado Coração de Jesus:
“Nossa Senhora, em sua infinita bondade e amor, não só não se recusa a oferecer e consagrar o que é dela – enquanto é recebido de Jesus – como se fosse bem nosso, mas ela o deseja e pede: “Filho, dá-me o teu coração” (Pr 23,26). Podemos, portanto, com nossa boa vontade e com a nossa boa disposição de espírito, apresentar-lhe um dom agradável. De fato, consagrando-nos a ela, não só reconhecemos e aceitamos aberta e alegremente o seu domínio, que lhe foi transmitido por Jesus, mas com fatos afirmamos que, se o que oferecemos fosse verdadeiramente nosso, o ofereceríamos a ela de todo o coração. Além disso, oramos para que ela não se importe em receber de nós o que, na realidade, é totalmente seu”.
Devemos levar em conta, no entanto, que Maria é toda relativa a Cristo, tendo recebido dele seu poder de Rainha de Corações: tudo o que ela recebe de nós é imediatamente trazido e apresentado a Jesus: além disso, nossa própria consagração a Maria não pode deixar de ter como objeto direto o próprio Cristo. Desenvolvendo ainda mais a bela explicação de Leão XIII, poderíamos ainda parafrasear: “Ao pedido divino: ‘Filho, dá-me o teu coração’ (Pr 23,26) respondemos: ‘Sim, aqui está o meu coração, que te ofereço confiando-o a Maria, para que assim seja ela que o apresenta a vós como sua propriedade e posse, porque assim quisestes que fosse na dinâmica da Redenção'”.
Consagrar-se a Maria significa, portanto, consagrar-se a Jesus por Maria, e não é possível consagrar-se a Jesus senão deste modo. De fato, como diz São Luís de Montfort, sempre no Tratado:
[44] … o Altíssimo fez dela a única guardiã de seus tesouros e a única dispensadora de suas graças, para que ela enobreça, eleve e enriqueça a quem lhe aprouver, para que possa fazer entrar no caminho estreito do céu quem ela quiser, para fazer passar, apesar de tudo, pela porta estreita da vida a quem ela quiser, e para dar a quem ela quiser conceder o trono, o cetro e a coroa de um rei. Em toda parte, é sempre Jesus o fruto e o filho de Maria. Em toda parte, Maria é a verdadeira árvore que dá o fruto da vida, a verdadeira mãe que o produz.
2. O que significa “confiar-se ao Imaculado Coração de Maria”
E agora passamos a examinar o termo “confiança”, usado particularmente no magistério e nos atos solenes de João Paulo II [1]. Segundo as próprias palavras do Papa, “confiança” refere-se ao ato com que o próprio Jesus confiou o discípulo a Maria Santíssima: “Mulher, eis o teu Filho”. Jesus é o primeiro a nos confiar a Maria; quando nos confiamos a ela, não fazemos senão concordar com o que Jesus fez, fazendo um gesto semelhante a São João que, uma vez confiado a Maria, “a levou consigo desde aquela hora” (Jo 19,27).
São João não só acolheu Maria em sua casa, senão que a acolheu no seu coração, aceitando-a como Mãe, conforme Jesus lhe dissera: “Eis a tua Mãe”. Ele a recebeu como uma herança preciosa de Jesus, mãe da graça para ele e para todos os discípulos de Cristo desde aquela hora. Ele aceitou a confiança de Jesus e, por isso, trouxe a confiança para si.
3. “Confiar-se e consagrar-se” ao Imaculado Coração
Se no momento em que Jesus confiou São João à Sua Mãe e o discípulo à Mãe, desde aquela hora o discípulo “a levou consigo” (eis ta ídia = na sua própria casa => nas profundezas do seu coração) – não só na sua casa para vos prover a necessidade material, mas no mais íntimo do seu coração – como não crer que Nossa Senhora também nos levou profundamente “ao coração”, como tesouro redimido pelo sangue de Seu Filho, para progeter e custodiar maternalmente? Não à toa, em Fátima, Nossa Senhora prometeu à Irmã Lúcia que o Seu Imaculado Coração seria o refúgio e o caminho que conduziria a vidente ao Céu, e com ela, todos aqueles que se refugiassem no Imaculado Coração.
Podemos notar no Evangelho de São João um artifício literário sobre o termo ídios (= próprio): no prólogo do Evangelho lemos que seus amigos mais próximos (hoi ídioi) não o reconheceram. Em contraposição a esta recusa, sob a cruz há um novo acolhimento, que recapitula e repara a antiga recusa. Acolhe-se Jesus acolhendo no íntimo (eis ta ídia) a Mãe de Jesus, que Ele mesmo nos deu como nossa Mãe também.
Consagrar-se e confiar-se ao Imaculado Coração de Maria significa que pretendemos levar a Mãe no coração, porque e na medida em que acreditamos que a Mãe, por indicação de Jesus, nos leva no coração.
4. Relação entre “consagração” e “confiança” a Maria
Qual é a relação entre consagração e confiança? Os dois termos têm significados diferentes, mas entendemos que não se pode consagrar sem se confiar, nem confiar sem se consagrar.
Com efeito, não podemos dar-nos todos a Maria senão da forma como Jesus nos deu a ela, ou seja, confiando-nos como filhos. Tampouco podemos confiar-nos a Maria, isto é, acolhê-la no Coração como Rainha e Mãe, mantendo qualquer coisa nossa fora de seu domínio e influência como Mãe e Rainha.
A expressão escolhida pelo Papa “confiamos e consagramos” nós mesmos etc. soa simplesmente perfeito: “confiança” e “consagração” são como duas faces de um mesmo precioso e deslumbrante diamante: duas abordagens diferentes, mas complementares, para dizer a Nossa Senhora: somos todos vossos!
5. Papa Francisco e a consagração
O ato do Papa Francisco segue ações semelhantes de seus predecessores, nenhum dos quais, exceto São João Paulo II (vexata quaestio), teria satisfeito o pedido de Nossa Senhora em Fátima: em particular a menção explícita da Rússia.
Ainda hoje não faltam reações, tão desorientadas quanto improvisadas, segundo as quais nem desta vez Nossa Senhora ficaria “satisfeita”.
Pessoalmente, confio no que a Irmã Lúcia escreveu, segundo o qual a consagração realizada por São João Paulo II em 1984 teria sido aceita pelo Céu, embora não exatamente de acordo com a carta do pedido de Nossa Senhora.
Numa carta datada de 29 de Agosto de 1989, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, à pergunta: “A consagração do mundo de acordo com o pedido de Nossa Senhora está completa?”, a Irmã Lúcia respondeu:
Em 31 de outubro de 1942 foi feito por Sua Santidade Pio XII; depois me perguntaram se estava de acordo com o pedido de Nossa Senhora: respondi que não, porque não houve a união com todos os bispos do mundo. Então Sua Santidade Paulo VI fez em 13 de maio de 1967. Perguntaram-me se estava em conformidade com o que Nossa Senhora pediu. Respondi que não pelo mesmo motivo: faltou união com todos os bispos do mundo.
Finalmente, Sua Santidade João Paulo II o fez em 13 de maio de 1982. Quando me perguntaram se estava de acordo com os pedidos de Nossa Senhora, respondi que não, continuando a faltar união com todos os bispos do mundo. Em seguida, o próprio Sumo Pontífice João Paulo II escreveu a todos os bispos do mundo pedindo que se juntassem a ele; mandou trazer para Roma a imagem de Nossa Senhora de Fátima (a da capela) e no dia 25 de março de 1984, publicamente, em união com os bispos que queriam juntar-se a ele, fez a consagração como Nossa Senhora queria. Mais tarde me perguntaram se estava de acordo com o que Nossa Senhora pediu e eu respondi que sim. A partir desse momento, a consagração está completa.
Por que então esta necessidade de Deus de celebrar esta consagração em união com todos os bispos do mundo? Porque é um apelo à união de todos os cristãos – o corpo místico de Cristo – à frente do qual está o Papa, o único verdadeiro representante de Cristo na terra, a quem o Senhor confiou as chaves do reino dos céus. E desta união dependem a fé no mundo e a caridade, que é o vínculo que deve unir todos nós em Cristo, como Ele pediu ao Pai [2].
Acredito na Irmã Lúcia, tendo também em conta que, se a Igreja, em certos casos, pode estabelecer e modificar a forma dos sacramentos (dentro de certos limites), a fortiori ela também tem uma certa autoridade sobre as palavras de uma oração pedida numa revelação privada.
Sabemos que as principais dificuldades para uma consagração (não apenas a confiança) com menção explícita à Rússia eram de duas ordens: a primeira teológica, devido a uma forte alergia ao termo “consagração” em referência à Nossa Senhora, querendo reservá-la para outras contextos; o segundo obstáculo era de natureza política e ecumênica: queríamos evitar irritar o Patriarcado de Moscou.
Dada a gravidade do momento, o Papa Francisco ignorou toda a oposição. Seu raciocínio é bem representado em uma frase com a qual descreve a prática do ecumenismo: “Em todas as comunidades há bons teólogos: que discutam, que busquem a verdade teológica, porque é um dever, mas caminhemos juntos” [3].
Assim, deixando de lado as discussões teológicas e as preocupações diplomáticas, “caminhemos juntos” e refugiemo-nos todos no Imaculado Coração de Maria: ali será mais fácil para abaixar as armas, abraçar-se e redescobrir a fraternidade momentaneamente esquecida.
Notas:
[1] SÃO JOÃO PAULO II, Carta Encíclica. Redemptoris Mater, 25 de março de 1987, §§ 45-46 passim: “… O Redentor confia Maria a João, na medida em que confia João a Maria. Aos pés da Cruz teve o seu início aquela especial entrega do homem à Mãe de Cristo, que ao longo da história da Igreja foi posta em prática e expressa de diversas maneiras. Quando o mesmo Apóstolo e Evangelista, depois de ter referido as palavras dirigidas por Jesus do alto da Cruz à Mãe e a si próprio, acrescenta: «E, a partir daquele momento, o discípulo levou-a para sua casa» (Jo 19, 27), esta afirmação quer dizer, certamente, que ao discípulo foi atribuído um papel de filho e que ele tomou ao seu cuidado a Mãe do Mestre que amava. E uma vez que Maria lhe foi dada pessoalmente a ele como mãe, a afirmação indica, embora indiretamente, tudo o que exprime a relação íntima de um filho com a mãe. E tudo isto pode encerrar-se na palavra «entrega». A entrega é a resposta ao amor duma pessoa e, em particular, ao amor da mãe. A dimensão mariana da vida de um discípulo de Cristo exprime-se, de modo especial, precisamente mediante essa entrega filial em relação à Mãe de Cristo, iniciada com o testamento do Redentor no alto do Gólgota. Confiando-se filialmente a Maria, o cristão, como o Apóstolo São João, acolhe «entre as suas coisas próprias» a Mãe de Cristo e introdu-la em todo o espaço da própria vida interior, isto é, no seu «eu» humano e cristão: «levou-a para sua casa». Assim procura entrar no âmbito de irradiação em que se atua aquela «caridade materna», com que a Mãe do Redentor «cuida dos irmãos do seu Filho», para cuja regeneração e formação ela coopera», segundo a medida do dom própria de cada um, pelo poder do Espírito de Cristo. Assim se vai atuando também aquela maternidade segundo o Espírito, que se tornou função de Maria aos pés da Cruz e no Cenáculo. Esta relação filial, este entregar-se de um filho à Mãe, não só tem o seu início em Cristo, mas pode dizer-se que está definitivamente orientado para ele. Pode dizer-se, ainda, que Maria continua a repetir a todos as mesmas palavras, que disse outrora em Caná da Galileia: «Fazei o que ele vos disser».
[2] CARMELO DE COIMBRA, Um caminho sob o olhar de Maria. Biografia da Irmã Lúcia de Jesus e do Imaculado Coração de Maria , Edizioni Carmelo di Coimbra-OCD, Roma 2016, pp. 225-226.
[3] FRANCIS, Audiência Geral, Praça de São Pedro, quarta-feira, 8 de outubro de 2014.
Fonte: Messa in Latino