O progressismo está, de fato, em crise pelo menos desde a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, mas ele tem conseguido se camuflar, se reinventar, assumir outras formas, traçar novas estratégias de apelo político e arregimentação de militância. A fim de compreender melhor os precedentes históricos e as implicações deste fenômeno, apresentamos abaixo alguns apontamentos sobre o desenvolvimento e os efeitos do progressismo a partir da historiografia de Jacques Le Goff, da ciência política de Norberto Bobbio e do jornalismo histórico de Jean-Claude Guillebaud.
Embora tal modo de pensar possa ser rastreado e encontrado até em autores pré-modernos, no século XVII já era possível ver o empirista Francis Bacon disseminando o discurso progressista ao alardear que “a Antiguidade, longe de ser um modelo, não é mais que a juventude balbuciante do mundo. O progresso faz-se por acumulação: ‘O tempo é o grande inventor e a verdade é filha do tempo e não da autoridade’.”, pontua o historiador Jacques Le Goff (História e Memória, Ed. Unicamp, 1990, p. 247). Vemos aí manifesta a concepção questionável segundo a qual a mera passagem do tempo seria capaz de tornar a percepção dos povos mais verdadeira.
A razão moderna consistiu frequentemente em uma razão não apenas autônoma e secularizada, mas também desenraizada do chão da realidade, porque muitas vezes absorvida por ideais e conceitos abstratos sem referência no real, como advertia Edmund Burke, e ainda autodeserdada, porque abjurou do legado da sabedoria dos antepassados. Sem qualquer deferência, pretendeu antes desacreditá-los e enterrá-los para sempre do que aprender com eles para, em seguida, aprimorar o que eles deixaram. Malebranche dizia no séc. XVII: “O mundo está dois mil anos mais velho e tem mais experiência que no tempo de Aristóteles e de Platão” (1990, p. 179). Muitos modernos se consideram, portanto, mais sábios do que os antigos pelo simples fato de serem modernos, de modo que, para estar certo sobre qualquer coisa, importaria mais ser um homem moderno do que ser Sócrates redivivo ou Aristóteles em pessoa.
O filósofo Jean Jacques Rousseau, embora teorizasse que o homem perfeito seria o homem primitivo em seu estado de natureza e que a civilização e o processo de socialização são mais corruptores do que aperfeiçoantes, deu um forte impulso ao progressismo no turbulento século XVIII. Não é à toa que o autor d’O Contrato Social é considerado um dos maiores inspiradores da sangrenta Revolução Francesa. Rousseau foi progressista não apenas ao propor ideais políticos baseados em um democratismo igualitário (estabelecendo a genérica e volúvel “vontade geral” da população como autoridade suprema para as decisões políticas), mas também porque sugeriu transformar o “estado de constrangimento” vigente (desigual) em um estado equânime, racionalmente planejado, que apagasse o que houvera sido instituído até então para instituir algo novo e melhor. Aventou, ainda, a ideia de transmutar a sociedade, que até então havia sido, segundo ele, uma “obra da cega necessidade”, em uma “obra da liberdade” humana, denotando excessiva confiança na “liberdade” (ou numa livre e esclarecida benevolência) do homem moderno. As vítimas dos jacobinos que o digam.
Embora os efeitos destrutivos do pensamento progressista já pudessem ser observados nos séculos XVII e XVIII, sobretudo na Revolução Francesa, e tenha sido apenas no século XX que as suas consequências mais devastadoras tornaram-se patentes e incontestáveis, foi no século XIX que ele logrou difundir-se e fazer fama por todo o Ocidente. Para compreendê-lo, basta recordar que este foi o século de Hegel, Feuerbach, Nietzsche, Marx e Engels. Embora se possa contestar se todos eles são progressistas stricto sensu, certamente todos contribuíram de alguma forma com esse pensamento. O progressismo tornou-se, assim, tão dominante quanto diluído em suas diversas formas de expressão, revelando-se, em algumas delas, como um fator desestabilizador dos arranjos sociopolíticos que se sucederam nos diversos países contaminados pela mentalidade progressista revolucionária, como descreve o cientista político Norberto Bobbio:
“No decorrer do século XIX, o progressismo se foi construindo baseado em três hipóteses fundamentais: a científica, que fez das ciências naturais modelos a imitar no desenvolvimento das ciências humanas e do próprio homem; a democrática, que viu na extensão do poder de decisão política a todos os indivíduos o melhor resultado a que se poderia chegar; a histórico-materialista, que fez da luta de classes o pré-requisito do necessário progresso humano. Combinadas entre si dos modos mais variados, estas hipóteses foram usadas como modelos interpretativos e como ideologia nas grandes transformações do século passado. Sua dinâmica tornou impossível a estabilização de qualquer novo equilíbrio de poder, sempre desmascarado como insuficientemente racional ou ligado a interesses egoístas de classe, e suplantado por tendências mais radicais.” (BOBBIO, Dicionário de Política, Ed. UnB, 1998, p. 244-245)
Um dos pontos altos do progressismo moderno transparece, sem dúvida, nas obras de Auguste Comte, o pai do positivismo. Suas ideias influenciaram enormemente os rumos do Estado brasileiro, sobretudo após o golpe republicano-positivista de 1889, que derrubou uma monarquia constitucional parlamentarista que ainda contava com amplo respaldo popular para impor uma ditadura “republicana” militarista que não havia sido solicitada pelo povo e que ainda foi despótica o bastante para massacrar a população agreste do vilarejo monarquista de Canudos (como os jacobinos fizeram na França com os camponeses da Vendeia), recorrendo sem hesitação à violência, ao terror e ao autoritarismo para se consolidar no poder. Ainda hoje, em diversas estruturas do governo e das forças armadas do Brasil, bem como no nosso modo de pensar e na nossa própria bandeira nacional, é possível encontrar as marcas do positivismo. O lema gravado em nossa bandeira é lembrado por Le Goff em uma citação de Comte:
“A ideologia do progresso encontra, sem dúvida, nesta fase a expressão mais acabada desta ideologia na filosofia de Auguste Comte, tal como ele a exprimiu nomeadamente no Cours de philosopãe positive (1830-42). No Discours préliminaire sur l’ensemble du positivisme [1848] declara: ‘Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao progresso.’.” (1990, p. 258)
No século XIX a mentalidade progressista foi ainda reforçada por aplicações extrabiológicas da teoria da evolução de Charles Darwin. Pensava-se que, se a seleção natural poderia fazer o homem evoluir para algo melhor, não haveria razões para impedir o Estado de acelerar ou “dar um empurrãozinho” nesse processo. O darwinismo social de Francis Galton, um primo de Darwin, apregoava que as sociedades humanas também evoluíam por uma espécie de seleção natural dos mais capazes, o que implicava na crença de que os indivíduos menos aptos deviam ser impedidos de se reproduzirem ou então perecer para que a parte mais saudável do corpo social progredisse.
O racialismo do partido nacional-socialista alemão, por exemplo, deriva de uma convergência de concepções racionalistas modernas (progressistas), darwinistas, nietzscheanas e inclusive pagãs, pois também havia um aporte simbólico do paganismo germânico através da “Sociedade Thule” ou “Vrill”, que já ostentava a suástica que viria a ser o distintivo do partido. Esta sociedade constitui-se como uma seita ocultista que foi o berço do partido nazista e congregou membros do seu alto escalão, como Rudolf Hess, Alfred Rosenberg e provavelmente o próprio Adolf Hitler. Aliás, desde o chamado “Renascimento” ou “Renascença”, nos primórdios da modernidade, que consistiu num renascimento da cultura pagã antiga na Europa, grupos ocultistas, sociedades secretas e seitas neopagãs têm atuado, por trás das cortinas, na promoção de diversos movimentos progressistas e na difusão de ideologias revolucionárias.
No discurso progressista, o evolucionismo parecia dar uma aparência de racionalidade científica ainda maior às propostas de controle e dirigismo estatal da sociedade. Foi um suporte a mais para legitimá-las. Afinal, o que estava em jogo, segundo os seus arautos, era a sobrevivência, o aperfeiçoamento e a evolução do próprio homem, não sendo razoável que os direitos e liberdades civis de alguns indivíduos ou grupos indesejáveis fossem colocados acima do bem geral da humanidade.
Segundo Le Goff, a ideia de progresso, sobretudo a partir de meados do século XX, foi posta em xeque por causa dos genocídios e tragédias humanitárias causados pelos regimes totalitários que se pretendiam totalmente organizados conforme os ditames da razão moderna e mais avançados do que todas as outras formas de governo anteriores.
“Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encarnação histórica “objetiva” de um possível apocalipse –, a descoberta de culturas diversas do ocidente conduziram a uma crítica da ideia de progresso.” (LE GOFF, 1990, Ed. Unicamp, p. 14).
O historiador chega a dizer: “A crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe.” (ibidem). No entanto, ele aqui parece desconsiderar as incontáveis mentes do nosso tempo ainda se creem muito superiores às do passado, além da certeza quase onipresente de que nada é sagrado o bastante para permanecer um tabu “em pleno século 21” (expressão frequentemente usada e abusada) e a convicção de que o tempo presente é, em tudo, muito superior ao passado e o futuro será ainda melhor. Le Goff desconsidera também as numerosas fileiras dos movimentos revolucionários que ainda existem tanto nos países desenvolvidos do hemisfério norte quanto no chamado “terceiro mundo”. O progressismo está, de fato, em crise pelo menos desde a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, mas ele tem conseguido se camuflar, se reinventar, assumir outras formas, traçar novas estratégias de apelo político e arregimentação de militância. Por isso, ele não apenas não morreu, como suas expressões políticas mais bem adaptadas continuam sendo atuantes e até dominantes em muitos países. O feminismo militante é um bom exemplo: embora diversos estudos venham mostrando que as mulheres “liberadas” do século XXI estão mais frustradas e infelizes do que as mulheres de décadas atrás (o que significa dizer que as nossas bisavós talvez fossem mais felizes do que as nossas colegas), diversos grupos de pressão feministas insistem na crença de que um progresso ainda maior no âmbito das liberdades femininas as levará a uma felicidade sem precedentes. Tola ilusão e crendice progressista.
Um significativo salto de produtividade e aumento da prosperidade dos povos após a revolução industrial e agrícola, bem como os avanços na medicina, na tecnologia de transportes e comunicações, entre outras áreas, justificam certa noção de que houve progressos materiais importantes para a humanidade nos últimos séculos. Os meios materiais de vida e os recursos técnicos disponíveis nunca foram tão abundantes. Sobretudo nos campos econômico e técnico-científico, é preciso reconhecer que certo impulso progressista nas ciências naturais de fato trouxe inegáveis benefícios materiais à humanidade – embora esses benefícios tenham sido possibilitados, antes, também pelo surgimento do método científico experimental no auge da Idade Média e, antes ainda, pelos fundamentos filosóficos civilizacionais herdados da antiguidade clássica e cristã.
Não nos é possível, contudo, assumir que aqueles avanços se refletiram também nos âmbitos menos “exatos” da vida humana, como a moralidade, a política e a cultura geral. Quem seria capaz de dizer, por exemplo, que o “socialismo bolivariano” instaurado na Venezuela é uma forma de governo superior ao império constitucional e parlamentarista que tivemos sob Dom Pedro II ou mesmo superior ao sistema feudal? Ou quem poderia afirmar que os estudantes de pós-graduação de hoje são em geral mais cultos, corteses e aplicados do que os bacharéis do final do século XIX, os polímatas da renascença ou mesmo os escolásticos do século XIII? Não são poucos os campos em que poderiam ser feitas objeções contundentes à ideologia do progresso.
“Depois de 1975 o maior ou menor fracasso, mais ou menos patente de todos os grandes sistemas socioeconômicos e políticos do globo arrastou uma aceleração na crise do progresso. As nações ocidentais desenvolvidas revelaram-se incapazes de fazer face à crise da energia, à inflação e ao desemprego; os países ditos socialistas não conseguiram construir uma economia adequada às suas necessidades e infringiram, em maior ou menor grau, os direitos elementares da pessoa humana; a maioria dos países do Terceiro Mundo falharam nos planos econômico e político, vítimas de si mesmos e dos estrangeiros. No caso do Camboja, do Vietnã e de Cuba, a situação é dramática. Para além disso, nos países ocidentais, o apelo à energia nuclear suscitou ou reforçou um forte movimento de crítica à ideologia do progresso.” (ibidem, pp. 272-273)
Com o título Inventário após o Naufrágio, Guillebaud inicia o capítulo primeiro de seu livro A Reinvenção do Mundo recordando os assassinatos em massa que tornaram o século passado um século de horrores, de barbáries inomináveis. Barbaridades cometidas não obstante todo o esclarecimento que se acreditava ter alcançado, toda a tecnologia desenvolvida após a Revolução Industrial, todo o discurso humanitário fajuto difundido após 1789, toda a ciência contemporânea, toda a empáfia com que os intelectuais europeus de fins do século XIX e início do séc. XX falavam dos povos do passado, dos costumes e da mentalidade dos seus ancestrais. Pensava-se ter atingido um nível de civilização elevado e esclarecidíssimo, apostava-se no progresso científico, na sociologia e nas demais ciências que prometiam resolver os problemas do mundo. Mas o que toda essa ilustração desprovida de valores espirituais trouxe foram os genocídios, as atrocidades contra os inocentes, os homicídios em escala industrial, a violência e a insensibilidade ante o sofrimento alheio.
Com o pretexto de instaurar uma sociedade mais desenvolvida, uma ordem social justa e próspera, sem “burgueses exploradores” ou “judeus parasitas”, diversos regimes autoritários foram alçados ao poder por atos revolucionários ou até eleitos por grande parte da população de seus respectivos países. E isso certamente nos diz algo sobre o potencial destrutivo das ideologias baseadas em uma mentalidade historicista e revolucionária quando disseminada e assimilada pelas massas. É característico desta mentalidade o ímpeto de demolir completamente a ordem social existente, aceitando sacrificar os direitos individuais dos cidadãos do presente (ou de uma parcela específica da população, geralmente desprezada pelo partido no poder, como os ucranianos vitimados pelo Holodomor) a fim de erigir um mundo ideal para uma abstrata coletividade, para os cidadãos do futuro ou para os cidadãos considerados dignos desse status.
Transformar eficazmente a sociedade e fazê-la evoluir demanda, naturalmente, mudanças prévias no pensamento e no comportamento de seus membros. Assim, a vergastada “moral tradicional” – classificada frequentemente como “burguesa” e rechaçada pelos rebeldes juvenis de 1968 e pela arte revolucionária “visceral” que surgiu com a contracultura – já havia sido rechaçada antes por um líder progressista cuja imagem se tornou posteriormente, digamos, impopular. Sob o seu comando, “é a pulsão sem limites nem obstáculos de qualquer espécie (e sobretudo sem moral!) que a propaganda nazista vai exaltar. ‘Nossa revolução’, jura o Führer, ‘não tem nada a ver com as virtudes burguesas. Somos a explosão da força da nação. Por que não dizer da força de suas vísceras?’”. (GUILLEBAUD, Ed. Bertrand, 2003, p. 45)
É notório que, após a guerra, o projeto de desconstrução cultural ainda reformula-se e adquire uma roupagem pseudo-libertária. Marcuse, Beauvoir, Sartre, entre outros influentes intelectuais na França, nos EUA, no Brasil e em outras nações do Ocidente, instigaram a massa de estudantes a quebrar os paradigmas, a desprezar os preceitos de conduta ensinados por seus pais. Os heróis da liberdade, da paz e do amor deveriam combater contra tudo o que a geração anterior tinha estabelecido como valor, em nome de uma nova utopia, de uma sociedade sem normas “repressoras” e sem religião, mais livre, igualitária e solidária. Pretenderam reerguer o broquel da justiça e da liberdade e evitar o ressurgimento dos modelos autoritários (igualmente progressistas) da primeira metade do século com o expediente de promover e até impor (muitas vezes, autoritariamente!) um progressismo libertino na segunda metade do mesmo século.
“‘Foi no século XIX’, observava François Furet, ‘que a História substituiu Deus, tornando-se todo-poderosa sobre o destino humano, mas é no século XX que vão ser vistas as loucuras políticas nascidas desta substituição’.” (Ibidem, p. 41)
De acordo com Bobbio, o progressismo está ligado historicamente ao processo de secularização do pensamento político moderno que, fazendo do plano temporal o lugar da completa autorrealização do homem, conferiu à ação política e ao desenvolvimento técnico o papel de instrumentos libertadores da humanidade. Para entende-lo, devemos recordar que, no horizonte do pensamento pré-moderno, sobretudo cristão, o fim último do homem era transcendente: o ser humano foi criado para passar por um tempo de provação e depois retornar ao seu Criador e gozar da felicidade eterna num plano supraterreno, o único no qual o homem pode encontrar a sua plena e verdadeira realização e ficar totalmente livre das agruras existenciais mundanas. A política e todas as atividades humanas, portanto, deveriam orientar-se conforme este fim transcendente. Por conseguinte, submetia-se a autonomia da razão humana aos códigos de conduta inspirados pela revelação divina e por uma compreensão bem definida da lei natural, isto é, daquelas normas balizadoras do pensar e do agir que são ordenadas pela própria natureza das coisas e seus fins naturais.
O pensamento pré-moderno evitava absolutizar o mundo presente, idolatrar a história ou supervalorizar os bens terrenos. Nessa perspectiva, as vicissitudes da história e os recursos disponíveis neste mundo, longe de poderem libertar realmente o homem e torná-lo completamente feliz e realizado nesta vida, não tinham senão o objetivo de amenizar as dificuldades terrenas da humanidade e ajudá-lo a alcançar o seu verdadeiro fim, conforme os imperativos próprios deste. Havia, portanto, uma hierarquia dos fins e um princípio de orientação supratemporal para a ação humana.
Com o pensamento progressista, ganha relevo a ideia de que o homem pode e deve buscar uma felicidade mundana, confiando no potencial e na autonomia da sua razão e agindo historicamente no intuito de tornar a sociedade cada vez mais apta a gerar bem-estar e a satisfazer o maior número possível de indivíduos. É a secularização da própria noção de homem, que deixa de ser visto como um ser dual, físico e metafísico, carnal e espiritual, pertencente não só ao tempo, mas também à eternidade, para tornar-se apenas um macaco pensante. Opera-se, no nível teórico, uma espécie de regressão ontológica.
A concepção antropológica retrocede e é como se o homem sofresse um rebaixamento na hierarquia dos seres. Paralelamente a esse deslocamento do eixo de sentido da vida humana, a modernidade opera uma ruptura com a ética clássica e cristã, fazendo com que a pura conveniência (social, econômica ou política) passe a pautar o comportamento humano no lugar dos mandamentos divinos e de uma compreensão jusnaturalista e finalista (teleológica) da quididade das coisas, da sua natureza essencial. O convencionalismo antiteleológico já se exprimia nas primeiras teorias do contrato social, desde Thomas Hobbes (séc. XVII) pelo menos. A convenção e as possibilidades da ciência experimental ganham primazia sobre a natureza ontológica e os fins metafísicos.
Com essas mudanças, o progressismo se destaca pelo “acento dado ao valor do conhecimento científico e ao significado da progressiva desintegração da ordem hierárquica na sociedade. Enquanto a tese radical fazia do homem uma criatura exclusivamente histórica e capaz de se amoldar, na vida prática, a níveis de conhecimento cada vez mais elevados e, correspondentemente, a formas sempre novas e mais frutíferas, porque racionais, de convivência social” (BOBBIO, Ed. UnB, 1998, p. 244).
Antes de Bacon e Hobbes espezinharem a metafísica e a filosofia política clássicas, tivemos ainda Maquiavel (séc. XVI) que, com o seu “realismo” político amoral (fundado num pretexto de “razões de Estado” próprias), sem dúvida contribuiu para a posterior ascensão do progressismo histórico-materialista. Poderíamos, enfim, encontrar pequenas raízes do progressismo moderno até no nominalismo de Ockham. Contudo, um rastreamento histórico acabado desse pensamento não é exatamente o nosso intuito aqui, pois convém mais entender as consequências trágicas da ideologia progressista do que identificar os seus antepassados.
A modernidade, ao desprezar grande parte da contribuição filosófica cristã (patrística e escolástica) e clássica (greco-romana), precipitou-se em uma credulidade antropocêntrica, alucinada por um suposto paraíso terreno vindouro. A tradição filosófica precedente (e mesmo autores contemporâneos como Hans Jonas) advertia quanto às limitações de uma razão humana que tenha a pretensão de ser autônoma, autorreferenciada e praticamente onipotente, bem como apontava para a importância de um arcabouço ético capaz de nortear a humanidade segundo uma justa hierarquia de fins e conforme uma sensata escala de valores que possa orientar as escolhas do homem e o agir humano no mundo. Mas os modernos execraram a tradição filosófica e desdenharam das suas advertências. Em nome da razão, traíram a mesma razão, transformando-a em ídolo. Essa crença acabou por revelar-se como uma espécie de “messianismo imbuído de cientismo e historicismo” e teve uma de suas expressões mais desastrosas com as tentativas socialistas de realização do “mito de planificação social do desenvolvimento” (BOBBIO, p. 245-6).
Diante desse cenário, parece legítimo, e até urgente (!), sugerir encaminhamentos para uma necessária superação das noções de tempo associadas à visão moderna de um progresso histórico linear. É esta ideia que leva hoje algumas pessoas a crerem, por exemplo, que o aborto eugênico ou o adiantamento sexual precoce de crianças não podem ser considerados absolutamente antiéticos porque a ciência atual nos permite empregá-los e porque, afinal de contas, “estamos em pleno século XXI”… À guisa de um primeiro passo para essa superação, bem como para ensaiar uma ruptura com aquela concepção materialista e linear da história que fomenta a crença no progresso material e técnico entendido como meta suprema e resultante máxima das transformações (legítimas?) da modernidade, faz-se necessário confrontar o pensamento progressista com, no mínimo, um questionamento:
O mais recente, o “da hora” ou o porvindouro é realmente sempre melhor, mais palatável e mais justo que o mais antigo?…
Referências:
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 1998.
GUILLEBAUD, Jean-Claude. A Reinvenção do Mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1990.