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[Filotéia] Amizades – São Francisco de Sales

São Francisco de Sales e religiosas

A AMIZADE EM GERAL E SUAS ESPÉCIES MÁS

O amor ocupa o primeiro lugar entre as paixões; ele reina no coração e dirige todos os seus movimentos; apodera-se de todos eles, comunicando-lhes a sua natureza e as suas impressões; torna-nos semelhantes àquilo que amamos.

Conserva, Filotéia, o teu coração livre de todo o amor mau, porque se tornaria imediatamente um coração mau. O mais perigoso de todos os amores é a amizade, porque os outros amores podem afinal existir sem se comunicar; mas a amizade é fundada essencialmente nesta relação entre duas pessoas, sendo quase impossível que as suas boas e as suas más qualidades não passem de uma para a outra.

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Nem todo o amor é amizade, pois que podemos amar sem ser amados; neste caso só há amor, mas não há amizade; porque a amizade é um amor mútuo, e se o amor não é mútuo, não pode ser chamado amizade. E ainda não é bastante que o amor seja mútuo, é necessário também que as pessoas que se amam conheçam esta afeição recíproca, de modo que, se a ignorarem, têm amor, mas não têm amizade. Em terceiro lugar requer-se que haja alguma comunicação entre as pessoas que se amam, a qual é ao mesmo tempo o fundamento e o sustentáculo da amizade.

A diversidade das comunicações forma a diversidade das amizades e estas comunicações diversas diferem segundo os bens que se podem comunicar mutuamente. Se estes bens são falsos e vãos, a amizade será também falsa e vã, e se são verdadeiros, a amizade será verdadeira.

Destarte a sua excelência cresce à proporção daquela dos bens que se comunicam, como o melhor mel é o que as abelhas sugam das flores mais raras e esquisitas. Em Heracléia, cidade do Ponto, existe uma espécie de mel tão venenoso que quem se alimenta dele fica maluco, porque as abelhas o vão colher no acônito, de que é rica aquela região, e é uma imagem da amizade falsa e má, que se funda na comunicação de bens falsos e favoráveis ao vício.

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A comunicação dos prazeres carnais é uma propensão mútua e isca brutal, que entre os homens não merece o nome ele amizade mais do que a dos jumentos e cavalos, pela semelhança dos efeitos; e se no matrimônio não houvesse mais nenhum efeito, também nele não haveria amizade. Mas porque além desta há nele a comunicação da vida, da atividade dos bens, das afeições e uma indissolúvel fidelidade, por isso a amizade do matrimônio é  verdadeira e santa amizade.

A amizade fundada sobre os prazeres sensuais ou sobre certas perfeições vãs e frívolas é tão grosseira que nem merece o nome de amizade. Chamo prazeres sensuais aqueles que provêm imediatamente e principalmente dos sentidos exteriores, como o prazer natural de ver uma bela pessoa ou de ouvir uma voz melodiosa, de apalpar e outros prazeres semelhantes. Chamo perfeições vãs e frívolas certas habilidades ou qualidades, quer naturais, quer adquiridas, que os espíritos fracos têm em conta de grandes perfeições.

Com efeito, quantas moças, mulheres e jovens dizem com toda a seriedade: Na verdade aquele senhor tem um grande merecimento, porque dança esplendidamente, sabe a fundo todos os jogos, canta que é uma delícia, tem um gosto todo especial para a elegância de vestir-se, mostra sempre um ar agradável, tem uma conversa interessante e alegre!

Que juízos, Filotéia  Deste modo julgam os charlatães entre eles que os maiores tolos são os homens mais perfeitos.

Como tudo isso diz respeito aos sentidos, as amizades daí originárias se chamam sensuais e mais merecem o nome dum divertimento vão que de amizade.

Deste teor são em geral as amizades dos jovens que se prendem com bigodes, com cabelos, com olhares, com roupas, com gestos, com a loquacidade; amizades dignas da idade de amigos que ainda não têm virtude senão na casca, nem juízo algum senão em botão. Por isso tais amizades passam e se desfazem logo como a neve sob a ação do sol.

AS MAIS PERIGOSAS AMIZADES

Certas amizades loucas entre pessoas de diverso sexo, e sem intenção de casamento, não podem merecer o nome de amizade nem de amor, pela sua incomparável leviandade e imperfeição. São abortos ou, melhor ainda, fantasmas da amizade. Prendem e comprometem os corações dos homens e das mulheres, entrelaçando-os em vãs e loucas afeições, fundadas nessas frívolas comunicações de miseráveis agrados de que acabo de falar. E ainda que estes loucos amores por via de regra vão parar e despenhar-se em carnalidades e lascívias muito baixas e torpes, contudo não é este o primeiro desígnio dos que andam nestas conversas, aliás não seriam já amizades, senão desonestidades manifestas. Algumas vezes passarão até muitos anos sem que entre os que estão contagiados desta loucura haja algo diretamente contrário a castidade do corpo, porque se contentam unicamente com desafogar os corações em anseios, desejos, suspiros, galanteios e outras ninharias e leviandades deste teor, levados por diversos fins.

Uns não têm senão o desígnio de saciar o seu coração, dando e recebendo provas de amor, seguindo nisto a sua inclinação amorosa, e estes tais escolhem os amores, consultando apenas o seu gosto e propensão, de sorte que, apenas se lhes depara algum sujeito agradável, sem examinar o seu interior nem o seu procedimento, começam esta comunicação de namorados, e metem-se dentro das miseráveis redes, de que depois muito lhes custará sair. Outros deixam-se levar a isso por vaidade, parecendo-lhes que não é pequena glória agarrar e prender os corações com o amor. E estes, fazendo a sua escolha por ostentação, deitam os seus anzóis, e estendem as suas redes em lugares de bela aparência, elevados, famosos e ilustres. Outros são levados pela sua inclinação amorosa e ao mesmo tempo pela vaidade; porque, embora tenham o coração afeito e inclinado ao amor, não querem porém meter-se a ele senão com alguma vantagem de glória.

Estas amizades são todas más, loucas e vãs: más, porque vão dar e rematam ao fim no pecado da carne, e porque roubam o amor, e por conseguinte o coração a Deus, à mulher e ao marido, a quem êle pertencia; loucas, porque não têm nem fundamento nem razão; vãs, porque não dão proveito algum, nem honra, nem contentamento. Pelo contrário, fazem perder tempo, lesam a honra sem dar nenhum prazer, afora o de uma ansiedade de pretender e esperar, sem saber o que se quer nem o que se pretende, porque sempre se lhes afigura, a estes espíritos fracos e miseráveis, que têm não sei o quê de apetecível as provas que lhes dão de amor recíproco, e que não são capazes de explicar: donde resulta que o seu desejo não pode terminar, mas vai sempre apoquentando o seu coração com perpétuas desconfianças, ciúmes e inquietações.

Gregório Nanzianzeno, escrevendo contra as mulheres vãs, diz maravilhas a êste respeito; aqui tens um pequeno trecho que ele na realidade dirige às mulheres, mas é bom também para os homens:

A tua natural formosura basta para teu marido; porque se é para muitos homens, como uma rede estendida para um bando de pássaros, que irá daí suceder? Há de agradar-te aquele a quem tua formosura agradar; pagarás um relance de olhos com outro relance, olhares com olhares; virão logo a seguir os sorrisos, e pequenas palavras de amor, deixando-as como que cair com dissimulação, no princípio; mas bem depressa se lhes tomará gosto, e se passará aos desbragamentos manifestos. Ó minha língua palradeira, foge a todo o transe de dizer o que sucederá depois; eu contudo direi esta verdade: nada de tudo o que os moços e as mulheres dizem ou fazem juntos nestas loucas conversas é isento de grandes estímulos e perigos. Todas as patranhas de namorados se prendem umas com as outras e se seguem todas umas às outras, nem mais nem menos do que um ferro atraído pelo imã atrai consecutivamente muitos outros.

Oh! como diz bem este grande Bispo: que pensas tu fazer? Queres amar? não queres? Mas olha que ninguém dá voluntariamente, que não receba forçosamente; neste jogo, quem apanha é apanhado. A erva aproxis acende-se, apenas vê o fogo; os nossos corações são na mesma: apenas vêem uma alma abrasada em amor por eles, ficam sem demora abrasados de amor por ela. Eu bem quisera enamorar-me, me dirá alguém, mas não com muito empenho. Ai! como te enganas! Este fogo do amor é mais ativo e penetrante do que te parece: julgas que só recebes uma centelha dele e ficarás assombrada ao ver que num momento se terá apossado de todo o teu coração, e terá reduzido a cinzas todas as tuas resoluções, e a fumo a tua reputação. O sábio exclama: Quem terá compaixão de um encantador mordido da serpente? E eu exclamo na sua esteira: ó loucos e insensatos, cuidais que enfeitiçais o amor para o manejar e usar como vos aprouver? Quereis brincar com ele, e ele vos picará ou morderá perigosamente, e sabeis o que se dirá? Todos mofarão de vós, e se rirão por terdes querido enfeitiçar e prender o amor e, com uma falsa segurança, terdes metido no vosso seio uma perigosa víbora, que vos corrompeu e perdeu a alma e a honra. Ó Deus, que cegueira esta, a de jogar assim a crédito sobre penhores tão frívolos a principal jóia da nossa alma? Sim, Fiotéia! porque Deus não quer o homem senão pela alma, nem a alma senão pela vontade, nem a vontade senão pelo amor. Ai! nós não temos todo aquele amor de que precisamos. Quero eu dizer, só sendo o amor infinito, teríamos o bastante para amar a Deus: e contudo, como se nos sobejasse malbaratamo-lo e empregamo-lo em coisas loucas, vãs e frívolas. Ah! este grande Deus, que para si reserva apenas o amor das nossas almas, em paga e reconhecimento da sua criação, conservação e Redenção, exigirá uma conta muito apertada e rigorosa dêstes loucos devaneios a que nos damos. E se há de fazer-se um exame tão exato das palavras ociosas, como será o que há de fazer-se das amizades ociosas, impertinentes, loucas e prejudiciais?

A nogueira prejudica imenso as vinhas e os campos, onde está plantada, porque, sendo tamanha, chama a si toda a seiva da terra, que depois não tem forca para sustentar o resto das plantas; as suas folhas são tão densas que produzem uma sombra grande e cerrada, e por último atrai os viandantes, que para deitar abaixo o seu fruto estragam e calcam tudo em volta dela. Já estes namoros causam os mesmos estragos na alma, porque a ocupam de tal modo, e empucham tão poderosamente os seus movimentos, que ela fica inepta e inábil para qualquer obra boa: as folhas, isto é, as conversas, divertimentos e galanteios são tão frequentes, que fazem perder todo o tempo. E finalmente atraem tantas tentações, distrações, suspeitas e outras conseqüências, que o coração fica todo pisado e corrompido. Numa palavra, estes namoros não só desterram o amor celestial, mas também o temor de Deus, enervam o espírito, fazem desvanecer a reputação: e, por dizer tudo de uma só vez, são o entretimento e a diversão das cortes, mas a peste dos corações.

AS VERDADEIRAS AMIZADES

Ó Filotéia, ama a todos os homens com um grande amor de caridade cristã, mas não traves amizade senão com aquelas pessoas cujo convívio te pode ser proveitoso; e quanto mais perfeitas forem estas relações, tanto mais perfeita será a tu a amizade.

Se a relação é de ciências, a amizade será honesta e louvável e o será muito mais ainda se a relação for de virtudes morais, como prudência, justiça, fortaleza; mas se for a religião, a devoção e o amor de Deus e o desejo da perfeição o objeto duma comunicação mútua e doce entre ti e as pessoas que amas, ah! então tua amizade é preciosíssima. É excelente, porque vem de Deus; excelente, porque Deus é o laço que a une, excelente, enfim, porque durará eternamente em Deus.

Ah! quanto é bom amar já na terra o que se amará no céu e aprender a amar aqui estas coisas como as amaremos eternamente· na vida futura. Não falo, pois, aqui simplesmente do amor cristão que devemos a nosso próximo, todo e qualquer que seja, mas aludo à amizade espiritual, pela qual duas, três ou mais pessoas se comunicam mutuamente as suas devoções, bons desejos e resoluções por amor ele Deus, tornando-se um só coração e uma só alma.

Com toda a razão podem cantar então as palavras de David : Oh! quão bom e agradável é habitarem juntamente os irmãos! Sim, Filotéia, porque o bálsamo precioso da devoção está sempre passando dum coração ao outro por uma continua e mútua participação; tanto assim que se pode dizer que Deus lançou sobre esta amizade a sua bênção por todos os séculos dos séculos.

Todas as outras amizades são como as sombras desta e os seus laços são frágeis como o vidro, ao passo que estes corações ditosos, unidos em espírito de devoção, estão presos por uma corrente toda de ouro. Filotéia, todas as tuas amizades sejam desta natureza, isto é, todas aquelas que dependem de tua livre escolha, porque não deves romper nem negligenciar as que a natureza e outros deveres te obrigam a manter, como em relação a teus pais, parentes, benfeitores e vizinhos.

Hás de ouvir talvez que não se deve consagrar afeto particular ou amizade a ninguém, porque isto ocupa por demais o coração, distrai o espírito e causa ciúmes; mas é um mau conselho, porque, se muitos autores sábios e santos ensinam que as amizades particulares são muito nocivas aos religiosos, não podemos, no entanto, aplicar o mesmo princípio a pessoas que vivem no século – e há aqui uma grande diferença.

Num mosteiro onde há fervor, todos visam o mesmo fim, que é a perfeição do seu estado, e por isso a manutenção das amizades particulares não pode ser tolerada aí, para precaver que, procurando alguns em particular o que é comum a todos, passem das particularidades aos partidos.

Mas no mundo é necessário que aqueles que se entregam à prática da virtude se unam por uma santa amizade, para mutuamente se animarem e conservarem nesses santos exercícios. Na religião os caminhos de Deus são fáceis e planos e os que aí vivem se assemelham a viajantes que caminham numa bela plankie, sem necessitar de pedir a mão em auxílio. Mas os que vivem no século, onde há tantas dificuldades a vencer para ir a Deus, se parecem com os viajantes que andam por caminhos difíceis, escabrosos e escorregadiços, precisando sustentar-se uns nos outros para caminhar com mais segurança.

Não, no mundo nem todos têm o mesmo fim e o mesmo espírito e daí vem a necessidade desses laços particulares que o Espírito Santo forma e conserva nos corações que lhe querem ser fiéis. Concedo que esta particularidade forme um partido, mas é um partido santo, que somente separa o bem do mal: as ovelhas das cabras, as abelhas dos zangões, separação esta que é absolutamente necessária.

Em verdade não se pode negar que Nosso Senhor amava com um amor mais terno e especial a S. João, a Marta, a Madalena e a Lázaro, seu irmão, pois que o Evangelho o dá a entender claramente. Sabe-se que S. Pedro amava ternamente a S. Marcos e a Santa Petronila, como S. Paulo ao seu querido Timóteo e a Santa Tecla.

Gregório Nazianzeno, amigo de São Basílio, fala com muito prazer e ufania de sua íntima amizade, descrevendo-a do modo seguinte: parecia que em nós havia uma só alma, para animar os nossos corpos, e que não se devia mais crer nos que dizem que uma coisa é em si mesma tudo quanto é e não numa outra; estávamos, pois, ambos em um de nós e um no outro. Uma única e a mesma vontade nos unia em nossos propósitos de cultivar a virtude, de conformar tôda a nossa vida com a esperança do céu, trabalhando ambos unidos como uma só pessoa, para sair, já antes de morrer, desta terra perecedora.

Santo Agostinho testemunha que Santo Ambrósio amava a Santa Mônica unicamente devido às raras virtudes que via nela e que ela mesma estimava este santo prelado como um anjo de Deus.

Mas para que deter-te tanto tempo numa coisa tão clara? S. Jerônimo, Santo Agostinho, S. Gregório, S. Bernardo e todos os grandes servos de Deus tiveram amizades particulares, sem dano algum para a sua santidade.

Paulo, repreendendo os pagãos pela corrupção de suas vidas, acusa-os de gente sem a feto, isto é, sem amizade de qualidade alguma. Santo Tomás reconhecia, com todos os bons filósofos, que a amizade é uma virtude e entende a amizade particular, porque diz expressamente que a verdadeira amizade não pode se estender a muitas pessoas.

A perfeição, portanto, não consiste em não ter nenhuma amizade, mas em não ter nenhuma que não seja boa e santa.

DIFERENÇA DAS AMIZADES VÃS E VERDADEIRAS

Vou te dar agora, Filotéia, um aviso importantíssimo e uma regra geral. O mel de Heracléia, de que já falei, e que é um veneno muito destrutivo, assemelha-se muito ao mel ordinário, que é tão saudável, e há grande perigo de tomar um pelo outro ou de tomar uma mistura de ambos, porque a utilidade de um não impede a malignidade do outro. Também quanto às amizades é preciso muito cuidado, para não nos enganarmos, principalmente tratando-se duma pessoa de sexo diverso, por melhores que sejam os princípios que nos unam a ela; pois o demônio tapa os olhos aos que se amam. Começa- se por um amor virtuoso; mas, se não se tomarem precauções prudentes, o amor frívolo se vai misturando e depois vem o amor sensual e por fim o amor carnal. Sim, mesmo no amor espiritual não se está livre de perigo, se não se sabe premunir-se de desconfiança e vigilância, conquanto o engano aqui não seja tão fácil, porque a inocência perfeita do coração descobre imediatamente tudo o que se pode ajuntar aí de impuro, assim como as manchas aparecem muito mais sobre o branco. Eis aí a razão por que, quando o demônio quer corromper um amor todo espiritual, o faz com mais astúcia, tentando ver se pode sugerir primeiro algumas disposições menos favoráveis à pureza.

Para discernires bem entre a amizade santa e a amizade mundana, grava na memória as regras seguintes:

O mel de Heracléia é mais doce à língua que o mel vulgar, porque as abelhas o vão colher no acônito, que lhe dá esta doçura extraordinária, e a amizade mundana traz uma a fluência de palavras doces, languorosas, apaixonadas e cheias de adulação pela beleza, graças e vãs qualidades físicas. Mas a amizade santa tem uma linguagem simples, singela e sincera e só louva as virtudes e dons de Deus, único fundamento em que se apóia.

Quem comeu do mel maligno sente umas tonteiras de cabeça e muitas vertigens e a amizade falsa causa um desvio e desvairamento de espírito que faz titubear a pessoas na castidade e na devoção, levando-a a olhares afetados, lânguidos e imoderados, a carícias sensuais, a suspiros desordenados, a pequenas queixas ele não ser correspondida a certas meiguices levianas, afetadas e repetidas , a galantarias e beijos e a outras particularidades e fervores inconvenientes, presságios certos e infalíveis de iminente ruína da honestidade. Mas a amizade santa só tem olhos para o pudor, demonstrações para a pureza e sinceridade, suspiros para o céu, liberdade para o espiritual e queixas pelos interesses de Deus, que não é amado: sinais infalíveis duma honestidade perfeita.

O mel de Heracléia ofusca a vista e a amizade vã ofusca o juízo tão fortemente, que já não se pode distinguir entre o bem e o mal, aceitam-se como verdadeiras razões os pretextos menos fundamentados, teme-se a luz e amam-se as trevas. Mas a amizade santa tem olhos clarividentes, não se esconde e gosta mesmo de mostrar-se às pessoas de bem.

Por último, o mel envenenado deixa um grande amargor na boca. Da mesma sorte. as falsas amizades convertem-se e rematam em palavras e pedidos carnais e torpes; ou no caso de negativa, em injúrias, calúnias, imposturas, tristezas, confusões e ciúmes, que bem depressa vão parar em brutalidades e desvarios. Mas uma amizade casta é sempre igualmente honesta, cortês e amigável. Nunca se converte senão numa união de espíritos mais perfeita e mais pura, imagem viva da amizade bem-aventurada que se pratica no céu.

Gregório Nanzianzeno diz que o pavão, gritando quando faz sua roda, excita sobremaneira as fêmeas que o escutam. Quando vemos um homem pavonear-se, enfeitar-se, e vir assim dizer chocarrices, chistes e palavras doces aos ouvidos duma mulher ou duma moça sem intenção de justo matrimônio, ah! sem dúvida que não é senão para a arrastar a alguma desonestidade. A mulher séria e honrada tapará os ouvidos para não ouvir os grilos desse pavão e a voz do encantador, que a quer enfeitiçar e prender com finezas. E se ela der ouvidos, ó meu Deus, que mau prenúncio da futura perda de sua alma! Os jovens que faz em gestos, carícias e dizem palavras em que não gostariam de ser surpreendidas por seus pais, mães, maridos, esposas ou confessores, mostram com isso que tratam de coisa alheia à honra e à consciência. Nossa Senhora perturbou-se vendo um anjo em forma humana, porque estava só e ele lhe tecia elogios sublimados, embora celestiais. Ó Salvador do mundo, a pureza teme a um anjo em forma humana, e porque não há de a impureza temer um homem, ainda que lhe apareça em figura de anjo quando a louva com louvores sensuais e humanos?

E se já estás presa nas redes destes amores loucos, oh! Deus, como te será difícil soltares-te! Põe-te diante da sua divina Majestade, reconhece na sa presença a enormidade da tua miséria, a tua fraqueza e vaidade; depois, com o maior esforço de coração que te for possível, detesta estes amores começados, abjura a vã profissão que deles fizeste, renuncia a todas as promessas recebidas e, com grande e mui decidida vontade, põe prazo ao teu coração, e resolve nunca mais entrar neste jogos e diversões de amor.

Se te podes afastar do objeto deles, sem restrições o aprovo; porque, como os que foram mordidos pelas serpentes não podem facilmente sarar na presença dos que noutra ocasião foram feridos pela mesma mordedura: assim também a pessoa que está picada do amor dificilmente sarará desta paixão enquanto estiver perto da outra que tiver sido atingida pela mesma picadura. A mudança de lugar serve sobremaneira para abrandar os ardores e inquietações, quer da dor, quer do amor. O mancebo de quem fala Santo Ambrósio no segundo livro da Penitência, tendo feito uma longa viagem, tornou-se em absoluto liberto dos loucos amores a que se entregara, e ficou de tal sorte mudado, que a louca namorada, encontrando-o, e dizendo-lhe: não me conheces? eu sou a mesma, – ele respondeu: sim, mas eu não sou o mesmo. A ausência tinha operado nele esta feliz mudança. E Santo Agostinho testifica que, para mitigar a dor que teve com a morte do seu amigo, se retirou de Tagaste, onde ele morrera, e foi para Cartago.

Mas quem não pode afastar-se, que deve fazer? É preciso a todo o custo cortar por toda a conversa particular, por todo o entretimento secreto, por toda a meiguice e requebro no olhar, por todos os sorrisos, e em geral por toda a espécie de comunicações incentivos, que podem alimentar este fogo que tão mau cheiro exala e tanto fumaça despende. Quando muito, se é forçoso falar ao cúmplice, que e seja apenas para declarar, por uma audaciosa, curta e severa protestação, o eterno divórcio que se jurou. Eu grito bem alto a todos os que caíram nestes laços dos namoros: cortai, despedaçai, quebrai; é preciso não perder tempo a descoser estas amizades loucas, é preciso rasgá-las e despedaçá-las; não se hão de desatar os nós, é preciso parti-los ou cortá-los, pois afinal de contas esses cordões e ligaduras para nada servem. Não há razão para fazer caso de um amor que é tão contrário ao amor de Deus.

– Mas depois de eu ter assim quebrado os grilhões desta infame escravidão, ainda me ficará dela algum sentimento e saudade, e as marcas e os sinais dos ferros ainda ficarão gravados em meus pés, isto é, nas minhas afeições. – Não o farão, Filotéia, se conceberes tamanho ódio e aversão pelo mal, como ele merece: porque, se isto for assim, nunca mais serás agitada por nenhum movimento, afora o de um extremo horror por este amor infame e por tudo o que dele depende; e ficarás livre de toda a afeição pelo objeto abandonado, e só com uma caridade puríssima para com Deus; mas, se pela imperfeição do teu arrependimento te ficam ainda algumas inclinações más, procura para a tua alma uma solidão mental, conforme mais acima te indiquei, e acolhe-te a ela o mais que possas, e por meio de repetidas aspirações renuncia a todas as tuas inclinações: detesta-as com todas as tuas forcas; lê, com mais freqüência do que costumas, livros de devoção; confessa-te mais amiúde do que é teu costume, e comunga; trata humilde e francamente de todas as sugestões e tentações, que neste ponto te saltearem, com o teu Diretor, ou senão, ao menos com alguma alma fiel e prudente, e não duvides de que Deus te livrará de todas as paixões, contanto que perseveres fielmente nestes exercícios.

Ah! me dirás tu, mas não será ingratidão romper tão desapiedadamente com uma amizade? Oh! que ditosa é a ingratidão que nos torna agradáveis a Deus! Não, podes crer-me, Filotéia, não será Ingratidão, será até um grande benefício que farás ao amante: porque, quebrando as tuas cadeias, quebrarás as suas, pois vos eram comuns e, embora ele por enquanto não fique ciente e inteirado da sua felicidade, há de reconhece-la sem muita tardança e convosco cantará em ação de graças: Ó Senhor! vós quebraste as minhas cadeias, eu vos sacrificarei a hóstia de louvor, e invocarei o vosso santo nome.

AVISOS E REMÉDIOS CONTRA AS MÁS AMIZADES         

Desde a primeira tentação que teu coração sentir, por mais leve que seja, vira-o imediata e completamente para o outro lado e com uma detestação oculta, mas firme, destas vaidades sensuais, eleva-te em espírito à cruz do divino Salvador e toma a sua coroa de espinhos, para fazer uma cerca, como diz a Escritura, em redor do teu coração, a fim de que, como ela mesma acrescenta, as pequenas raposas não se aproximem.

Guarda-te cuidadosamente de entrar em alguma combinação com o inimigo; nem digas: eu o escutarei, mas não farei nada do que me disser; dar-lhe-ei atenção, mas recusarei tudo de coração.

Ó Filotéia, arma-te nessas ocasiões com a firmeza mais sólida. Muito estreitamente ligados estão o coração e os ouvidos para se crer que aquele não seja influído pelo que estes recebem; e, como é impossível deter uma torrente que se lança pelo declive de uma montanha, também não se pode impedir que aquilo que o amor fez chegar aos ouvidos não caia no coração.

Uma pessoa de honra nunca dará atenção à voz do encantador. Se acaso o escuta – ó Deus! – que funestos augúrios de perversão completa do coração! A SS. Virgem perturbou-se à vista do anjo, porque estava só e muito grandes eram os louvores que lhe trazia, embora viesse do céu. Ó Salvador do mundo! Aquela que é a mesma pureza teme um anjo em forma humana; e nós, que somos tão impuros, não deveríamos temer um homem, embora pareça um anjo, se nos dá louvores cheios de adulações vãs e sensuais?

Semelhantes complacências jamais serão permitidas nem justificadas por razão alguma de boa educação ou respeito; nem mesmo se, procedendo de outra forma, te mostrares descortês e incivilizada.

Lembra-te sempre que, tendo a Deus consagrado o coração e imolado o teu amor, seria uma espécie de sacrilégio tirar daí a mínima parte que fosse; renova no momento da tentação o teu sacrifício, por toda sorte de boas resoluções e protestos, e, conservando o coração fechado, como o veado no seu esconderijo, suplica a assistência de Deus; e Deus virá em teu auxílio e o seu amor tomará o teu sob a sua proteção a fim de que permaneça intacto para ele.

OUTROS AVISOS SOBRE AS AMIZADES

Sem uma íntima e grande cordialidade não se pode contrair nem manter uma amizade; e, como esta cordialidade é continua, bem depressa se começam a confiar os segredos do coração. Todas as inclinações naturais passam invisivelmente de um para o outro, pelas mútuas impressões que um faz no outro e por uma troca recíproca de sentimentos e afetos.

É o que acontece principalmente quando a amizade se funda numa grande estima, porque a amizade abre o coração e a estima dá entrada a tudo o que se apresenta, seja bom ou mau. As abelhas vão colher o seu mel nas flores e, se estas são venenosas, chupam-lhe também o veneno: imagem perfeita da amizade que, sem o notar, vai recebendo tanto o mal como o bem.

Põe, pois, cuidadosamente em prática, Filotéia, estas palavras que, segundo a tradição, o Filho de Deus sempre repetia: Sede bons cambiadores e bons conhecedores de moedas. isto é, não recebais a moeda falsa com a verdadeira, nem o ouro aquilatado com o falso; separai o que é precioso do que é vil e desprezível. Com efeito, ninguém existe que não tenha certas imperfeições e por que razão havemos de participar, na amizade, dos defeitos do amigo? Devemos amá-lo, embora imperfeito; mas não devemos apropriarmos de suas imperfeições nem amá-las, porque, sendo a amizade uma associação do bem e não do mal, devemos distinguir as boas das más qualidades do amigo, como os trabalhadores do Tejo separam o ouro da areia.

Gregório Nazianzeno conta que diversos amigos de S. Basílio tanto o estimavam e veneravam que até chegaram a imitar seus defeitos naturais e exteriores, como, por exemplo, seu modo vagaroso de falar, seu modo de andar, seu ar severo e pensativo e até o aspecto da barba, e nós vemos na realidade os maridos, as mulheres, os amigos tomarem insensivelmente as imperfeições uns dos outros e os filhos dos pais, por uma certa imitação inconsciente a que a estima ou veneração os induz e conduz.

Mas cada um já tem vícios de sobra e não precisa os dos outros; e a amizade não só não exige nada disso, mas até quer que nos auxiliemos mutuamente a corrigir os nossos defeitos. Há de suportar-se com brandura as imperfeições do amigo, sem o reforçar ainda mais nelas, pelas adulações, e sem permitir que nossa alma fique contagiada por complacência.

Estou falando somente das imperfeições, porque, quanto aos pecados, nem mesmo aturá-los devemos no amigo; é uma amizade muito fraca ou má ver o amigo perecer e não o socorrer ou não ousar admoestá-lo um pouco sensivelmente, para o salvar.

A verdadeira amizade não se pode conciliar com o pecado, porque este a arruína inteiramente, como a salamandra, que se diz que extingue o fogo; se é um pecado passageiro, a amizade o expele imediatamente por um bom conselho; mas, se se trata dum pecado habitual, ele destrói toda a amizade, que só pode existir com a verdadeira virtude. Muito menos, portanto, se há de pecar por causa do amigo, o qual se tornaria nosso inimigo, se nos quisesse levar ao pecado, e bem mereceriam perder a nossa amizade, se tivesse em mira perder a nossa alma.

Ainda mais, um sinal certo duma amizade falsa é o apego a uma pessoa viciosa; e, seja qual for o vício, nossa amizade é sempre viciosa; pois, não sendo fundada na virtude sólida, outro fundamento não pode ter senão o prazer sensual ou algumas daquelas imperfeições vãs e frívolas de que já tenho falado.

As sociedades e companhias de negociantes só têm a aparência de amizade que se firma, não no amor das pessoas, mas no amor ganho. Enfim, eis aqui duas máximas divinas, que chamo as duas colunas da vida cristã. Uma é do sábio: Quem tiver temor de Deus terá também uma amizade honesta. A outra é de Santiago: A amizade deste mundo é inimiga de Deus.

Fonte: São Francisco de Sales. Filotéia. Parte III: Avisos necessários para as práticas da virtude, Capítulo 17 ao 22. (Os grifos são nossos)

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Santo Atanasio

Instituto Santo Atanásio (Curitiba - PR). Associação de leigos católicos que tem por objetivo promover a Fé e a Cultura Católica na sociedade.
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