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[Filotéia] Castidade – São Francisco de Sales

São Francisco de Sales e religiosas

Necessidade da castidade

A castidade é o lírio entre as virtudes e já nesta vida nos torna semelhantes aos anjos. Nada há de mais belo que a pureza e a pureza dos homens é a castidade. Chama-se a esta virtude honestidade; e à sua prática, honra.

Denomina-se também integridade; e o vício contrário, corrupção. Numa palavra, entre as virtudes tem esta a glória de ser o ornamento da alma e do corpo ao mesmo tempo.

ISA CURSO: A Educação Cristã

Nunca é lícito usar dos sentidos para um prazer impuro, de qualquer maneira que seja, a não ser num legítimo matrimônio, cuja santidade possa por uma justa compensação reparar o desastre que a deleitação importa. E no próprio casamento ainda se há de guardar a honestidade da intenção, para que, se houver alguma imperfeição no prazer, não haja senão honestidade na vontade que o realiza. O coração puro é como a madrepérola, que não recebe uma gota de água que não venha do céu, pois ele não consente em nenhum prazer afora o do matrimônio que é ordenado pelo Céu. Salvo isso, nem sequer nele pensa voluptuosa, voluntária e demoradamente.

Quanto ao primeiro grau desta virtude, Filotéia, não admitas a menor coisa de tudo aquilo que é proibido como desonesto, isto é, geralmente falando, todas as coisas semelhantes que se fazem fora do estado matrimonial ou no matrimônio contra as regras deste estado.

Quanto ao segundo grau, restringe, quanto possível for, as deleitações supérfluas e inúteis, posto que honestas e permitidas.

Quanto ao terceiro grau, não te afeiçoes aos deleites necessários e de preceito; pois, embora seja necessário conformar-se aos que o são segundo a instituição e fim do matrimônio, não se deve apegar a eles o espírito e o coração.

Demais, esta virtude é sumamente necessária a todos os estados. No da viuvez a castidade deve ser de uma generosidade extrema, para precaver-se dos prazeres sensuais, não só quanto ao presente e ao futuro, mas também quanto ao passado; lembrando prazeres já havidos, a imaginação excita más impressões. É por isso que Santo Agostinho tanto se admirava da pureza de seu amado Alípio, que já não conservava nem o sentimento nem a lembrança de sua vida desregrada anterior. E, com efeito, é sabido que os frutos ainda inteiros se conservam facilmente por muito tempo; mas, se foram cortados ou machucados, o único meio de conservá-los é pô-los em conserva com açúcar ou mel. Do mesmo modo eu digo que, enquanto a castidade estiver intacta, se têm muitos meios de conservá-la; mas, uma vez perdida, só pode ser conservada pela devoção que, pelas suas doçuras, muitas vezes tenho comparado ao mel.

ISA CURSO: A Educação Cristã

No estado virginal a castidade exige uma muito grande simplicidade de alma e uma consciência muito delicada, para afastar toda sorte de pensamentos curiosos e elevar-se acima de todos os prazeres sensuais, por um desprezo absoluto e completo de tudo o que o homem tem de comum com os animais e que mais convém aos brutos que a eles. Nem por pensamento duvidem essas almas que a castidade é muito superior a tudo o que é incompatível com a sua perfeição; pois o demônio, como diz S. Jerônimo, não podendo suportar esta salutar ignorância do prazer sensual, procura excitar nestas almas ao menos o desejo de conhecê-los e sugere-lhes ideias tão atraentes, embora inteiramente falsas, que muito as perturbam, levando-as, como acrescenta este santo padre, a dar imprudentemente grande estima ao que não conhecem. É assim que muitos jovens, seduzidos pela ilusória e tola estima dos prazeres voluptuosos e por uma curiosidade sensual e inquieta, se entregam a uma vida desregrada com perda completa dos seus interesses temporais e eternos; assemelham-se a borboletas que, pensando que o fogo é tão doce quão belo, se atiram a ele e se queimam nas chamas.

“Quanto aos casados, é certo que a castidade lhes é necessária, muito mais do que se pensa, pois a castidade deles não é uma abstenção absoluta dos prazeres carnais, mas refrear-se neles. Ora, como aquele preceito – “Irai-vos e não pequeis” é no meu entender mais difícil que o outro – “Não vos ireis nunca” – por ser bem mais fácil evitar a raiva do que regrá-la, assim também é mais fácil a abstenção total dos prazeres carnais do que a moderação neles. É certo que a santa licença que o matrimônio confere tem uma força e virtude particular para apagar a concupiscência, mas a fraqueza dos que usam dela passa facilmente da permissão à dissolução, do uso ao abuso. E como vemos muitos ricos roubarem, não por indigência, mas por avareza, também se vêm muitos casados excederem-se por intemperança e luxúria; porque a sua concupiscência é como um fogo cheio de veleidades, ardendo aqui e ali, sem se fixar em parte alguma. É sempre perigoso tomar remédios violentos. Tomando-se demais, ou se não forem bem dosados, prejudicam imensamente. O matrimônio, entre outros fins, existe para remédio da concupiscência e sem dúvida é ótimo remédio, mas violento e por isso perigoso, se não for usado com discrição.

Noto ainda que, além das longas doenças, os vários negócios separam muita vez os maridos de suas mulheres. E é por isso que os casados precisam de duas espécies de castidade: uma para a continência absoluta, naqueles casos de separação forçada, a outra, para a moderação quando estão juntos, na vida normal. Viu Santa Catarina de Sena muitos condenados no inferno sofrendo atrozmente pelas faltas contra a santidade matrimonial. E isso, dizia ela, não tanto pela enormidade do pecado, porque assassinos e blasfêmias são pecados muito maiores, mas porque os que caem naqueles não têm escrúpulos e continuam assim a cometê-los por muito tempo. Já vês pois que a castidade é necessária para todos os estados.

Segui a paz com todos – diz o apóstolo- e a santidade sem a qual ninguém verá a Deus. Ora, é de notar que por santidade ele entende aqui a castidade, como observam S. Jerônimo e S. Crisóstomo. Não, Filotéia, ninguém verá a Deus sem a castidade; em seus santos tabernáculos não habitará ninguém que não tenha o coração puro e , como diz Nosso Senhor mesmo, os cães e os desonestos serão desterrados daí; e: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”

Conselhos para conservar a castidade

Estejas sempre de sobreaviso para afastar logo de ti tudo o que te possa inclinar à sensualidade; pois este mal se vai alastrando insensivelmente e de pequenos princípios faz rápidos progressos. Numa palavra, é mais fácil fugir-lhe que curá-lo.

Parecem-se os corpos humanos com os vidros, que não se pode levar juntos, tocando-se, sem correr perigo de se quebrarem, e com as frutas, que, embora inteiras e bem maduras, recebem manchas, chocando umas com as outras. A água mais fresca que se quer conservar num vaso perde logo a sua frescura mal um animal a toca.

Nunca permitas, Filotéia, nem a outros nem a ti mesma, todo esse tocar exterior das mãos igual mente contra a modéstia cristã e contra o respeito que se deve à qualidade e à virtude duma pessoa; pois, ainda que não seja de todo impossível conservar o coração puro entre essas ações mais levianas que maliciosas, todavia sempre se recebe daí algum dano; nem falo aqui desses tatos desonestos que arruínam por completo a castidade.

A castidade depende do coração, quanto à sua origem, mas sua prática exterior consiste em moderar e purificar os sentidos; por isso podemos perdê-la tanto pelos sentidos exteriores como por pensamentos e desejos do coração. É impudicícia olhar, ouvir, falar, cheirar, palpar coisas desonestas, quando nisso o coração se demora e toma gosto. S. Paulo chega a dizer: Meus irmãos, a fornicação nem se nomeie entre vós.

As abelhas não só não pousam num cadáver corrompido, mas até fogem do mau cheiro que exala.

Observa o que a Sagrada Escritura nos diz da Esposa dos Cantares: tudo aí é místico: suas mãos destilam mirra e este liquido, como sabes, preserva da corrupção; seus lábios são fitas de rubi vermelho, o que nos indica o seu pudor até à palavra menos desonesta; seus olhos são comparados aos olhos da pomba, por causa da sua inocência; suas orelhas têm brincos de ouro, desse metal precioso que significa a pureza; seu nariz é comparado ao cedro do Líbano, cujo odor é suavíssimo e que tem uma madeira incorruptível. Que quer dizer tudo isso? A alma devota deve ser casta, inocente, pura e honesta em todos os sentidos exteriores.

Nunca trates com pessoa de indubitáveis costumes corrompidos, sobretudo se forem também imprudentes, como quase sempre o são.

Diz-se que os cabritos, tocando com a língua nas amendoeiras doces, tornam os seus frutos amargos; e essas almas brutais e infectas, falando a pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente, causam grande dano ao pudor, assemelhando-se também aos basiliscos, que têm o veneno nos lábios e no hálito.

Ao contrário, procura a companhia de pessoas castas e virtuosas; ocupa-te muitas vezes com a leitura da Sagrada Escritura; porque a palavra de Deus é casta e torna castos os que a amam. Daí vem que David a compara a esta pedra preciosa que se chama topázio e que tem a propriedade especial de mitigar o ardor da concupiscência.

Conserva-te ao lado de Jesus Cristo crucificado, quer espiritualmente – pela meditação, quer real e corporalmente – na santa comunhão. Sabes de certo que os que se deitam sobre aquela erva agnus castus vão tomando insensivelmente disposições favoráveis à castidade; estejas certa que, se teu coração descansar em Nosso Senhor, que é realmente o Cordeiro imaculado, bem depressa purificarás tua alma, teu coração e teus sentidos, inteiramente, de todos os prazeres sensuais.

Avisos para os casados

O casamento é um grande sacramento, eu digo em Jesus Cristo e na sua Igreja é honroso para todos, em todos, e em tudo, isto é, em todas as suas partes. Para todos: porque as próprias virgens o devem honrar com humildade. Em todos: porque é tão santo entre os pobres como entre os ricos. Em tudo: porque a sua origem, o seu fim, as suas vantagens, a sua forma e matéria são santas. É o viveiro do Cristianismo, que enche a terra de fiéis, para tornar completo no céu o número dos eleitos: de sorte que a conservação do bem do casamento é sobremaneira útil para a república; porque é a raiz e o manancial de todos os seus arroios. Prouvera a Deus que o seu Filho muito amado fosse chamado para todas as bodas como o foi para as de Caná; nunca faltaria lá o vinho das consolações e das bênçãos: porque se não as há senão um pouco ao princípio, é porque, em vez de Nosso Senhor, se fez vir a elas Adônis e, em lugar de Nossa Senhora, se faz vir a Vênus. Quem quer ter cordeirinhos bonitos e malhados, como Jacob, precisa como ele de apresentar às ovelhas quando se juntam para conceber umas lindas varinhas de diversas cores; e quem quer ser bem-sucedido no casamento deveria em suas bodas representar a si mesmo a santidade e dignidade deste Sacramento; mas em lugar disso dão-se aí mil abusos e excessos em passatempos, festins e palavras. Não é pois de admirar que os efeitos sejam desordenados.

Exorto sobretudo os casados ao amor recíproco que o Espírito Santo tanto lhes recomenda na Sagrada Escritura: ó casados, não se deve dizer: amai-vos um ao outro com o amor natural, porque os casais de rolas fazem isto muito bem; nem se deve dizer: amai-vos com amor humano, porque também os pagãos praticaram esse amor; mas digo-vos, encostado ao grande Apóstolo: Maridos, amai as vossas mulheres, como Jesus Cristo ama a sua Igreja; ó mulheres, amai os vossos maridos, como a Igreja ama o seu Salvador. Foi Deus quem levou Eva a nosso primeiro pai Adão, e lha deu por mulher; foi também Deus, meus amigos, que com a sua mão invisível fez o nó do sagrado laço do vosso matrimônio, e que vos deu uns aos outros: por que não haveis então de amar-vos com amor todo santo, todo sagrado, todo divino?

O primeiro efeito deste amor é a união indissolúvel dos vossos corações. Se se grudam duas peças de pinho, uma vez que a cola seja fina, a união fica tão forte, que será mais fácil quebrar as peças noutros sítios do que no sítio da junção; mas Deus junta o marido e a mulher em seu próprio sangue: e por isso é que esta união é tão forte que antes se deve separar a alma do corpo de um e de outro do que separar-se o marido da mulher. Ora esta união não se entende principalmente do corpo, mas sim do coração, do afeto e do amor.

O segundo efeito deste amor deve ser a fidelidade inviolável ele um ao outro: antigamente gravavam-se os selos nos anéis que se traziam nos dedos, como a própria santa Escritura testifica. Aqui está o segredo da cerimônia que se faz nas bodas: a Igreja pela mão do sacerdote benze um anel, e dando-o primeiramente ao homem, dá a entender que sela e cerra o seu coração por este Sacramento, para que nunca mais nem o nome, nem o amor de qualquer outra mulher possa nesse coração entrar, enquanto viver aquela que lhe foi dada: depois o esposo mete o anel na mão da própria esposa, para que ela reciprocamente saiba que nunca o seu coração deve conceber afeto por qualquer outro homem, enquanto viver sobre a terra aquele, que Nosso Senhor acaba de lhe dar.

O terceiro fruto do casamento é a geração e a legítima criação e educação dos filhos. Grande honra é esta para vós, ó casados, que Deus, querendo multiplicar as almas que possam bendizê-Lo e louvá-Lo por toda a eternidade, vos torna cooperadores de obra tão digna, por meio da produção dos corpos, em que Ele reparte, como gotas celestes, as almas, criando-as e infundindo-as nos corpos.

Conservai pois, ó maridos, um terno, constante e cordial amor a vossas mulheres: por isto foi a mulher tirada do lado mais chegado ao coração do primeiro homem, para que fosse amada por ele cordial e ternamente. As fraquezas e enfermidades de vossas mulheres, quer do corpo, quer do espírito, não devem provocar-vos a nenhuma espécie de desdém, mas antes a uma doce e amorosa compaixão, pois Deus criou-as assim para que, dependendo de vós, vos honrem e vos respeitem mais, e de tal modo as tenhais por companheiras que contudo sejais os chefes e superiores. E vós, ó mulheres, amai ternamente, cordialmente, mas com um amor respeitoso e cheio de reverência, os maridos que Deus vos deu: porque realmente por isso os criou Deus de um sexo mais vigoroso e predominante, e quis que a mulher fosse uma dependência do homem, e osso dos seus ossos, e carne da sua carne, e que ela fosse produzida por uma costela deste, tirada debaixo dos seus braços, para mostrar que ela deve estar debaixo da mão e governo do marido; e toda a Escritura Santa vos recomenda severamente esta sujeição, que aliás a mesma Escritura vos faz doce e suave, não somente querendo que vos acomodeis a ela com amor, mas ordenando a vossos maridos que a exerçam com grande afeto, ternura e suavidade. Maridos, diz São Pedro, portai-vos discretamente com vossas mulheres, como com um vaso mais frágil, honrando-as. Mas assim como vos exorto a afervorar cada vez mais este recíproco amor que vos deveis, estai alerta para que não se converta em nenhuma espécie de ciúme: porque acontece muitas vezes que, como o verme se cria na maçã mais delicada e madura, também o ciúme nasce no amor mais ardente e afetuoso dos casados, cuja substância aliás estraga e corrompe; porque pouco a pouco acarreta os desgostos, desavenças e divórcios. Por certo que o ciúme nunca chega aonde a amizade está de parte a parte fundada na verdadeira virtude: e eis a razão por que ela é um sinal indubitável de um amor sensual, grosseiro, e que se dirigiu a objeto em que encontrou uma virtude defeituosa, inconstante e exposta a desconfianças. É pois uma pretensão tola querer dar a entender com os zelos a grandeza da amizade: porque o ciúme na verdade é um sinal da magnitude e corpolência da amizade, mas não da sua bondade, pureza e perfeição; pois que a perfeição da amizade pressupõe a firmeza da virtude da coisa que se ama, e o ciúme pressupõe a incerteza.

Se quereis, maridos, que as vossas mulheres vos sejam fiéis, ensinai-lhes a lição com o vosso exemplo: Com que cara, diz S. Gregó rio Nazianzeno, quereis exigir honestidade de vossas mulheres, se vós próprios viveis na desonestidade? Como lhes pedis o que não lhes dais? Quereis que elas sejam castas? Vivei castamente com elas, e como diz São P aulo, saiba cada um possuir o seu vaso em santificação. Mas, se pelo contrário vós mesmos lhes ensinais as dissoluções, não é de admirar que sofrais a desonra da sua perda.

Mas vós, ó mulheres, cuja honra está inseparavelmente aliada com a pureza e honestidade, conservai zelosamente a vossa glória, e não permitais que nenhuma espécie de dissolução empane a brancura da vossa reputação. Temei toda a sorte de ataques, por pequenos que sejam: nunca permitais que andem em volta de vós os galanteios. Todo aquele que vem elogiar a vossa formosura e a vossa graça deve ser-vos suspeito. Porque quem gaba uma mercadoria que não pode comprar, ordinariamente é muito tentado a roubá-la. Mas se ao vosso encômio alguém adicionar o desprezo de vosso marido, ofende-vos sobremaneira, porque a coisa é clara, que não somente quer perder-vos, mas já vos tem na conta de meio perdida, pois que metade do contrato é feito com o segundo comprador, quando se está desgostoso do primeiro. As senhoras, tanto antigas como modernas, acostumaram-se a levar pendentes das orelhas muitas pérolas, pelo prazer, diz Plínio, que têm em as ouvir tilintar e chocalhar, tocando umas nas outras. Mas quanto a mim, que sei que o grande amigo de Deus, lsaac, enviou à casta Rebeca pendentes de orelhas como os primeiros penhores do seu amor: eu creio que este ornamento místico significa que a primeira coisa que um marido deve ter de uma mulher, e que a mulher lhe deve fielmente guardar, é a orelha, para que nenhuma linguagem ou ruído possa aí entrar, senão o doce e amigável gorjeio das palavras castas e pudicas, que são as pérolas orientais do Evangelho. Porque é preciso lembrar-se sempre de que as almas se envenenam pelo ouvido, como o corpo pela boca.

O amor e a fidelidade juntas trazem sempre consigo a familiaridade e confiança: é por isso que os Santos e as Santas usaram de muitas carícias recíprocas em seu matrimônio, carícias verdadeiramente amorosas, mas castas; ternas, mas sinceras. Assim Isaac e Rebeca, o casal mais casto dos casados do tempo antigo, foram vistos à janela a acariciar-se de tal sorte que, embora nada nisso houvesse de desonesto, Abimelec conheceu bem que eles não podiam ser senão marido e mulher. O grande São Luís tão rigoroso com a sua carne, como terno no amor a sua mulher, foi quase censurado de ser pródigo em tais carícias: embora na verdade antes merecesse encômio por saber despojar-se do seu espírito marcial e corajoso para praticar estas ligeiras obrigações necessárias para a conservação do amor conjugal; porque ainda que estas pequenas mortificações de pura e franca amizade não prendam os corações, contudo aproximam-nos, e servem de agradável isca para a mútua conversação.

Santa Mônica, estando pejada do grande Santo Agostinho, consagrou-o com repetidos oferecimentos à Religião cristã, e ao serviço da glória de Deus, como ele próprio testifica, dizendo: que já no ventre de sua mãe tinha provado o sal de Deus. É um grande ensinamento para as mulheres cristãs oferecer à divina Majestade o fruto de seus ventres, mesmo antes que deles tenham saído; porque Deus, que aceita as oblações de um coração humilde e bem formado, ordinariamente favorece os bons desejos das mães nessa circunstância: sejam disso testemunhas Samuel, S. Tomás de Aquino, S. André de Fiesole, e muitos outros. A mãe de S. Bernardo, digna mãe dum tal filho, tomando seus filhos e filhas nos braços apenas nasciam, oferecia-os a Jesus Cristo; e desde logo os amava com respeito como coisa sagrada, e que Deus lhe tinha confiado: o que lhe deu tão feliz resultado, que todos os seus sete filhos foram muito santos.

Mas uma vez vindos os filhos ao mundo, e começando a ter uso da razão, devem os pais e mães ter um grande cuidado de lhes imprimir o temor de Deus no coração. A boa rainha Branca desempenhou fervorosamente este encargo com o rei S. Luís, seu filho, porque lhe dizia a cada passo: Antes quero, meu caro filho, ver-te cair morto na minha presença do que ver-te cometer um só pecado mortal. O que ficou de tal modo gravado na alma deste santo filho, que, como ele próprio contava, não houve dia da sua vida em que disso se não lembrasse, esforçando-se quanto lhe era possível por observar à risca esta santa doutrina. Na nossa linguagem chamamos casas às linhagens e gerações; e os próprios hebreus chamam à geração dos filhos edificação de casa. Porque foi neste sentido que se disse que Deus edificou casas para as parteiras do Egito. Ora é para mostrar que não é fazer uma boa casa: provê-la de muitos bens mundanos: mas educar bem os filhos no temor de Deus e na virtude. Nisto não devemos esquivar-nos a penas nem trabalhos, pois os filhos são a coroa do pai e da mãe. Assim, Santa Mônica combateu com tanto fervor e constância as más inclinações de S. Agostinho que, tendo-o seguido por mar e por terra, o tornou mais felizmente filho de suas lágrimas, pela conversão da sua alma do que o tinha sido do sangue pela geração de seu corpo.

S. Paulo deixa como incumbência às mulheres o governo da casa; e por isso muitos seguem esta verdadeira opinião que a sua devoção é mais frutuosa para a família que a dos maridos, que, não tendo uma residência tão continuada entre os domésticos, não podem por conseguinte encaminhá-los tão facilmente para a virtude. Segundo esta consideração Salomão nos seus Provérbios faz depender a felicidade de toda a sua casa do cuidado e esmero da mulher forte que descreve.

Diz-se no Gênesis que lsaac, vendo a esterilidade de sua esposa Rebeca, rogou ao Senhor por ela: ou segundo o texto hebraico, rogou ao Senhor em frente dela, porque um orava de um lado do oratório e outro do outro lado; e a oração do marido feita deste modo foi ouvida. A maior e mais frutuosa união do marido e da mulher é a que se faz na devoção, à qual se devem excitar à porfia um ao outro. Frutos há, como o marmelo, que pela aspereza do seu suco, não são agradáveis senão postos de conserva. Há outros que, pela sua brandura e delicadeza, não se podem conservar senão também postos em doce, como as cerejas e os damascos: assim as mulheres hão de desejar que os seus maridos estejam de conserva no açúcar da devoção. Porque o homem sem devoção é um animal severo, áspero e duro; e os maridos devem desejar que as suas mulheres sejam devotas; porque sem a devoção, a mulher é em extremo frágil e sujeita a cair ou embaciar a sua virtude. S. Paulo disse que o homem infiel é santificado pela mulher fiel, e a mulher infiel pelo homem fiel, porque nesta estreita aliança do casamento um pode facilmente puxar o outro à virtude. Mas que grande bênção há quando o homem e a mulher fiéis se santificam um ao outro num verdadeiro temor de Deus! Além disso, hão de ter tanta condescendência um com o outro, que nunca se aborreçam e irritem ambos ao mesmo tempo e de repente, para que entre eles não se note dissensão nem disputa. As abelhas não podem estar em lugar onde se ouvem ecos e estrondos, e onde soa a voz repetida: nem o Espírito Santo pode demorar numa casáa onde há disputas, réplicas e repetição de vozes e altercações.

S. Gregório Nazianzeno diz que no seu tempo os casados faziam festa no aniversário dos seus casamentos. E eu por certo aprovaria que se introduzisse este costume, contanto que não fosse com aparatos de diversões mundanas e sensuais, mas que os maridos e mulheres, tendo-se confessado e comungado nesse dia, recomendassem a Deus, mais fervorosamente que de costume, o progresso do seu matrimônio, renovando os bons propósitos ele o santificar cada vez mais por uma recíproca amizade e fidelidade, e cobrando alento em Nosso Senhor, para arcar com os encargos da sua vocação.

Da honestidade do leito conjugal

O leito conjugal deve ser imaculado, como o chama o Apóstolo, isto é, isento de desonestidades e outras torpezas profanas. Porque o santo matrimônio foi primariamente instituído no Paraíso terreal, onde até então nunca tinha havido nenhum desconcerto da concupiscência, nem coisa desonesta.

Há alguma semelhança entre os deleites vergonhosos e os do comer: porque ambos dizem respeito à carne, embora os primeiros, em razão da sua veemência brutal, se chamem simplesmente carnais. Explicarei, pois, o que não posso dizer de uns pelo que direi dos outros.

1. O comer é destinado a conservar as pessoas. Ora como o comer simplesmente, para alimentar e conservar a pessoa, é uma coisa boa, santa e prescrita: assim o que se requer no matrimônio para a geração dos filhos, e multiplicação das pessoas, é uma coisa boa e muito santa, porque é o fim principal do casamento.

2. Comer, não para conservar a vida, mas para conservar a recíproca conversação e condescendência que devemos uns aos outros, é coisa sobremaneira justa e honesta: e da mesma sorte a recíproca e legitima satisfação dos cônjuges no santo matrimônio é chamada por S. Paulo dívida; mas dívida tão grande que ele não quer que uma das partes se possa dela isentar sem o livre e voluntário consentimento da outra; e isso nem mesmo para as práticas da devoção, que é o que me levou a dizer as palavras que a este respeito deixei no capítulo da Santa Comunhão: quanto menos pois se poderão eximir por caprichosas afetações de virtude, ou pelas rixas e arrufos.

3. Como os que comem pela obrigação do mútuo trato devem comer livremente, e não como por força, e ademais hão de procurar mostrar ter bom apetite; assim também o débito conjugal deve ser satisfeito fielmente, francamente, exatamente como se fosse com esperança de sucessão, ainda que por alguma circunstância não haja semelhante esperança.

4. Comer não pelas duas primeiras razões, mas simplesmente para contentar o apetite, é coisa tolerável, mas não louvável. Porque o simples prazer do apetite sensual não pode ser causa suficiente para tornar uma ação louvável. Basta porém para que seja tolerável.

5. Comer, não por simples apetite, mas por excesso e desordem, é coisa mais ou menos censurável, conforme o grande ou pequeno excesso.

6. Ora o excesso no comer não consiste somente na grandíssima quantidade, mas também no modo e maneira como se come. É caso para notar, cara Filotéia, que o mel, tão próprio e salutar para as abelhas, lhes pode contudo ser tão nocivo que às vezes as põe doentes, como quando comem em demasia na primavera: porque isto traz-lhe fluxo do ventre, e algumas vezes fá-las morrer inevitavelmente, como quando estão cobertas de mel no focinho e nas asas.

Na realidade o comércio conjugal, que é tão santo, tão justo, tão recomendável, tão útil à república, é contudo em certos casos perigosos para os que o praticam: porque às vezes faz adoecer as suas almas gravemente com o pecado venial, como sucede com os simples excessos, e algumas vezes dá-lhes a morte pelo pecado mortal, como sucede quando a ordem estabelecida para a geração dos filhos é violada e pervertida; nesse caso, consoante o desvio dessa ordem é maior ou menor, os pecados são mais ou menos abomináveis, mas sempre mortais. Porque, como a geração dos filhos é o primeiro e principal fim do matrimônio, nunca se pode licitamente aberrar da ordem que ela requer: embora por qualquer acidente, não possa por então levar-se a efeito; como sucede, quando a esterilidade, ou a gravidez atual estorvam a produção e a geração; porque nestes casos o comércio corporal não deixa de ser justo e santo, contanto que se observem as regras de geração: não podendo jamais qualquer acidente prejudicar a lei que o fim principal do matrimônio impôs. Na verdade, a infame e execrável ação que Onan fazia no seu matrimônio era detestável aos olhos de Deus, como diz o sagrado Texto no citado capítulo trigésimo oitavo do Gênesis; e embora alguns heréticos do nosso tempo, mil vezes mais censuráveis que os cínicos (de que fala S. Jerônimo sobre a Epístola aos Efésios) tenham querido dizer que era a perversa intenção deste malvado que desagradava a Deus, todavia a Escritura fala de outro modo, e assegura em particular que a mesma coisa que ele fazia era detestável e abominável aos olhos de Deus.

7. É uma verdadeira prova dum espírito truanesco, vil, abjeto, e infame, pensar nas iguarias e nos manjares antes do tempo da refeição, e ainda mais, quando depois dela se saboreia o prazer que se teve, comendo, tomando-o por assunto de conversas e pensamentos, e refocilando o espírito na lembrança do prazer que se sentiu ao tragar os bocados, como fazem aqueles que antes do jantar estão com o espírito preocupado no assador, e depois de jantar nos pratos: pessoas dignas de serem moços de cozinha, que fazem, como diz S. Paulo, do seu ventre um Deus; as pessoas honradas e dignas não pensam na mesa senão quando se sentam a ela, e depois da refeição lavam as mãos e a boca para não ficar com o gosto, nem com o cheiro do que comeram. O elefante não passa de um grande animal, mas é o mais digno que vive sobre a terra, e que tem mais instinto; eu quero dizer-te aqui um rasgo da sua honestidade: nunca muda de fêmea e ama ternamente a que escolheu, com a qual não tem coito senão de três em três anos, e isto apenas por cinco dias, e tão secretamente, que nunca é visto neste ato; é porém bem visto ao sexto dia, no qual, antes de tudo, vai direito a algum rio, onde lava todo o corpo, sem querer de modo algum voltar ao rebanho antes de se ter purificado. Não são belas e honestas as qualidades deste animal pelas quais convida os casados a não ficarem presos de afeição às sensualidades e prazeres, que segundo o seu estado tiveram; mas, passadas estas, a lavar delas o coração e o afeto, e a purificar-se o mais cedo possível, para poder depois praticar com toda a liberdade de espírito as outras ações mais puras e elevadas?

Neste aviso consiste a perfeita prática da excelente doutrina que S. Paulo ensina aos Coríntios: O tempo é breve, lhes diz, o que resta é que os que têm mulheres sejam mais como se não as tivessem. Porque, segundo S. Gregório, tem uma mulher como se não a tivesse aquele que toma as consolações corporais com ela de tal maneira que por isso não é desviado das solicitudes espirituais. Ora, o que se disse do marido entende-se reciprocamente da mulher. Os que usam deste mundo, diz o mesmo Apóstolo, hão de ser como se não usassem; que todos pois usem do mundo, cada um conforme o seu estado: mas de tal sorte que, não lhe ganhando afeição, se fique livre e pronto para servir a Deus, como se dele não usasse. É o grande mal do homem, diz S. Agostinho, querer gozar das coisas de que só deve usar, e querer usar daquelas de que só deve gozar: devemos gozar das coisas espirituais, e das corporais somente usar; e quando o uso destas se converte em gozo, a nossa alma racional converte-se outrossim em alma brutal e bestial.

Creio ter dito tudo o que queria dizer, e dado a entender, sem o dizer, o que não queria dizer.

Avisos para as viúvas

São Paulo instrui a todos os Prelados na pessoa do seu Timóteo, dizendo: Honra as viúvas que são deveras viúvas. Ora, para ser verdadeiramente viúva requerem-se estas coisas:

1. Que não somente a viúva seja viúva de corpo, mas também de coração, isto é, que seja decidida, com inviolável resolução, a conservar-se no estado duma casta viuvez. Porque as viúvas, que não o são senão enquanto esperam a ocasião de se tornar a casar, não estão separadas dos homens senão segundo o deleite do corpo, mas já estão juntas com eles segundo a vontade do coração. E se a verdadeira viúva, para se confirmar no estado de viuvez, quer oferecer a Deus em voto o seu corpo e a sua castidade, acrescentará um grande ornamento e atavio à sua viuvez, e porá em grande segurança a sua resolução: porque, vendo que depois do voto já não está na sua mão o poder deixar a sua castidade, sem deixar o Paraíso, será tão zelosa e desvelada pelo seu intento, que não consentirá item por um só instante em seu coração os mais simples pensamentos de casamento: de sorte que este sagrado voto porá uma forte barreira entre a sua alma e toda a sorte de projetos contrários à sua resolução.

S. Agostinho aconselha encarecidamente este voto à viúva cristã: e o antigo e douto Origines passa muito mais adiante, porque aconselha às mulheres casadas a que façam voto e se consagrem à castidade na viuvez, no caso em que os seus maridos venham a falecer antes delas, para que contra os prazeres sensuais, que poderão ter no casamento, possam contudo gozar do mérito de uma casta viuvez por meio desta promessa antecipada. O voto torna as obras feitas em seguida a ele mais agradáveis a Deus, corrobora a coragem para as fazer, e não dá somente a Deus as obras, que são como que os frutos da nossa boa vontade, mas dedica-lhe até a própria vontade, que é como que a árvore das nossas ações: pela simples castidade nós entregamos o nosso corpo a Deus, reservando contudo a liberdade de o submeter de novo aos prazeres sensuais, mas pelo voto de castidade fazemos-lhe dele absoluta e irrevogável doação, sem reservarmos nenhum poder de nos desdizermos, tornando-os assim felizmente escravos d’ Aquele, cujo serviço é melhor que toda a realeza. Ora como eu aprovo sem restrições os pareceres destes dois grandes homens: também quisera que as almas, que forem tão ditosas e que deseje m executá-los, o façam prudentemente, santamente, e com solidez, depois de examinar bem as suas forças, de invocar a inspiração celeste, e de tomar o conselho de algum sábio e devoto diretor, porque assim tudo se fará com mais fruto.

2. Além disso é preciso que esta renúncia a segundas núpcias se faça pura e simplesmente, para com maior pureza voltar para Deus todos seus afetos, e em tudo unir o seu coração com o da sua divina Majestade; porque, se o desejo de deixar os filhos ricos, ou qualquer outra espécie de pretensão mundana conserva a viúva na viuvez, ela talvez disso receba louvor, mas não por certo aos olhos de Deus, pois que diante de Deus não pode merecer verdadeiro louvor senão o que é feito por amor de Deus.

3. Ademais, é preciso que a viúva, para ser verdadeiramente viúva, esteja separada e voluntariamente desprendida dos deleites profanos. A viúva que vive em delícias, diz S. Paulo, está morta em vida. Querer ser viúva e sem embargo gostar de ser festejada, acariciada, galanteada, querer achar-se nos bailes, danças e festins; querer andar perfumada, enfeitada e galante, é ser uma viúva quanto ao corpo; mas quanto à alma. Que importa, peço-te que me digas, que a tabuleta da pousada de Adônis e do amor profano seja feita de plumagens brancas colocadas à laia de penachos, ou de um véu negro estendido à maneira de rede sobre o rosto; e até muitas vezes o preto costuma por vaidade ?ser preferido ao branco, para mais realce à cor; a viúva, sabendo por experiência de que modo as mulheres podem agradar aos homens, lança em seus espíritos incentivos e iscas mais perigosas. Por isso a viúva, que vive nestas loucas delicias, está morta em vida, e a bendizer não é senão um ídolo e aparência de viuvez.

Chegou o tempo da poda, a voz da rola já foi ouvida na nossa terra, diz o Cântico dos Cânticos: a poda das superfluidades mundanas é necessária, para quem quer que deseje viver piedosamente; mas é sobretudo necessária para a verdadeira viúva, que, como casta rola, acaba recentemente de chorar, gemer e lamentar-se da perda do seu marido. Quando Noemi voltou de Moab para Belém, as mulheres da cidade, que a tinham conhecido no princípio do seu casamento, perguntavam umas às outras: Não é esta Noemi? Mas ela respondeu Não me chames, peço-vo-lo, Noemi, porque Noemi quer dizer graciosa e bela, chamai-me antes Marei, pois o Senhor encheu a minha alma de amargura. O que dizia, porque o seu marido lhe tinha morrido. Assim a viúva devota nunca deve querer ser chamada nem tida como bela, nem como graciosa, contentando-se com ser o que Deus quer que ela seja, isto é, humilde e abjeta a seus olhos.

As lâmpadas, cujo azeite é aromático, quando apagam suas chamas, deitam um cheiro mais suave; assim as viúvas cujo amor foi puro em seu matrimônio, derramam um maior perfume de virtude de castidade, quando a sua luz, isto é, o seu marido, é apagada pela morte: amar o marido, enquanto ele vive, é coisa bastante comum entre as mulheres: mas amá-lo tanto, que depois da morte dele não se queira outro, é um grau de amor, que não pertence senão à verdadeira viúva. Esperar em Deus, enquanto o marido serve de arrimo, não é coisa muito rara: mas esperar em Deus quando se fica privada deste apoio é coisa digna de grande louvor. É por isso que se conhece mais facilmente na viuvez a perfeição das virtudes que se praticaram no matrimônio.

A viúva que tem filhos, que precisam da sua direção e governo, principalmente no que toca à sua alma e à ordenação da sua vida, não pode, nem deve de maneira alguma abandoná-los: porque o Apóstolo S. Paulo diz claramente que elas são obrigadas a esse cuidado para pagar o que por elas fizeram seus pais e mães; e muito mais ainda, porque, se alguém não olha pelos seus, e principalmente pelos da sua família, é pior que um infiel: mas se os filhos estão em condições de não precisar de ser governados, a viúva então deve empregar todos os seus afetos e pensamentos para os aplicar mais puramente no seu aproveitamento e progresso no amor de Deus.

Se alguma violenta força não obriga a consciência da verdadeira viúva aos desaires e contratempos de fora, como são os processos e demandas: aconselho-lhe que se abstenha de tudo; e que siga o método de orientar os seus negócios, que para ela seja mais suave e tranquilo, embora se lhe afigure que não é o mais prático e frutuoso. Porque é preciso que os frutos de tais desarmonias sejam deveras grandes, para se poderem pôr em confronto com o bem de uma santa tranquilidade, sem deitar conta a que o processo e subsequentes desavenças dissipam o coração, e muitas vezes abrem as portas aos inimigos da castidade, visto que por comprazer com aqueles, de cujo favor e proteção se carece, se chegam a adotar atitudes indevotas e desagradáveis a Deus.

Seja a oração o contínuo exercício da viúva: porque, não devendo já ter amor senão por Deus, nunca mais deve falar senão com Deus; e como o ferro, que sendo impedido de seguir a atração do ímã por causa da presença do diamante, se arremessa para o mesmo ímã, apenas o diamante é levado para longe: assim o coração da viúva, que não podia com facilidade abismar-se inteiramente em Deus, nem seguir os atrativos do seu divino amor, durante a vida do seu marido, deve logo depois do falecimento deste ir ardentemente à cata dos perfumes celestiais, dizendo à imitação da Esposa sagrada: ó Senhor, agora que sou toda minha, recebei-me como toda vossa, levai-me atrás de Vós, nós corremos ao odor dos vossos perfumes.

A prática das virtudes próprias da viúva santa são a perfeita modéstia, a renúncia às honras, às reuniões, às assembleias, aos títulos, e todas as classes de vaidades semelhantes; a assistência dos pobres e dos doentes, a consolação dos tristes e aflitos, a iniciação das donzelas na vida devota, e o empenho em se tornar perfeito modelo de todas as virtudes para as mulheres novas; a limpeza e a simplicidade são os dois enfeites e guarnições dos seus vestidos; a humildade e a caridade, os dois enfeites e ornamentos das suas ações; a honestidade e a mansidão, os dois asseios da sua linguagem; a modéstia e o pudor, as duas luzes de seus olhos; e Jesus crucificado, o único amor de seu coração.

Para abreviar, a verdadeira viúva é na Igreja uma pequena violeta de março, que derrama uma suavidade sem par, pelo odor de sua devoção, e se conserva quase sempre escondida sob as largas folhas da sua humildade, e pela sua cor menos deslumbrante dá provas da sua mortificação; ela nasce nos lugares frescos e não cultivados, não querendo ser apoquentada pelo comércio dos mundanos, para melhor conservar a frescura de seu coração contra todos os calores que o desejo dos bens, das honras ou até dos amores lhe poderia trazer. Ela será bem-aventurada, diz o Santo Apóstolo, se perseverar desta maneira.

Teria muitas outras coisas a dizer sobre este assunto, mas teria dito tudo quanto dissesse que a viúva, zelosa da honra da sua condição, lesse atentamente as belas epístolas que o grande S. Jerônimo escreveu a Fúria e a Sálvia, e a todas as outras matronas que tiveram a singular ventura de ser filhas espirituais de tão grande Pai; porque nada se pode acrescentar ao que ele lhes disse, senão esta advertência: que a verdadeira viúva nunca deve criticar, nem censurar aquelas que passam a segundas, ou até a terceiras e quartas núpcias; porque, em certos casos, Deus assim o dispõe para a sua maior glória. E é preciso ter sempre presente a doutrina dos antigos, que nem viuvez, nem a virgindade têm no Céu outro lugar que não seja o que lhes é marcado pela humildade.

Uma palavra sobre a virgindade

Ó virgens, se pretendeis casar-vos, conservai então cuidadosamente o vosso primeiro amor para a pessoa que o céu vos destinar. É uma fraude apresentar-lhe um coração que já foi possuído, usado e gasto pelo amor, em vez de um coração inteiro e sincero. Mas se, por vossa felicidade, vos sentir chamadas para as núpcias castas e virginais do Cordeiro imaculado, ah! Então conservai com toda a delicadeza de consciência todo o vosso amor para este divino Esposo, que, sendo a própria pureza, nada ama mais do que a pureza e a quem são devidas todas as primícias, máxime as do amor.

As cartas de S. Jerônimo contêm todos os outros conselhos que vos são necessários; e, como o vosso estado vos obriga à obediência, escolhei um confessor sob cuja direção vos podeis consagrar à divindade mais santamente e com maior segurança.

Fonte: São Francisco de Sales. Filotéia. Parte III: Avisos necessários para as práticas da virtude, Capítulo 8, 9, 38, 39, 40 e 41.

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