A chefia do site jornalístico Parágrafo 2, o jornalista José Pires, escreveu um artigo de opinião para rebater o meu artigo anterior “A Mentalidade Abortista no Brasil”.
Seu artigo, “Para Instituto religioso de Curitiba direito ao aborto não é questão de saúde, mas de promiscuidade” carrega vários impropérios, os quais vale a pena, ainda que brevemente comentar. Focarei, inicialmente, no problema central.
Pires entendeu a tese do meu artigo: a defesa do aborto é uma inversão moral (colocado por ele indevidamente com aspas) que a revolução sexual, a defesa do sexo livre, alimentou. Não entendeu, porém, o espírito do artigo. Meu artigo é antes lógico do que circunstancial; antes filosófico e psicológico do que meramente sociológico, conquanto haja aspecto de sociologia envolvido.
O que eu fiz foi apontar que, se considerarmos que no sexo o mais importante é o prazer, então é possível compreender por que, mesmos em cristãos e conservadores, é possível ver a defesa do aborto, algo oposto ao que ensina a doutrina católica. Em outras palavras, tais conservadores já estão relativizando os valores cristãos em nome do sexo livre, ainda que não se dêem conta disso.
O jornalista sintetiza minha idéia dizendo, como se fosse absurdo: “Ou seja, na visão do autor o aborto é defendido porque o sexo que gerou o bebê simplesmente não deu prazer para a mulher”. O que poderia ser reescrito como: “Ou seja, na visão do autor, o aborto é defendido por causa da lógica do sexo livre”. Sim! No fundo, veja bem, no fundo, de fato é isso. Trata-se da lógica que está na base – tenha-se consciência disso ou não – do ideal abortista. Monsenhor Álvaro Negromonte via isso e condenava essa lógica, a influente feminista Shulamith Firestone também via essa lógica, mas a defendia em nome do sexo livre (direitos reprodutivos, no jargão eufemístico atual). Hebert Marcuse (para usar outro nome à esquerda, e mais conhecido que a feminista), não apenas via esta lógica, mas inclusive a promoveu como método para superar a razão humana, onde supostamente, a partir disso, emergiria uma sociedade superior! Eu não trouxe, portanto, uma questão nova, mas um velho debate doutrinal, cujo núcleo está na defesa ou condenação do sexo livre, onde o aborto em caso de estupro é um mero desmembramento da lógica hedonista, isto é, da lógica sexo livre, em que o prazer é considerado o mais importante. Em termos filosóficos, a forma (a idéia) é hedonista, a matéria é a defesa do aborto, sendo o aborto por razão de estupro uma das diferentes categorias da questão.
A intenção do meu artigo foi ir ao âmago da questão e não nas adjacências, por isso empreguei o termo “mentalidade abortista” já no título, ou seja, qual seria a lógica de fundo (não de superfície) da questão. A partir de que ótica as opiniões sociais poderiam ser compreendidas de modo coerente.
Digo que Pires não entendeu o espírito do artigo, pois supôs que eu fiz uma redução do debate. Isso fica nítido quando ele – alegando suposta ignorância de minha parte – diz:
Augusto ignora todos os traumas psicológicos que acompanham as vítimas de estupro pelo restante de suas vidas. Ele também não fala que no Brasil, a cada 60 minutos, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Para ele, o estrago já foi feito, a vítima agora que seja penalizada gerando, parindo e criando um filho, mesmo que seja de um pai que lhe cause asco e mesmo que a maternidade interrompa sua infância e modifique decisivamente sua vida.
Não percebe Pires que esta sua argumentação a favor do aborto em nome de uma suposta “saúde pública e mental” são frutos de uma racionalização oriunda da defesa do sexo livre. Ao contrário de mim, ignora as premissas de fundo do debate e, por conta disso, ignora os nexos de causalidade envolvidos na questão, tomando assim minha argumentação como absurda. Ademais, não ignoro que o cenário relacionado ao estupro é traumático, mas em reposta afirmo que o aborto não é a solução. Primeiro, porque o trauma do estupro não é menor que o do aborto; segundo, o aborto é uma prática má, representa um crime contra uma vida inocente, e não é o transformando em um suposto direito que magicamente se tornaria algo bom.
Em relação às estatísticas, é uma expertise da horda progressista apresentar cenários que são de fato maus, até mesmo inegáveis, mas errar tanto na leitura do que ocasiona o problema quanto, por consequência, na solução.
Para ilustrar essa realidade, podemos comparar a profecia do Papa Paulo VI com a de Marcuse. Este foi o mentor da revolução sexual que explodiu em revolta em maio de 1968. Aquele, no mesmo ano, escreveu uma Encíclica contra um dos desdobramentos do sexo livre.
Marcuse tinha uma crítica pertinente à sociedade capitalista e tecnocrática: o homem unidimensional é isolado, sem força, que, iludido pelo conforto burguês, aceita uma escravidão política de modo voluntário. Cenário trágico que não está errado, mas qual foi para ele a causa do problema? Teria sido a razão humana pautada em uma lógica grega. Diagnosticando errado o problema, qual foi a solução igualmente errada? Que o despertar dos instintos humanos iria possibilitar a ruptura da razão (psicologicamente ocorre algo parecido, não que a razão será rompida, mas obscurecida) e dela emergiria (atenção para isso!) uma sociedade mais justa, igualitária e livre (pedi atenção, porque este é o aspecto religioso escondido por trás dos progressistas. Ainda que os mesmos se considerem irreligiosos, não o são). Marcuse – como diria o Faustão – errou! A libertação dos instintos pelo sexo livre dissolveu as estruturas familiares, atomizando ainda mais os indivíduos, tornando-os ainda mais propensos a serem manipulados pela tecnologia a serviço de algum poder, seja político ou econômico. Não foi mais liberdade que trouxe, mas mais desordem. E na desordem, não está a liberdade, mas a escravidão. Tampouco conseguiu ir contra o capitalismo, só ver, por exemplo, como o marketing abusa dos instintos para, pela via irracional, obter maiores lucros. O homem dos instintos está mais vulnerável aos ataques capitalistas do que o homem da razão.
Através da revolução sexual, Marcuse prometia (há profetas na religião progressista) uma nova ordem que seria mais justa. Hoje, mais do que nunca, temos menos controle sobre as nossas próprias vidas, mais controle do estado e, sobretudo, grandes mazelas sociais oriundas da libertinagem sexual. Ou seja: prometeu justiça, entregou mais injustiças. Tal cenário poderia ter sido previsto? Sim! E de fato foi! Ao contrário de Marcuse, Paulo VI acertou de modo preciso as más consequências sociais que seriam oriundas do sexo livre. Na sua Encíclica Humanae Vitae de 1968, o Papa condenou um dos filhos do sexo livre: a contracepção artificial. Mas não se tratou de “arbitrarismo pautado em preconceitos medievalistas” (falarei desse tipo de impropério mais adiante), mas de uma argumentação pautada em reta teologia, reta filosofia e reta psicologia. Diagnosticou bem e problema e pôde de fato fazer uma profecia correta caso os ideais do sexo livre fossem praticados na sociedade.
A Humanae Vitae continua atual, pois foi de fato profética. Isso não deveria ser motivo de surpresa, mas o que ocorre é que os detratores da religião católica – e Pires é um bom exemplo desse tipo – ignoram solenemente que, na doutrina católica, fé e razão – teologia e filosofia – andam juntas e, portanto, não são opostas. Em seu depósito da fé (que confirma e não nega a razão), o catolicismo carrega tesouros sobre o que é a natureza humana e a lei natural. Ora, diante de tal conhecimento, é capaz, ao contrário dos progressistas, de contemplar bem os problemas humanos e propor soluções eficazes. Bendito seja Deus por ocultar esses tesouros de sabedoria aos sabichões progressistas e revelá-los aos pequeninos, isto é, aos católicos de boa vontade (cf. Mt 11:25). No catolicismo, ao contrário do que ocorre nas ideologias, não há espiral do delírio – típico problema psicológico de que sofre o jornalismo moderno, cujo princípio prático é que se os fatos desmentirem a ideologia, pior para os fatos -, mas reverência à ordem natural.
Poderia encerrar o artigo por aqui, mas prometi abordar brevemente alguns impropérios escritos pelo jornalista José Pires.
Vamos começar pelo título: “Para Instituto religioso de Curitiba (…)”. Pede o dever de humildade (a virtude de obedecer a verdade) por um esclarecimento. Não somos um instituto religioso, pois nenhum membro do Instituto Santo Atanásio (ISA) está obrigado a fazer os votos para maior perfeição cristã, a saber, votos de obediência, castidade e pobreza. O ISA é uma associação civil de leigos que professam a fé católica. É importante esclarecer esse detalhe, pois a precisão importa nesse tipo de discussão, se não mistura-se tudo em um liquidificador e sai uma pasta homogênea para mais fácil ser difamada.
Não por acaso, não tardou no artigo em vir a difamação:
E o que Curitiba tem com tudo isso?
Ora, por óbvio que a cidade que se orgulha do título de “conservadora” também daria ao mundo sua patrulha de fundamentalistas católicos.
Não está claro. O jornalista Pires não explica o que seria o tal fundamentalismo católico. Ou melhor, o que seria fundamentalismo, pois católico seria uma adjetivação a este conceito. Parece uma rotulação gratuita, um xingamento de desgosto quanto aos nossos valores. Seríamos fundamentalistas, porque “religiosos” (professamos a fé católica) e religiosos, portanto fundamentalistas? Voltaremos a esta questão mais adiante.
O “auge intelectual, espiritual e moral” a que o Instituto curitibano se refere provavelmente é a Idade Média. Uma visita ao site da instituição representa uma viagem ao feudalismo quando a igreja se sobrepunha aos poderes políticos e impunha sob cruz, espada e fogueiras, as suas verdades.
O auge intelectual, espiritual e moral reside na observância da doutrina católica, com graça purificando e elevando a natureza humana, não em um reacionarismo grosseiro. Esclarecido este ponto, chama a atenção dois símbolos usados por José Pires: fogueira e espada. Ele tenta ser poético, mas demonstra ignorância histórica e de espiritualidade.
A fogueira é claramente uma alusão à inquisição medieval. Quanto a isso, ele simplesmente se aproveita da hegemônica superstição moderna sobre o tema, criada através de propaganda iluminista e protestante, e lança um ataque pseudo-intelectual. À revelia da luz dos sérios estudos históricos sobre o tema, afirma-se simplesmente um preconceito, o de que a idade média foi a idade das trevas, onde o obscurantismo e a opressão religiosa imperavam. É narrativa; não história. Um simples livro como “A Inquisição: um Tribunal de Misericórdia” de Cristian Iturralde seria o suficiente para uma pessoa de boa vontade perceber que deveria rever suas idéias sobre o tema, a fim de evitar vender propaganda ideológica como erudição histórica.
Em relação à espada, vale uma máxima católica, muito útil nesses tempos irenistas: “os católicos são pacíficos, mas não pacifistas”. A espada é símbolo do combate espiritual, cuja obrigação do cristão é combater primeiro a si. É pelo combate a si, frutificando toda uma vida interior, que irá adquirir as luzes e a fortaleza para os combates exteriores. Ademais, a doutrina do emprego da violência exterior está, para o católico, fundamentada na doutrina filosófica da guerra justa.
Outro trecho curioso de Pires é o seguinte:
Entretanto, não apenas do saudosismo dogmático e supersticioso da igreja medieval vive o Instituto Santo Atanásio (…)
Mais uma afirmação gratuita de José Pires. A doutrina católica estaria errada, porque seria medieval, enquanto os seus valores progressistas estariam corretos, porque representam a modernidade? Ora, ora, ora. Com efeito, isso é um escandaloso sofisma. Desde quando a localização no tempo é critério infalível de veracidade?
Ademais, o progressismo só representa progresso se for no sentido de progredir no paganismo. Para um católico, não há nada de novo nas bandeiras da new left ou mesmo da nova direita. São idéias repaginadas de doutrinas pagãs, sejam elas de cunho religioso, filosófico ou ocultista. A roupagem é nova, mas o cheiro da fragrância é velho.
O que há de moderno na prática do aborto, a não ser técnicas médicas mais sofisticadas? A prática, com efeito, não remonta à idade média, mas à antiguidade! Sacrifique-se bebês para a deusa da colheita, faziam os pagãos, a profecia diz que teremos bonança na terra. Sacrifique-se os bebês para fins de saúde pública, racionalizam os progressistas, a ideologia diz que caminharemos para uma sociedade mais justa, igualitária e evoluída. Vão-se os pretextos, ficam as práticas, permanecendo, sobretudo, a superstição de uma recompensa social a ser adquirida.
Não poderia ser diferente, pois essas idéias ditas modernas são tão velhas quanto a antiguidade ou tão velhas quanto as heresias que a Igreja Católica já refutou. Com efeito, as ideologias modernas, em essência, são velhas heresias já refutadas pela Igreja. Novamente e com acréscimo: o progressismo só pode ser entendido como progresso se for no sentido de progresso ao paganismo, o que temos hoje são novos pagãos defendendo idéias de velhos pagãos ou de hereges.
O que o neopagão pode fazer diante desta realidade? Ele pode, por exemplo, condensar o tesouro de sabedoria da Igreja Católica como mero “saudosismo dogmático e supersticioso” e, ao fazer uma afirmação gratuita (e ignorante), achar que assim pode cantar vitória por estar mais adequado a um zeitgeist pagão.
É nessa soberba pagã que José Pires afirma então que nós, católicos, não temos o direito de impor nossos dogmas. Ele, por outro lado, pode impor suas bandeiras da antiguidade bárbara. De onde ele tira esta autoridade, eu não sei. Só sei que não sabe distinguir argumentação de imposição.
Bem observava René Girard que, ao se retirar o fundo metafísico da moralidade (o porquê e os para que das coisas), a moral que surgiria seria mais autoritária, ou seja, impositiva. O jornalista dá-nos mostra explícita disso em seu artigo. É assim, porque é uma lei e direito. O mérito se tais leis e direitos são justos e verdadeiros não pode entrar em questão. Quer posição mais obscurantista que essa? Pode haver dogmatismo obscurantista maior, em nome de velhas práticas pagãs que se disfarçam de progresso social?
Muito diferente é o espírito católico. Se ensinamos uma doutrina moral, é porque, antes de tudo, ela pode ser compreendida pela razão natural.
Por fim, o último trecho do artigo para retornamos a questão do fundamentalismo:
É bom os fundamentalistas se acostumarem com a luz…
Como vimos, é muita pose e afirmação gratuita. O que é, afinal, um fundamentalista? Responderei.
O fundamentalista é aquele que tem o hábito de interpretar as coisas apenas sobre uma clave específica. Um fundamentalista religioso, só é capaz de argumentar segundo a religião. Um fundamentalista da psicologia, tentará explicar tudo sob o ponto de vista da psicologia, e assim por diante… Além disso, o fundamentalista é refratário, não admite que seu ponto de vista unilateral é simplificador. Em suma, o fundamentalista despreza a dialética.
É verdade que a religião pode ser prato cheio para a formação de fundamentalista. Mas igualmente o é as ideologias modernas. A questão não pode ser reduzida a “se professa uma religião, então é fundamentalista”, pois tal afirmação em si já é fundamentalista.
O artigo de José Pires foi uma metralhadora de preconceitos contra a religião católica. O meu artigo, por outro lado, só tocou no aspecto teológico en passant. Sua base foi mais filosófica e psicológica do que religiosa, e, além disso, sem desprezar a observação sociológica da questão. Ou seja, utilizou diferentes recursos intelectuais para abordar uma questão de fundo mais filosófico. Ora, isso é justamente o que um fundamentalista não faz.
A mesma coisa, porém, não dá para dizer do artigo de meu contestador. É fundamentalismo anti-católico do começo ao fim, com uma leve pitada de preocupação psicológica à vítima de estupro, mas que foi menos um argumento do que munição para atacar um suposto autoritarismo indiferentista da religião católica.