Estamos no resplendor da Páscoa, por isso pensei em tratar aqui de duas figuras instrumentais da Paixão e Morte de Nosso Senhor: Judas Iscariotes e Pôncio Pilatos.
Frequentemente recebo perguntas e leio comentários sobre esses dois personagens onde se percebem erros fundamentais de doutrina moral. Hoje em dia há muitos que tentam exonerá-los do papel que desempenharam na crucificação de Jesus, ou até mesmo simpatizar com eles, citando o que trataremos abaixo como evidência escusável dos atos que cometeram.
O fato de que Deus permita o mal e que dele possa tirar o bem não significa que queira o mal ou que obrigue os outros a fazê-lo.
Um enfoque é ver Judas e Pilatos como meras marionetes em um teatro escrito por Deus: estariam fazendo somente o que tinham que fazer. Tal visão retira ambos os homens de sua dignidade como agentes morais livres e responsáveis por seus atos (que está no coração mesmo do ser humano), além de transformar Deus em uma espécie de monstro ou manipulador, que obriga as pessoas a fazer o mal, como se fosse lícito fazer o mal para dele retirar um bem. Se Deus tivesse obrigado Judas, Pilatos e outros a desempenhar um papel predestinado, então Ele seria um malfeitor, porque quis o mal para que pudesse retirar o bem.
Nada disso é aceitável, já que implica um raciocínio moral absolutamente inválido e viola a verdade teológica ao apresentar Deus como um agente do mal moral. O fato de que Deus permite o mal e que dele possa retirar o bem não significa que queira o mal ou que obrigue todos a fazê-lo. Esta é uma noção seriamente ofensiva de Deus, que é Bondade, Verdade e Amor.
Em relação à Judas, é certo que sua traição foi profetizada na Escritura:
- “Até o próprio amigo em que eu confiava, que partilhava do meu pão, levantou contra mim o calcanhar” (Sl 41, 10).
- “Eu disse-lhes: ‘Dai-me o meu salário, se o julgais bem ou, então, retende-o!’. Eles pagaram-me apenas trinta moedas de prata pelo meu salário. O Senhor disse-me: ‘Lança esse dinheiro no tesouro, esta bela soma, na qual estimaram os teus serviços’. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor”. (Zc 11, 12-13).
- “‘Irmãos, convinha que se cumprisse o que o Espírito Santo predisse na escritura pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam Jesus. Ele era um dos nossos e teve parte no nosso ministério. Esse homem adquirira um campo com o salário de seu crime. Depois, tombando para a frente, arrebentou-se pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram. (Tornou-se este fato conhecido dos habitantes de Jerusalém, de modo que aquele campo foi chamado na língua deles Hacéldama, isto é, Campo de Sangue). Pois está escrito no Livro dos Salmos: Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite; e ainda mais: Que outro receba o seu cargo'” (At 1, 16-20).
- “Ele jogou então no templo as moedas de prata, saiu e foi enforcar-se. Os príncipes dos sacerdotes tomaram o dinheiro e disseram: ‘Não é permitido lançá-lo no tesouro sagrado, porque se trata de preço de sangue’. Depois de haverem deliberado, compraram com aquela soma o campo do Oleiro, para que ali se fizesse um cemitério de estrangeiros. Essa é a razão por que aquele terreno é chamado, ainda hoje, ‘Campo de Sangue’. Assim se cumpriu a profecia do profeta Jeremias: Eles receberam trinta moedas de prata, preço daquele cujo valor foi estimado pelos filhos de Israel; e deram-no pelo campo do Oleiro, como o Senhor me havia prescrito” (Mt 27, 5-10).
Também está atestado na Escritura que Jesus sabia que Judas o trairia:
- “Pois desde o princípio Jesus sabia quais eram os que não criam e quem o havia de trair […]. Jesus acrescentou: ‘Não vos escolhi eu todos os doze? Contudo, um de vós é um demônio!…’. Ele se referia a Judas, filho de Simão Iscariotes, porque era quem o havia de entregar, não obstante ser um dos Doze” (Jo 6, 64; 70-71).
- “Dito isso, Jesus ficou perturbado em seu espírito e declarou abertamente: ‘Em verdade, em verdade vos digo: um de vós me há de trair!…’. Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saber de quem falava. Um dos discípulos, a quem Jesus amava, estava à mesa reclinado ao peito de Jesus. Simão Pedro acenou-lhe para dizer-lhe: ‘Dize-nos, de quem é que ele fala’. Reclinando-se esse mesmo discípulo sobre o peito de Jesus, interrogou-o: ‘Senhor, quem é?’. Jesus respondeu: ‘É aquele a quem eu der o pão embebido’. Em seguida, molhou o pão e deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. Logo que ele o engoliu, Satanás entrou nele. Jesus disse-lhe, então: ‘O que queres fazer, faze-o depressa’ (Jo 13, 21-27).
- “Enquanto eu estava com eles, eu os guardava em teu nome, que me incumbiste de fazer conhecido. Conservei os que me deste, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo 17,12).
Contudo, nada disso quer dizer, como muitos supõe incorretamente, que o conhecimento prévio das ações de Judas o obrigou a realizá-las. Posso observar uma pessoa e ver o que inevitavelmente está prestes a fazer, mas meu conhecimento de certo curso de ação não o está obrigando a segui-lo, nem lhe rouba sua própria liberdade.
Desde o princípio Jesus sabia quem não creriam e quem o trairiam.
Mas que alguém esteja “predestinado” a fazer algo não significa que esteja obrigado a fazê-lo. Deus, que tem ante seus olhos toda a história humana, sabia o que Judas livremente iria fazer e também dispôs em sua providência o que viria depois. O traidor, em nenhum momento, perdeu a qualidade de agente moral livre. Ele mesmo fala de sua responsabilidade no Evangelho “Pequei, entregando o sangue de um justo” (Mt 27,4).
O que dizer, então, do “arrependimento” de Judas? Deu-se conta da maldade daquilo que havia feito e devolveu o dinheiro que havia recebido. Significa que se arrependeu? Não mereceria, pois, nossa piedade?
Isso mostra outro erro comum de nosso tempo. Muitas pessoas reduzem a contrição a “sentir-se mal” por haver pecado ou feito algo. Mas a verdadeira contrição é mais do que um sentimento. Implica um firme propósito de emenda. Para Judas, a emenda significaria voltar-se ao Senhor e buscar sua misericórdia. Mas o traidor, como nos mostra a história sagrada, não retornou ao Senhor; pelo contrário, voltou-se para si mesmo e, decidindo não poder viver com esse rancor ou remorso, se suicida. Este comportamento é muito diferente do que teve Pedro, o qual se arrependeu e buscou ao Senhor, recebendo seu perdão na orla do Mar da Galileia.
Portanto, a ideia de que Judas se viu obrigado a fazer o que fez e/ou que se arrependeu devidamente de suas más ações deve ser visto como o que é: um erro. Não se baseia em um raciocínio moral sólido, nem se ajusta a noções teológica sólidas.
Ademais, a opinião relativamente ampla de que Judas poderia estar no céu deve ser considerada demasiadamente otimista. Embora a Igreja não declare que ninguém em particular tenha ido ao Inferno, é importante recordar o que disse Jesus sobre Judas: “O Filho do Homem vai, como dele está escrito. Mas ai daquele homem por quem o Filho do Homem é traído! Seria melhor para esse homem que jamais tivesse nascido!” (Mt 26,24). É difícil imaginar Jesus falando assim de uma pessoa que chegou ao Céu ao fim de sua vida.
O juízo bíblico mais provável sobre Judas é que morreu em pecado, desesperado da misericórdia de Deus. Todos são livres para especular sobre um destino diferente, mas as predições dos “otimistas” ao menos carecem de uma base sólida. Depois de tudo, nunca se ouviu ninguém contar a história do arrependimento de Judas ou de seu resgate por Jesus. Nunca houve uma igreja dedicada a “São Judas Penitente”, nem uma festa em honra a “Conversão de Judas, Apóstolo”.
Infelizmente, Judas seguiu seu próprio caminho, e fez isso livremente. Deus não o obrigou a atuar nesta direção. Sendo onisciente, simplesmente sabia o que Judas faria de antemão e, previdente como é, executou seus planos pelo livre arbítrio do traidor.
Pôncio Pilatos também é um personagem que tem recebido muita simpatia em nossos tempos atuais: “Pobre Pilatos! Realmente queria liberar Jesus, mas a multidão enraivecida obrigou o governador a crucificá-lo. E tampouco Jesus ajudou muito, permanecendo em silêncio durante seu julgamento”.
Mais raciocínios morais inválidos, visto que menosprezam o homem e ignoram que é um agente moral capaz de atuar heroicamente em obediência à verdade. Embora o medo possa limitar nossa liberdade consciente, e até certo ponto nossa culpa, não podemos esquecer a virtude da fortaleza, que nos permite fazer o correto, mesmo frente à dificuldade mais terrível.
Pilatos não era uma espécie de figura sem saída, lançada sem preparação ao cenário da história. Era um governador local com o poder do exército romano à sua disposição. Com efeito, ainda que tenha sido apresentado como um homem covarde, por tentar apaziguar a multidão e sua própria consciência ao mesmo tempo, o raciocínio moral adequado exigia que seguisse a voz, não do povo, mas da consciência.
Pilatos sabia que Jesus era inocente das acusações que lhe eram imputadas. O governo havia interrogado cuidadosamente o acusado e sabia que as acusações contra ele eram infundadas: Jesus não representava uma ameaça para o poder de Roma. A Escritura deixa muito clara a consciência de Pilatos a este respeito. Contudo, ele a violou e fez o que sabia ser incorreto e injusto. E agiu assim para proteger sua carreira. Como muitos de nós, Pilatos teve que tomar uma decisão acerca de Jesus, e falhou tomando a decisão equivocada. Em vez de tomar partido por Jesus, pela justiça e verdade, Pilatos se sentou no trono, no tribunal, e sentenciou à morte um homem inocente.
Nenhum de nós é o juiz final de Pilatos. Esse papel pertence a Nosso Senhor Jesus Cristo. Só ele sabe se o temor de Pilatos podia ser escusado e em que medida.
Embora não possamos julgar o destino final de Pilatos, no Céu ou no Inferno, tampouco podemos renunciar a importantes princípios morais que nos chamam a defender a verdade, seja qual for o preço. Ninguém deve violar sua consciência para escolher o que é mais fácil ou conveniente. Não podemos fazer o mal só porque a verdade nos pode custar algo, mas geralmente o fazemos.
No fim, cada um de nós tem uma decisão a tomar ante Jesus. Permaneceremos com Ele até o martírio ou escutaremos o que diz a “multidão”? Crucificaremos Jesus para salvar nossa pele ou O invocaremos para que nos salve segundo seus desígnios?
Sim, Pilatos e Judas ganharam muita simpatia nos últimos tempos. A simpatia desempenha um papel importante na compreensão dos assuntos humanos, mas não pode eclipsar os sólidos princípios morais em nós e nem distorcer nossa compreensão de Deus e da pessoa humana. Somos agentes morais livres, e isto ressalta nossa dignidade e nossa responsabilidade.
E quanto a nós, estaremos com Jesus Cristo até o martírio ou escutaremos o que diz a “multidão”?
Tirar do homem sua própria dignidade, idealizar princípios e distorcer a doutrina moral, convertendo Deus em um malfeitor, tudo isso mostra o lado mal de uma “simpatia” equivocada. Este é um problema que hoje vai além das noções errôneas sobre Judas e Pilatos. Substituir a simpatia pela verdade é uma tendência perniciosa de nosso tempo.