Amanhã, dia 21/01/2019, o Padre Paulo Ricardo irá iniciar um novo curso chamado “Lutero e o Mundo Moderno”. Neste curso somos informados de que vamos “conhecer o homem que, mesmo sem se dar conta, tornou-se o primeiro na história a montar uma ideologia”. Com efeito, seria Lutero o pai das ideologias modernas, de fato? Em seu “A Crise do Mundo Moderno”, padre Leonel Franca também expunha esta triste verdade filosófica.
Recomendamos o novo curso do padre Paulo Ricardo e, a seguir, transcreveremos o trecho onde o Padre Leonel Franca sintetiza a paternidade luterana nos erros da modernidade.
Padre Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno
Trecho do capítulo As Primeiras Rupturas:
Em três atos desenrola-se o drama da civilização moderna. A ruptura da unidade espiritual no Ocidente data, como é sabido, da Reforma protestante. Primeiro ato.
Lutero não é um começo absoluto. É filho de seu tempo e de sua raça. As condições sociais, políticas e religiosas do Renascimento, e particularmente da Germânia, haviam criado uma atmosfera em que seria viável um movimento de secessão de Roma. Na formação filosófica e teológica do futuro reformador fora preponderante a influência do nominalismo occamista em que degenerara a grande escolástica medieval, mal servida, em sua decadência, por inteligências de menor envergadura. Não obstante este antecedentes inegáveis, Lutero conserva a sua originalidade; é um porta-bandeira e o seu aparecimento marca uma data inicial [da modernidade].
As relações entre a natureza e a graça constituem o centro de gravidade da teologia luterana. No primeiro plano da perspectiva, uma concepção pessimista da natureza humana. As devastações do pecado foram profundas e insanáveis. Da obra prima do Criador não ficou pedra sobre pedra. A razão, cega; não só incapaz de encaminhar a alma à fé, mas fadada irremediavelmente ao erro, cúmplice desavergonhada do diabo, primeira fonte de todas as desgraças humanas, “fons fontium omnium malorum”. A Vontade, por um determinismo de ferro escravizada para sempre ao mal; inúteis, todos os esforços de reabilitação; a miséria do pecado pesa como uma fatalidade inexorável sobre toda a raça degenerado dos humanos. “O nome de livre arbítrio, foi o diabo quem introduziu na Igreja”. Sobrevive apenas a concupiscência identificada com o pecado; toda atividade humana é dominada por este impulso irresistível para o mal, por este feixe de forças invencíveis que, das profundidades corrompidas da natureza, tiranizam, anônimas, todas as manifestações do seu dinamismo. O homem, reduzido à impotência nas suas mais nobres faculdades espirituais, é entregue ao domínio irresponsável dos seus instintos indisciplinados. Freud reponta.
Sobre os fundos sombrios desta visão desesperadora da natureza humana vem projetar-se a teoria da justificação pela fé. O mal é invencível; qualquer regeneração interior, uma impossibilidade. Resta, porém, uma esperança: a da apropriação extrínseca dos merecimentos de Cristo. Um ato de fé, isto é, de confiança na sua bondade faz nossa a sua justiça. A graça não renova, pois, interiormente o homem; pecador e corrupto o encontra, corrupto e pecador o deixa; sua ação limita-se apenas a alcançar-lhe a não-imputabilidade de seus pecados. É uma ficção jurídica; não é uma renovação vital. O manto esplêndido da santidade de Cristo como que vela, aos olhos de Deus, a hediondez indestrutível de suas misérias morais. Os beneficiários desta justificação não passam de sepulcros caiados. Um sentimento vivo, um impulso d’alma, uma impressão interna de ordem afetiva, confere à alma esta justificação puramente extrínseca. A graça já não vivifica a natureza, como uma perfeição que completa e eleva um perfectível (S. Tomás). Natureza e graça, extrínseca uma à outra, coexistem, numa simples justaposição de elementos estranhos. A ordem sobrenatural cessa de ser uma renovação, para reduzir-se a uma simples imputação jurídica de merecimentos alheios.
A condenação destas doutrinas, evidentemente elaboradas sob a pressão psicológica de um caso pessoal, pôs o reformador em face do problema da Igreja e da regra de ortodoxia no cristianismo. Um erro raras vezes vem desacompanhado. Excluído da Igreja, Lutero negou a Igreja; censurado pelo seu magistério infalível recusou a infalibilidade de seu magistério. À sociedade orgânica, visível e hierárquica dos fiéis opôs, em teorias oscilantes, uma igreja invisível; contra a conservação da fé pelo órgão de um ensinamento vivo, autêntico e divinamente assistido pelo Espírito Santo, erigiu o critério individual no livre exame das Escrituras em árbitro e inapelável da doutrina e da moral.
Na economia interna do dogma cristão, as teorias luteranas introduzem um dissolvente de poder corrosivo ilimitado. Na teoria da justificação extrínseca, é toda a ordem sobrenatural, nas suas relações com a natureza, que se desfigura e periclita. O cristianismo já não é uma vida nova, uma santidade real e interior das almas. Cristo que vivificou e santificou, com a Encarnação, a sua humanidade, não conseguiu estender aos homens os benefícios de uma vida nova e realmente divina. Ele não será a vida das almas, nas quais a graça continuará a coexistir com a morte do pecado. O Corpo Místico não prolonga as maravilhas misteriosas da Encarnação; a justificação dos remidos não corresponde às generosidades do Redentor. Não podemos compreender S. João nem S. Paulo. Reduzida a este extrinsecismo frágil, toda a ordem sobrenatural cristã poderá parecer um ornamento de luxo facilmente dispensável. Está aplanado o caminho ao racionalismo.
Com a teoria do livre exame, é também o cristianismo inteiro, na solidariedade indestrutível de seus dogmas, que se expõe, de coração leve, às mil contingências da interpretação individual. Sem uma autoridade doutrinal viva, com poderes de ligar, no foro interno, em nome de uma assistência divinamente prometida, a transmissão integral da mensagem evangélica é uma quimera. Uns sobre os outros, irão caindo dogmas sob o embate dos irremediáveis antagonismos exegéticos. A mais completa pulverização doutrinária é um paradeiro fatal que só requer tempo. Na história religiosa da humanidade, achamo-nos talvez em face de uma forma inédita de religião que vê, numa experiência subjetiva, de ordem sentimental, a garantia da própria autenticidade e o critério supremo que julga toda a doutrina.
Sob estas desfigurações essenciais do cristianismo não é difícil discernir a ação latente de princípios que, ainda fora do domínio religioso, irão repercutir amplamente em toda a evolução da cultura moderna.
O individualismo, antes de tudo. Lutero rompe com a Igreja, como organização social e arvora o indivíduo em juiz supremo e inapelável dos princípios orientadores da própria existência. A sociedade espiritual das almas cessa de ser o instrumento escolhido pela Providência para a conservação, transmissão e defesa das verdades essenciais à vida superior das consciências. Ao indivíduo, com todas as contingências de sua falabilidade e sob o impulso desorientador de toda as paixões e interesses efêmeros, transfere-se a missão de organizar a própria visão integral do universo e por ela pautar a liberdade de seus atos. É a doutrina do reformador, nas suas exigências mais radicais. E foi também o exemplo contagioso de sua vida. As suas principais teorias refletem, na esfera da inteligência, as próprias preocupações individuais e respondem a exigência de solução para crises interiores de caráter nitidamente pessoal. Através do próprio eu, Lutero vê, julga e organiza tudo.
E este eu humano é miseravelmente dilacerado na unidade de sua estrutura. A doutrina luterana multiplica os dualismos que desfecham em antinomias insolúveis. A natureza e a graça, a ciência e a fé, a autoridade e a liberdade, a mística e a lógica, longe de harmonizarem-se em sínteses consistentes, opõem-se em contrastes que preparam futuras negações.
Ao mal do individualismo, que isola da sociedade, o mal da desintegração interna que expõe a vida do espírito a todas as surpresas da anarquia interior. Subverte-se visivelmente e sistematicamente a hierarquia das atividades espirituais do homem. A razão abdica em favor do sentimento. Extingue-se a luz e desencadeiam-se as forças cegas. É o primeiro deslize da constância do Objetivo para a instabilidade do Subjetivo.
Frenesi individualista a romper o equilíbrio entre o homem e o mundo externo da vida social, exaltação imanentista a desarticular a organização do mundo interior: duas atitudes que os séculos seguintes irão desenvolver e agravar com as mais funestas consequências. Sob o signo da ruptura, inaugura-se a civilização moderna.
Obs: foram feitas pequenas adaptações para um português mais modernos e, para dar mais fluidez ao texto, não trouxemos as esclarecedoras e ricas notas de rodapé (mas que com certeza estarão na reedição da obra por nossa editora).