Não é todo dia em que vemos a entrevista de um tradicionalista com um dos progressistas mais influentes na Igreja. A entrevista é interessantemente reveladora, pois nos permite verificar traços de como pensa uma mente modernista nos dias de hoje. Eis a entrevista feita pelo blog italiano Messa in Latino
Durante os Três Dias de Dom Primo Mazzolari que se realizam todos os anos na Diocese de Cremona, em Bozzolo, conheci o Prof. Andrea Grillo, líder do progressismo litúrgico: professor de Teologia dos Sacramentos e Filosofia da Religião em Roma, na Pontifícia Universidade S. Anselmo e Liturgia de Pádua, na Abadia de Santa Giustina; prolífico liturgista, teólogo e autor de um blog frequentado “Come se non”
Do prof. Grillo nos separa, do ponto de vista da teologia litúrgica, quase tudo, mas sempre apreciamos sua franqueza “brutal”: pelo menos ele fala com clareza.
Em Traditionis Custodes, documento que parece ter sido preparado no interior do Culto Divino, se reconhece, porém, em nossa opinião, a presença do seu pensamento, dos seus escritos e das suas propostas operativas.
O professor, a quem muito agradecemos e apreciamos pela sua sinceridade, gentilmente nos concedeu uma entrevista que reportamos a seguir, da qual transparece toda a sua aversão aos tradicionalistas, dos quais diz ser “uma seita que vive a infidelidade como uma salvação” .
Em relação aos temas abordados nesta entrevista, circulam com ainda mais insistência os rumores de uma proibição total da liturgia tradicional. (Conforme relatado Rorate Caeli ).
Messa in Latino: Por que, pelo menos segundo percebemos, parece que a todo custo não há vontade de dar espaço livre na Igreja Católica aos tradicionalistas fiéis a Roma (como se dá a muitos outros movimentos leigos), e que só são fiéis para serem reeducados?
Prof. Grillo: A primeira pergunta contém numerosas imprecisões que comprometem o próprio sentido da pergunta. Tentarei ilustrá-las uma a uma. Aqueles que vocês chamam de “tradicionalistas fiéis a Roma” são na realidade pessoas que, por diversos motivos, se encontram em desacordo com Roma, e não numa relação de fidelidade. O elemento contrastante não diz respeito simplesmente a uma “forma ritual”, mas a um modo de entender as relações internas e externas à Igreja. Tudo começa pelo equívoco gerado (de boa fé, mas com juízo completamente errado) pelo motu proprio Summorum Pontificum, que introduziu um “paralelismo ritual” (entre NO [Novus ordo] e VO [Vetus ordo]) que não tem fundamento sistemático nem prático: não tem fundamentação teológica e gera divisões maiores do que aquelas presentes antes. A ideia de “fidelidade a Roma” deve ser contestada: para ser fiel a Roma é preciso adquirir uma “língua ritual” segundo o que Roma estabeleceu comunitariamente. Não se é fiel se tiver nos pés dois sapatos. A demonstração desta contradição é mérito da TC [Traditiones custodes], que restabelece a única “lex orandi” vigente para toda a Igreja Católica. Se alguém me disser que é fiel ao NO e ao VO ao mesmo tempo, responderei que não entendeu o que significa tradição, dentro da qual reside um legítimo e insuperável progresso, que é irreversível.
MiL – Depois da peregrinação Paris-Chartres 2024 (18.000 pessoas, idade média de 25 anos, bispos diocesanos, um cardeal da Santa Igreja Romana, ampla cobertura midiática), achas que a Igreja deve agora pensar numa pastoral que inclua também o carisma “tradicional” (como feito para outros movimentos que surgiram após o CVII) ou deve continuar negando a enorme vitalidade da liturgia antiga?
Prof. Grillo: O que são 18 mil pessoas comparadas à grande multidão da Igreja Católica? Pouco mais que uma seita que vive a infidelidade como uma salvação, muitas vezes ligada a posições morais, políticas e de costumes completamente preocupantes. Não é mudando as palavras que se melhora a coisa. Tradição e tradicionalismo não podem ser identificados. O tradicionalismo não é “um entre muitos movimentos” (ainda que possa ter características parcialmente semelhantes a alguns dos movimentos mais fundamentalistas, indevidamente favorecidos nos últimos 40 anos), mas uma forma de “negação do Concílio Vaticano II” que não pode senão prejudicar a experiência eclesial. A Igreja não é um “clube de notários ou de advogados” que cultivam as suas paixões estéticas ou pretendem instrumentalizar a Igreja como “o museu mais famoso”.
MiL – Por que, na sua opinião, sobretudo nas áreas anglófona e francófona, há um aumento considerável de fiéis, seminaristas, conversões, ofertas financeiras, famílias numerosas de âmbito tradicionalista (face a uma evidente e grave crise quali-quantitativa das paróquias Novus Ordo, pelo menos no mundo ocidental)?
Prof. Grillo: Estamos diante de uma distorção do olhar. A fé encontra, sobretudo no mundo ocidental, uma crise que começou há mais de um século e que conheceu uma aceleração muito forte nos últimos 50 anos. Mas a crise não pode ser respondida restaurando a forma de vida da “sociedade de honra”. Não são “cappa magna” ou “línguas mortas” que dão força à fé. Reforçam somente os laços identitários, formas de fundamentalismo e intransigentismo, que já não são mais os de 100 anos atrás, senão que assumem figuras inéditas, nas quais o cume da vida pós-moderna se casa com uma identidade “católica” que de católico só tem o rótulo idealizado. Não é um fenômeno eclesial ou espiritual, é um fenômeno de costumes e de formas de vida, que pouco tem a ver com a tradição autêntica da Igreja Católica.
MiL – Então, nesta situação de carestia de seminaristas e de morte de fiéis jovens, por que, segundo o senhor, o S. Padre Francisco parece considerar – ao menos aparentemente – como inimigos somente aos fiéis tradicionalistas (que rezam una cum Papa nostro Francisco e crescem cada vez mais)?
Prof. Grillo: Em primeiro lugar, a “carestia de seminaristas” e a “fuga dos jovens” não é só um dado negativo: é o sinal de uma angústia necessária para toda a Igreja. As soluções “fáceis” (enchamos os seminários tradicionalistas com jovens militarizados a modo dos presbíteros do século XVII ou XVIII) não passam de erros, cujos preço é pago primeiramente pelos interessados. Geram não uma vida de fé, mas muitas vezes um grande ressentimento e rigidez pessoal. Eu não me preocuparia com o fato de o Papa Francisco sentir isso como um perigo. Eu estava muito mais preocupado com o fato de seus predecessores os verem como um recurso. A nostalgia nunca é um recurso, mesmo quando ilude com o pensamento de que a Igreja não tem nada para reformar, só quer encontrar todas as respostas no passado. Para rezar “una cum papa”, não se pode fazê-lo com tagarelice, mas, antes de tudo, se deve partilhar com a Igreja e com o Papa o único ordo vigente. Caso contrário se pronuncia, mas se vive em contraste com a tradição.
MiL – É possível que uma forma ritual que por muitíssimo tempo foi aquela “normativa” da Igreja Católica, não possa mais ter espaço, juntamente com tantos outros ritos da própria Igreja Católica (inter alia o moçárabe, ambrosiano, caldeu, de São João Crisóstomo, armênio, etc.)? Por que não deixar o carisma tradicional coexistir na grande diversidade dos carismas eclesiais: “Não devemos ter medo da diversidade dos carismas na Igreja. Ao contrário, devemos alegrar-nos por viver esta diversidade” (Francisco, 2024)?
Prof. Grillo: Também neste caso, na pergunta formulada, se manifesta um equívoco bastante grave. Por outro lado, reconheço que a sua pergunta ressoa com uma das motivações mais fortes (e menos justificáveis) que marcaram a época (do Summorum Pontificum) à qual estás tão apegado, que quase faz dela a sua bandeira. No centro desse documento, de fato, estava um argumento que dizia: “o que foi sagrado para as gerações passadas não pode deixar de ser sagrado também para as atuais”. De onde vem esse princípio? Não da teologia, mas da emoção nostálgica do passado. Um tal princípio tende a “fixar a Igreja” ao seu passado. Não no “depositum fidei”, mas no revestimento que assumiu numa época, como se fosse definitivo. A existência, ao longo da história, de formas rituais reconhecidas na sua “alteridade” depende da tradição “específica” dos lugares ou das ordens religiosas. Ninguém jamais foi capaz de pensar que, a nível universal, alguém tivesse a liberdade de permanecer numa versão do rito romano ou na versão superada por uma reforma geral. E não se podem usar “à direita” as grandes ideias paulinas de modo tão despudorado: a liberdade dos carismas não pode ser pensada como alimentando uma “anarquia do alto”, como fez irresponsavelmente a implementação do MP Summorum Pontificum. Muito melhor teria sido trabalhar “numa mesa única”, para que todos pudessem contribuir para enriquecer “a única forma ritual vigente”. O desafio de um melhoramento mútuo entre NO e VO foi uma estratégia e uma teologia totalmente inadequadas, alimentada pela abstração ideológica.
MiL – Tu fizeste pesadas críticas à liturgia tradicional. Pensas que os fiéis que a preferem também têm o direito de fazer críticas do mesmo tipo à reforma litúrgica, ou achas que a análise crítica da liturgia só pode ir na direção da corrente teológica da qual tu és um autorizadíssimo expoente?
Prof. Grillo: Eu não raciocínio por “facções” ou por “partidos”. Eu apenas tento ler a tradição e descobrir o que podemos fazer e o que não podemos fazer. Todos podem fazer objeto da elaboração crítica todos os passos da tradição. A mim interessa que os passos sejam argumentáveis. Os argumentos dos tradicionalistas são débeis, porque negam da tradição aquilo que melhor a qualifica: ou seja, o seu serviço à mudança. Aqueles que contestam a reforma litúrgica têm todo o direito de falar, mas não podem fingir que seus argumentos sejam “autodemonstrativos”. Por exemplo, não se pode deduzir da crítica à “reforma da Semana Santa” o direito de recorrer aos ritos anteriores a “toda reforma” do Tríduo, ou seja, aos ritos anteriores à década de 1950. Quem se move deste modo não só não contribui ao debate eclesial, senão que se coloca objetivamente fora da tradição católica e, porquanto reafirme a sua “fidelidade ao Papa”, de fato a está negando. Não é tão simples evitar tornar-se “sedevacantistas”, antes nos atos do que nas afirmações.
MiL – Uma última pergunta. Acreditamos que a reforma litúrgica fracassou globalmente (como pode ser visto pelos seminários e igrejas vazios, pelas paróquias e dioceses fundidas, etc.), e que contribuiu para a crise da Igreja. Pensamos também que, para defendê-la, se procurar retratar como resultados esperados o que nos parecem consequências negativas. Como tentarias nos fazer mudar de ideia?
Prof. Grillo: Há casos, no confronto teológico e litúrgico, no qual a utilização dos argumentos pode estar fadado ao fracasso. Nunca desisto (não seria teólogo se não confiasse na argumentação), mas entendo a dificuldade. Nestes casos utilizo um raciocínio que muitas vezes é difícil de entender. Até o famoso jornalista Messori muitas vezes caiu neste erro igual ao teu. Tu dizes que “a reforma litúrgica falhou” e raciocina em cima de números. Tu pensas assim: se na história alguma coisa é anterior a outra, então o que vem antes é a causa do que vem depois. Não é difícil, pois, acreditar que a responsabilidade pelos males dos anos 70-80-90, até 2024, cabe ao Concílio Vaticano II e em particular à reforma litúrgica. Essa forma de raciocinar, porém, historicamente não tem base. A crise da Igreja foi antecedeu largamente a ascensão do pensamento litúrgico: Guéranger e Rosmini falavam de uma “crise litúrgica” já em 1830-40. No início do século XX, Festugière diz “já ninguém sabe o que significa celebrar”… mas não só se ignora tudo isto, como se tende a simplificar as coisas e pensar que “se não fosse feita a reforma” seríamos ainda a Igreja dos anos 50. Aqui há um defeito de visão, que deriva de uma análise muito superficial da relação entre forma eclesial e forma ritual. Para fazer mudar de ideia, penso que deverias primeiro refletir sobre a relação entre liturgia e experiência eclesial. O discipulado de Cristo não é a adesão a um clube da alta sociedade nem uma associação para falar uma língua estranha ou para se identificar com o passado, cultivando ideais reacionários. A tradição não é o passado, mas o futuro. Sendo a Igreja e a fé coisas sérias, não podem ser reduzidas à associação de quem cultiva a nostalgia do passado.