Todos nós temos de deixar para trás boas e agradáveis situações, que são um bem, para agarrar-nos a bens maiores, o que não raro é um doloroso sacrifício dos primeiros. É como quando deixamos nossa família, nossa casa, nossa doce terra natal para irmos a lugares distantes a trabalho, estudar, formar nossa própria família e assim por diante.
Sabendo que não podemos conciliar a atualidade do gozo de estarmos em nossa terra natal com a bondade (advinda de certa necessidade) de vivermos em terra longínqua, como que quiséramos ou que nos fosse possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo, quando a cidade em que passaremos a viver é também boa para nós, além das razões de bem relativas ao trabalho, quando este é o fator principal da ida, ou que a unificássemos em uma só, num mesmo instante de gozo ou de posse. Porque então haveria muitos bens enlaçados na unidade da nossa consciência: perceberíamos a amabilidade de uma situação na qual atualmente estão inseridos vários bens.
Isso também ocorre no âmbito da consciência ou da memória. Recordamo-nos do passado com nostalgia e suavidade muitas vezes, ainda quando o presente seja excelente. Podemos recordar nossos tempos de infância mesmo quando estamos satisfeitos com nossa situação atual de adultos casados, por exemplo. Não quereríamos sacrificar nossos bens atuais em ordem a que voltássemos ao passado, mas que o passado se nos tornasse atualmente presente, não apenas no âmbito da consciência, pois então só haveria nostalgia, uma vez que o veríamos como algo que já sucedeu, mas da realidade mesma, razão por que se pode acrescer ao presente, aqui, o selo de domínio da temporalidade que mais tem consistência e o que de certo modo fundamenta os seus dois polos: o passado e o futuro.
O primeiro está atualmente presente apenas na consciência, mas não realmente, porque já não é. O segundo se encontra na mesma situação, pois ainda não é. Por sua vez, o presente está inabalavelmente atualmente presente na consciência e na realidade, porque é a consumação hic et nunc do que é, uma manifestação ou desvelamento da realidade em seu desdobramento temporal.
Por isso, a nostalgia que se refere a boas e antigas experiências é como o suave odor da amabilidade já experimentada e que nos traz à memória suas delícias. Ela pode, em uma de suas formas, ser a aura na qual se inserem fatos insignificantes e indignos de recordação, ou pode ser o legítimo adorno e afirmação psíquica e humana da bondade do que já passou, mas que deixou uma marca indelével nesta pequena história humana que é nossa biografia.
Fixar-se nela tão somente com melancolia e lamentações seria, então, como que desprezar o presente realmente atual em função da triste impossibilidade de reviver o presente passado além dos limites da memória e dos fenômenos íntimos da consciência.
Quanto ao futuro, se esperamos algo dele em definitivo não é senão que o presente ou agora se transfigure e se torne ainda mais consistente, ainda mais dotado de ser ou de perfeições, quer internas, quer externas. Viver o futuro, em vez de saudade ou nostalgia, gera ansiedade, porque antecipa algo que só o desdobramento silencioso do presente é capaz de tornar atual ou real, e porque dispõe a alma a considerar fortemente a ausência ou o vácuo amargo do momento atual que queremos preencher e tornar mais vivível.
Só se vive psicologicamente o futuro porque se quer viver o presente com maior intensidade, portanto. E isto é evidente: é como se o presente se apresentasse universalmente como o único capaz de dar à luz as perfeições da existência, quando não já as retém em seu seio; o futuro seria apenas um modo de situar esse parto temporal para nós. Com efeito, a palavra “ansiedade” está ligada ao verbo “ansiar”, ou seja, desejar algo – talvez com veemência doentia –, e o desejo supõe a ausência do objeto amado.
Ausência onde? – Em mim ou na realidade externa – e particularmente no agora vital em que estamos inseridos. Essa ausência, como vimos, pode produzir tristeza (percepção da ausência atual do amado ou, dito de outro modo, presença atual de um mal), saudade (percepção da ausência do que já vivemos, razão por que é certa tristeza quando não alívio), ou medo (percepção da ausência de capacidades atuais ou meios de suportar um mal futuro próximo), e assim por diante.
Baseando-nos no que foi dito anteriormente, entende-se com mais claridade o início do presente texto. Ora, é da natureza mesma da nossa atual condição temporal e frágil que provém a necessidade de sacrificar bens em favor de outros, abraçando uma alegria sob pena da tristeza de abandonar algo que se ama. Daí que seja tão natural que encontremos uma consolação, ao deixar a pátria ou ao despedir-nos de pessoas que amamos quando morrem, em antecipando psicologicamente a atualidade do momento em que nos reencontraremos ou em que estaremos novamente todos juntos, tal como no passado. Não queremos abandonar por completo aquelas perfeições, aqueles amores dos tempos antigos, ainda quando atualmente haja perfeições maiores.
Ora, perfeições maiores (às vezes relativas) não suprimem a bondade das menores necessariamente. Por exemplo, é relativamente bom tomar café da manhã em um restaurante de alta qualidade em uma cidade bela e organizada, mas esta experiência não satisfaz por si o desejo que possamos ter de voltar à antiga experiência de, por exemplo, nos alegrarmos ingenuamente com uma humilde refeição no campo, na casa de nossos avós, onde talvez houvesse uma carência geral muito maior que a do restaurante. Mas, nesse sentido, essa carência seria uma bondade, e uma bondade especial: era o que era, algo irrepetível – e àquilo que é verdadeiramente irrepetível nunca se admite substituição que implique em aniquilação do que se ama –, num contexto inalienável, portanto distinta da bondade do restaurante.
Era uma carência adornada com a presença de pessoas e objetos amados, os quais talvez estejam ausentes naquele restaurante de luxo. Uma não anula a outra, mas certamente gostaríamos de ter ambos os bens, não simultaneamente em termos concretos, obviamente, pois isso ser-nos-ia impossível e impediria qualquer concentração da nossa atenção, mas na medida das possibilidades humanas, sem que um bem se viesse a perder para sempre, quer dizer, sem que o que para nós é irrepetível porque insubstituível, em sua unicidade ontológica, deixasse de repetir-se-nos a modo de manifestação ou concretização de sua presença.
Porventura não é por isso que cada fase da vida tem suas alegrias próprias? Estas são a afirmação atual do nosso ser à bondade real e presente das perfeições do momento, e o fato dessas perfeições nos escaparem com tanta facilidade é o que nos pesa a alma, porque então é como se a sua afirmação espontânea se tornasse uma negação forçada: passou, não é mais, nem pode ser, apesar de relutarmos em querer que seja novamente!
Quando escutamos uma música que nos faz estremecer o ser inteiro não costumamos querer ouvi-la novamente? Este bem escorre de nossas mãos, sedentas de manterem para si a bondade do que amam. E o que se mantém está, digamo-lo assim, à disposição; está certamente presente ou disponível para nós, em alguma medida.
Precisamente, apenas no presente é que o amado pode ser possuído e desfrutado, conhecido e abraçado. Quando ele o é no passado, há saudade; quando o é no futuro, pode haver esperança, ou expectativa, ou ansiedade. Mas quando o é no presente há satisfação ou alegria, porque ele está presente a nós atualmente na plenitude do seu ser, do nosso ser e da realidade: isto sucede aqui e agora, isto é real, essa união é perfeita segundo sua natureza – razão por que o fato de o amado, quando se trata de uma criatura, estar presente na plenitude do seu ser supõe, por esta mesma razão, que o está também na totalidade da sua deficiência e debilidade, da sua pequenez e incapacidade de fazer-nos eternamente felizes.
Muitas vezes, porém, julgamos que a nossa felicidade está em uma criatura, ou melhor, em um bem criado, porque parece-nos brotar deste bem um manancial de luz e perfeição capaz de prover-nos para sempre a nossa satisfação máxima.¹ Certamente, fazemo-lo antes mesmo de ter as devidas experiências com este bem criado a que saiamos de nosso engano ao assimilá-las em sua justa medida, pois participamos da plenitude do que tomamos por fim quando experimentamos algo de seus similares imaginativamente ou nas nossas vivências cotidianas.
Trata-se de experiências muito próximas e não raro sensíveis, que estão ao alcance de todos os homens. Podemos enxergar nelas um reflexo da glória suprema que será obter aquele bem sumamente amado, como ser maximamente rico ou famoso, fins nos quais plasmamos, ainda que sem saber, caracteres próprios da felicidade celestial sobrenatural. E assim, como é inevitável que o façamos todos, também essas pequenas experiências são adornadas com algo da eternidade, então vista sob o prisma de glórias mundanas e coisas semelhantes.
[Continua…]
¹ Para considerações mais amplas e aprofundadas sobre este tema, recomendo a leitura do meu livro O importante é ser feliz? Felicidade, relativismo contemporâneo e outros temas.