Você sabia que Machado de Assis previu a nossa terrível situação atual de uma humanidade de joelhos diante do abominável coronavírus? Não podíamos esperar menos de um dos raros autores brasileiros cuja genialidade o levou a ser traduzido para vários idiomas e até fascinou Woody Allen. Perdoem-me, mas o spoiler será inevitável para que eu lhe mostre a fineza e utilidade de uma boa literatura em tempos de sandice.
A previsão do mundo pós-covid-19 é feita no divertidíssimo conto O Alienista. Nele, o Dr. Bacamarte é um genial médico de uma pequena cidade fluminense, tão estudioso e possuído pelo espírito da investigação que só viria a ser superado pelo Dr. Átila e pelo Dr. Fauci. Por isto mesmo, o inteligente médico constrói um hospital, a famigerada Casa Verde; também em suas pesquisas, ele “descobre” como identificar pessoas que “desenvolverão” doenças, e persuade a câmara municipal a interná-las à força em seu hospital. Assim prossegue a tragicômica trama até que os “saudáveis” sejam a minoria na cidade, e então até que apenas o próprio médico o seja! Tranquilize-se, o final desta profecia do hoje não nos interessa, por isso não vou contá-lo aqui; espero que assim eu não tenha matado, mas atiçado, o seu desejo de ler a obra.
Nunca levei muito à sério os críticos literários que interpretam obras clássicas como críticas sociais ou manifestações de antagonismos societários; mas quando alguns entre eles tomam o conto em questão como uma crítica de Machado de Assis ao cientificismo, tenho de concordar ao menos dessa vez com estes eruditos. Mas, também tenho que ressaltar aqui a magistral lição de Conan Doyle pela boca de Sherlock Holmes, que diz que por mais incrivelmente engenhosa que seja a literatura, ela sempre será por muito desbancada pela vida real. Ou seja, mesmo que o gênio de Machado de Assis tenha previsto os resultados das imposturas do cientificismo numa cidadezinha do interior, ele jamais poderia imaginar o resultado que isso teria aplicado a uma nação inteira. Lamentavelmente, tivemos de esperar para ver a vida ultrapassando a literatura neste nosso país, a terra do inacreditável, nestes tempos de loucura.
O entra e saí de pessoas da Casa Verde é comparável à imposição e revogação de “medidas sanitárias” de nosso tempo, e a arbitrariedade do Dr. Bacamarte e da Câmara Municipal são comparáveis a arbitrariedade e a inconstância dos nossos governantes e de seus papagaios de pirata, como o Sr. Iamarino, que ora diz que milhões de pessoas irão morrer, ora diz que o Coronavírus vai se tornar uma gripe comum, como fez recentemente.
Qualquer biólogo medíocre sabe muito bem, há ao menos 200 anos, que os vírus têm uma capacidade incrível de sofrerem mutações. Porém, desde que o homem caminha sobre a terra, sempre vivemos normalmente, sem que esta potencialidade para pandemias nos tirasse o sossego, mesmo nestes últimos séculos desde que Darwin e Lamarck enunciaram esta lei da biologia evolutiva. Então, de uma hora para outra, após um bom tempo em que os organismos humanos estão se adaptando ao novo vírus, boa parte da população se vê acometida por uma espécie de histeria: passaram a caçar variantes de vírus, que sempre existiram por aí a se multiplicar, apavorados com o surgimento de qualquer novo vírus pandêmico. Gostaria que algum psiquiatra me ajudasse a fazer um diagnóstico disso: seria uma histeria, hipocondria, esquizofrenia, fobia, ou que tipo de transtorno mental? E também: o que o teria causado e o disseminado em uma parte tão significativa da população?
Além dos maus críticos literários, há tipo de entusiasta com quem não costumo concordar, mas que tem total razão em parte do que fala: aqueles adeptos da tendência um tanto etérea do naturismo. Não concordo quando dizem que a vida numa sociedade tecnológica e moderna é de todo ruim, mas sou obrigado a concordar que da maneira como esta sociedade está disposta hoje, há algo muito errado, que leva ao surgimento desta (vou chamar assim por ora) hipocondria endêmica para qual o retorno à vida normal é uma imprudência absurda e o mais sensato seria que todos vivam como o protagonista de um filme tosco chamado “Jimmy Bolha”, que passava nas noites do SBT na época de minha infância (minha memória é um imenso depósito de coniventes informações inúteis). Este erro moderno é a vida inteiramente artificial que é, para ser realista, inegavelmente imposta às pessoas que habitam as grandes e medianas cidades de hoje. Esta infeliz doença psíquica pode parecer irritante para uns egoístas como nós, entre os quais há aqueles que perderam o seu ganha-pão ou que sofrem inconveniências inimagináveis, mas não nos é incompreensível. Afinal, como é possível que as pessoas observem e julguem a realidade de modo são, se elas já aceitaram (e mais do que isso, defendem com um fanatismo mais cego do que o inquisitor mais sádico, se ele tiver existido como eles apregoam) que não há diferença alguma entre quem tem cromossomos XX e XY; que um ser com o próprio metabolismo (uma das definições de ser vivo) e com uma carga genética particular pode ser trinchado no ventre materno e posto desmembrado sem cerimônia num saco de lixo? Citando apenas dois exemplos só para não me delongar, não admira, pois, que para eles esteja muito correto exigir distanciamento na fila do mercado após todos terem ido para lá num ônibus abarrotado. Eis o resultado de uma sociedade do falatório, que desconhece o sentido de “perene” ou que reconheça alguma verdade que seja perene, onde ninguém tem raízes ou um porto seguro onde ancorar o seu espírito.
E, por falar em falatório, não podíamos deixar de citar nomeadamente os reis do falatório: os especialistas, ou soi-disant cientistas. Totalmente ignorantes dos princípios que regem as suas próprias ciências, e ignorantes muitas vezes da vida real que as pessoas de carne e osso vivem nas periferias ou onde quer que se encontre um trabalhador cumprindo o desígnio divino (ganharás o teu pão com o suor do teu trabalho), estes sujeitos são o suprassumo da vida artificial da nossa modernidade: são criados no sistema educacional que eu particularmente chamo de “gaiola de ratos”, são sustentados pelos pais até os 40 anos e não tem senão uma ética hedonista muito patética, pois sempre impotente e fracassada. Tomem o sr. Iamarino como exemplo: se não fosse um verdadeiro homem-massa, para usar o conceito de Ortega y Gasset, ele continuaria, com quase 40 anos, ostentando ser um nerd, como se ainda não tivesse saído do colégio, se distinguindo como um típico adolescente? O mesmo vale para Pirula, Izzy Nobre, ou quaisquer outros destes charlatões. Eles dispõe de todos os patrocínios e apoios que podem lhes fornecer o seu “sindicato” de pseudo-cientistas, partidos políticos e empresários com certos interesses tão suspeitos quanto os de um vendedor à paisana de fármacos numa noite de sexta na Trajano Reis. A participação destes influenciadores em reuniões do TSE e nas altas esferas políticas quando se discute o manejo da pandemia é outra mostra de como o simples falatório de pós-doutores pode alimentar a sociopatia já muito descontrolada de certos ministros dos supremos tribunais, e levar a hipocondria endêmica a se tornar lei, como já se tornou, como todas as isenções que o cinismo pode fornecer: a vacina (experimental e com efeitos colaterais também muito endêmicos) não é obrigatória; sua vida apenas vai se tornar impossível em sociedade e seus direitos não existirão.
Parafraseando o foragido mais idôneo da história deste país: Dr. Bacamarte não ê uma pessoa, é uma ideia. Ele está, como a verdadeira doença, infectando as mentes de muitos de nossos concidadãos e levando a própria ideia de cidadania para as valas coletivas cavadas com tanto alarde pelo sr. Dória e seus congêneres. Ele tira e mete as pessoas dentro da sua Casa Verde, que pode ser hoje a casa de cada brasileiro; basta para isso que o óbvio darwniano aconteça: que surja algum dia algum novo vírus com potencial pandêmico. Mas, se eu fosse você, ficaria tranquilo. O espaço histórico que separa ondas pandêmicas assim costuma ser assaz grande, e uma sociedade capitaneada pelos drs. Bacamarte nunca consegue durar o suficiente para ver novas pandemias acontecerem.