O impacto das ideias e dos símbolos na educação, na cultura e nas leis que regem a vida política das nações não é coisa de somenos importância para o Bem Comum. E quanto mais forte e profundo é este impacto, mais a ideia que o gerou merece ser rastreada nas suas origens e compreendida com o devido rigor analítico, a fim de que os seus potenciais efeitos construtivos sejam maximizados e os seus potenciais efeitos destrutivos sejam atenuados.
O culto católico a Maria de Nazaré e o feminismo moderno certamente estão entre os fenômenos mais marcantes e influentes na História da Ideias. Ambos moldaram diversos aspectos da mentalidade e do comportamento de várias gerações. Seus respectivos efeitos aparecem na literatura, nas artes plásticas, na pedagogia, nos conceitos sobre a mulher, em diversas formulações legais e institucionais e, claro, nos padrões de conduta das pessoas.
Quem seria Sâmia Bonfim sem o feminismo? E quem seria a cidade de Aparecida-SP, e os milhões de devotos que a ela vão peregrinar todos os anos, sem a devoção a Maria?
Ambos engendram conceitos fortemente performáticos, configuradores do pensamento e da vida prática. Para constatá-lo, basta consultar a biografia de uma feminista moderna convicta e a de uma devota católica ligada a algum dos muitos institutos e movimentos de carisma mariano existentes na Igreja.
Um deles é matriz teórica de Judith Butler nas Letras, Anitta na “Música”, Helena Paro na “Medicina” e a bancada feminista do PSOL na Política. A outra nos deu Gertrud von Le Fort nas Letras, Dana Scallon na Música, Zilda Arns na Medicina e a Princesa Isabel na Política. Desnecessário falar sobre o abismo ético-conceitual que há entre os dois grupos.
A associação insólita
Recentemente, porém, um usuário anônimo da rede social X (@iamnotnuman) sugeriu que haveria um nexo teórico entre essas duas concepções abrangentes, de maneira que o culto a Maria seria uma espécie de precursor ideológico do feminismo. De acordo com ele, que se identifica como maçom e aborda a fé cristã, católica ou protestante, desde um ponto de vista distanciado, ao sacralizar a mulher na figura de Maria a Igreja teria pavimentado o caminho para o surgimento das bandeiras feministas.
Em outras vozes progressistas contemporâneas eu também já havia encontrado quem chamasse Santa Joana D’Arc ou Santa Teresa de Ávila, por exemplo, de “feministas avant la lettre”, por terem “ousado” assumir posições de destaque “frente à sociedade machista do seu tempo”. Mas nunca antes havia achado uma que fosse insana o bastante para associar o feminismo à Virgem Maria. Por isso, por ser uma noção tão insólita quanto desconexa, achei por bem discorrer sobre ela, aproveitando o texto no X para discutir se realmente pode haver alguma relação entre o feminismo e a devoção mariana.
Nos sete parágrafos do seu artigo, o usuário do X consegue misturar os cultos pré-cristãos às “deusas da fertilidade” (mencionando expressamente só Vênus e Gaia, embora a primeira fosse, antes, ligada à beleza e ao desejo erótico e, a última, à terra e à natureza), com a noção feminista de “empoderamento” da mulher e o que chama pejorativamente de “Marianismo”, em referência ao culto cristão de veneração à Mãe do Senhor. Uma verdadeira salada marroquina, com ingredientes que combinam tanto quanto leite quente e cerveja IPA.
Nas palavras do autor anônimo, “apesar de suas origens distintas, esses conceitos se confundiram e se fundiram, influenciando mutuamente a percepção e o comportamento social contemporâneo”. Ou seja, muito antes de Simone de Beauvoir, Betty Friedan e Judith Butler, a Igreja Católica teria colocado a mulher num pedestal lá atrás e, com isso, desencadeado toda a distorção no conceito do feminino que veio depois. Faz sentido?
Ao leitor pouco familiarizado com esses temas e dado a assentir às teses que apeteçam ao seu viés de confirmação – por superficiais que sejam os argumentos –, o autor pode até convencer. Mas não àquele que conheça, pelo menos, o Novo Testamento da Bíblia. Deixemos, porém, a parte do “Marianismo” para depois; será mais excitante tratar do feminismo primeiro.
O que é, em essência, o feminismo?
“Não se nasce mulher: torna-se mulher”. A frase de Simone de Beauvoir explicita que, para o feminismo, a mulher não tem a sua feminilidade dada pela natureza ou por decreto divino, mas como uma construção social. Uma construção artificial que apenas tem servido, de forma ilegítima, a um paradigma social patriarcal machista e historicamente opressor.
O papel redentor do feminismo, portanto, consistiria em convocar à revolta contra essa condição, a fim de libertar toda mulher que foi obrigada a sujeitar-se aos padrões de feminilidade pelo paradigma machista. Uma revolta que implica na recusa a ser dócil, frágil, filha, submissa, virgem, feminina, esposa, dona de casa, mãe, protegida, coadjutora, parceira, etc., para ser autônoma, líder, protagonista, independente, forte, emancipada, descomprometida, determinada, experiente, ousada, chefe, despudorada, casual, audaciosa e, até onde isso lhe é possível, “viril”. Ou seja, o arquétipo ideal do feminismo é nada mais do que um macho amoral mal-acabado.
Todo o feminismo se resume numa insurreição contra o que significa ser propriamente mulher. Não há, no feminismo, o menor apreço ao “ventre sagrado”, como sugere o anônimo do X. O que há é uma negação do ventre, da maternidade (daí o abortismo), do próprio status biológico de genetrix (palavra latina que significa “geradora”, “mãe”, e se refere na liturgia católica, muitas vezes, à sancta Dei genetrix, a santa Mãe de Deus).
Reivindicacionismo contínuo, pretensão de absoluta igualdade com os homens, apego desordenado às opiniões e vontades próprias, ódio a tudo o que a natureza (Deus) determinou para a mulher, tendência para a profanação das coisas sagradas, libertinagem sexual, repúdio pela tradição, cobiça de altas posições e prestígio social, ânsia de poder e direitos irrestritos sobre a vida e a morte dos próprios filhos: tais são as características facilmente reconhecíveis no feminismo hodierno. E todas elas podem ser classificadas, rigorosamente, como narcisistas e até sociopatas.
O mero cheiro de submissão, fidelidade, passividade ou obediência a uma missão dada por Deus ou por um homem cuja autoridade não tenha sido conferida por ela mesma, é algo extremamente repulsivo à mente feminista. E o mesmo se aplica aos outros atributos das santas veneradas pela Igreja Católica.
“A virgindade de Maria tem principalmente um valor negativo […] pela primeira vez na história da humanidade, a mãe ajoelha-se diante do filho; reconhece livremente a própria inferioridade”. (BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. Nova Fronteira, p.236-237)
Logo, os valores e virtudes tradicionalmente associados à feminilidade são não apenas estranhos ao feminismo, mas sua verdadeira antípoda. É, antes, um espírito de emancipação individual e repúdio à tradição que está na sua base; o mesmo espírito que impulsionou as revoluções liberais e que estava nos escritos panfletários dos “iluministas” – dignos, aliás, do nosso autor anônimo, tanto em rigor científico quanto em consideração pelas fontes.
Em suma, o feminismo compartilha com todas as revoluções modernas o mesmo berço: o berço da negação da natureza e da vontade divina, do “non serviam”, do espírito revolucionário, da subversão contra toda ordem estabelecida por Deus ou pelos homens, do “ordo ab chao”, do materialismo histórico-dialético, da luta de classes, da guerra dos sexos… Berço este longamente balançado pela mão da própria instituição à qual o nosso autor anônimo se vincula ao criticar, como bom antifeminista, a admissão do “pastorado feminino” entre as “igrejas evangélicas”:
Quem é Maria na devoção cristã?
Mas tratemos agora um pouco daquilo que o anônimo chama de “Marianismo”. Ignoremos, por hora, o que foi exposto acima sobre o ideário do feminismo e procuremos comprar, provisoriamente, a tese do nosso maçom anônimo, só para ver se ela se sustenta segundo o que o Novo Testamento – fonte da mariologia cristã não apenas romana, mas também maronita, caldeia, melquita, bizantina, copta, etíope, armênia, etc. – diz de Maria.
“E, entrando o Anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres.” Lucas 1, 38 (tradução protestante Almeida Corrigida e Fiel)
Terá sido Deus, pela boca do Anjo Gabriel, o primeiro feminista da história?… Com uma saudação tão reverente e elogiosa, não terá ele caído naquilo que o maçom vê como uma sacralização do feminino que levou, ao fim e ao cabo, à noção feminista de “empoderamento das mulheres”?
A saudação angélica, somada à saudação de Isabel, mulher de Zacarias, formam basicamente a principal das orações católicas marianas: a Ave Maria. E o canto do Magnificat, entoado diariamente em todas as casas religiosas católicas, é a própria resposta de Maria a Isabel na forma de um hino de louvor ao Senhor (Lc 1, 46-55).
Biblicamente, o Anjo não fez outra coisa senão levar a Maria a mensagem de Deus, enquanto Isabel e a própria Maria falaram inspiradas pelo Espírito Santo… Logo, ao nosso palpiteiro maçom não resta outra dedução senão a de que Deus mesmo institui o feminismo ao iniciar o que ele chama de “Marianismo”.
Se acrescentarmos, ainda, as palavras de Jesus na cruz, quando o Senhor deu a todos os cristãos a alegria de compartilharem com Ele de sua santa mãe, a conclusão maçônica da origem divina do feminismo poderá parecer-lhe ainda mais admissível:
“Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.” João 19, 26s (Almeida Corrigida e Fiel)
Isabel ainda a clássica no Evangelho como “Mãe do meu Senhor” (Lc 1, 43), de onde o sagrado Concílio de Éfeso (431 d.C.), almejando confirmar a divindade de Cristo frente aos hereges que a negavam e, ao mesmo tempo, promover a justa veneração a Maria, achou razões de sobra para declará-la Theotókos, “Mãe de Deus”. Deste modo, todos os que recusassem este digno título à santa Senhora estariam negando, ao mesmo tempo, que Jesus é o Filho de Deus, o Verbo Eterno, o “Um com o Pai” (João 10, 30).
Deste modo, o antiquíssimo culto a Maria, embora sempre tenha se expressado como um culto de dulia (veneração) e jamais de latria (adoração), remonta, de fato, aos primórdios do cristianismo, a tempos paleocristãos, como atestam, depois da era bíblica, os ícones da Mãe com o Menino encontrados nas catacumbas e, também, a antiguidade de orações como a Sub tuum praesidium… (“Á vossa proteção…”), datada do séc. II.
Maria, porém, sempre foi apresentada pela Igreja como a anti-Eva, aquela que, redimida antecipadamente pelo próprio Filho, tudo fez para obedecer e ser agradável aos olhos do Pai, sempre dócil às moções do Espírito. “Fazei tudo o que Ele vos disser” (João 2, 5), diz-nos Maria, remetendo o nosso olhar sempre a Jesus, feliz por ser uma seta que aponta para Ele, para a maior honra e glória d’Ele.
Ela serve e honra o Filho, e o Filho, por sua vez, trata de honrar generosamente a Mãe, fazendo com que os seus discípulos também a honrem e a tenham por mãe. Nisso se resume o culto a Maria no cristianismo, ocidental e oriental, ao longo dos séculos.
Antíteses terminantemente inconciliáveis
Mas recobremos, agora, o que vimos antes sobre o feminismo e julguemos a tese do nosso caro bode anônimo. Será que o culto mariano, de fato, pode ser considerado precursor do feminismo?… Bem, só se a Princesa Isabel for dita precursora do escravagismo, ou o franciscanismo tiver sido o precursor do capitalismo ou, ainda, o primeiro pecuarista puder ser chamado “precursor do veganismo”.
Se, no feminismo, temos a negação total da submissão feminina, em Maria temos o “eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim a Sua vontade” (Lc 1, 38). A serva perfeita, sempre leal ao seu Senhor, sempre solícita às necessidades do próximo (João 2, 3), prestimosa e humilde, contemplativa e recolhida. Em dor silenciosa aos pés da cruz, mesmo diante da maior injustiça já cometida na história. Enaltecida apenas por Deus, jamais por si mesma. Isso parece uma figura feminista pra você?
Depois, a Igreja sempre apresentou Maria como modelo luminoso para todas as mulheres. Antes de serem objetos de veneração, as santas são propostas, no catolicismo, como exemplos a serem seguidos. Não faz sentido, portanto, desvincular o culto a Maria do seu exemplo pessoal de conduta, sempre proposto e reproposto na oratória sacra católica.
O belíssimo livro A mulher eterna, de Gertrud von Le Fort, muito recomendado por bispos e padres, é uma verdadeira vacina de espiritualidade mariana contra o contágio da soberba feminista e suas doenças orgulhosas anexas. Nele, lemos essas belas frases que ilustram o dom de si feito pela Virgem de Nazaré:
O humilde Fiat pelo qual ela responde ao Anjo contém todo o mistério da Redenção. Pois o homem não tem nada a oferecer a Deus pelo seu próprio resgate, a não ser a disponibilidade de um dom de si sem condições. O papel da mulher na concepção é passivo. […] Maria não é, por conseguinte, apenas o objeto de um culto religioso; ela é, em si própria, esse elemento religioso que presta um culto a Deus, a valia de oferenda do mundo sob o aspecto nupcial da mulher. (Editora Agir, p. 15-16)
As santas canonizadas de todas as épocas foram sempre espelhos de Maria para a sua própria época. Vide a médica Santa Gianna, por exemplo, que preferiu morrer a abortar a criança que ela trazia no ventre. Mesmo santas arrojadas como Joana e Teresa, referidas acima, foram profundamente humildes, recolhidas e femininas, não obstante o protagonismo espiritual que desempenharam. E a Virgem de Nazaré era um farol para todas delas.
Como admitir, portanto, que uma tal figura, que é a própria encarnação feminina da obediência, da castidade, da solicitude, do escondimento, da conformidade com os desígnios de Deus e do amor materno seja, em qualquer sentido, precursora de uma das ideologias mais revoltosas, egoístas e subversivas que já afligiram a humanidade? Na maçonaria se ignora que as feministas mais “místicas” idolatram Lilith, a Pomba-gira e Baphomet enquanto hostilizam o exemplo de Maria?
O recurso que o referido bode emprega para fazer sua tese parecer crível é o mesmo que é adotado por uma imensa fileira de autores antipáticos à fé católica, de protestantes a progressistas pós-modernos, passando, é claro, pelos maçons: doses cavalares de achismo sem consideração pelas fontes, nexos arbitrários apenas sugeridos, e muita pose de intelectual. Então, lança-se apenas noções irrefletidas sem submetê-las ao crivo da análise honesta por um minuto sequer, vinculando a Mãe do Senhor, Vênus, Gaia e o feminismo como quem resolve enlamear de mel, ketchup, vinagre e mostarda uma pizza de pepperoni.
Exercício de palpiteria leviana
Logo nos primeiros parágrafos do texto no X salta aos olhos uma linguagem pseudo científica (para dar credibilidade à sua tese) em frases que são, porém, destituídas de um embasamento mínimo nas fontes das concepções que o autor procura ligar. Nem a ideologia feminista é considerada em si mesma, e tampouco as fontes católicas da devoção a Maria. (O que me faz lembrar de protestantes teimando na questão de as imagens sacras serem “idolatria” sem jamais terem lido o clássico tratado contra a iconoclastia de S. João Damasceno, que sepultou definitivamente a questão já nos anos 700).
Que credibilidade tem um autor que se presta a discorrer sobre um possível nexo entre dois objetos sem estar minimamente inteirado a respeito de qualquer um dos dois? Basta dizer o que se acha que são uma coisa e outra e juntar as duas com arremedos de “parece que elas tem a ver, então devem estar ligadas”?
Os dados do mundo real valem alguma coisa para um tal cérebro? Se as feministas até mesmo profanam e vilipendiam estátuas da Virgem Maria em igrejas e praças públicas, como pode alguém imaginar que ambas estariam ligadas entre si? “Se Satanás expele a Satanás, dividido está contra si mesmo; como, pois, subsistirá o seu reino?” (Mt 12, 16) Como seriam faces de uma mesma moeda se as doutrinas subjacentes a ambas são verdadeiras antíteses, impossíveis de entrarem em acordo uma com a outra sem deixarem de ser o que são?
Se é assim que as mais diversas matérias são tratadas na maçonaria, não espanta que os maçons tenham dado à humanidade incontáveis episódios de violência e perturbações contra a ordem pública (como o golpe militar de 1889 e as matanças que se seguiram a ele “em nome da república”), além de notáveis estímulos à decadência intelectual e moral, sublevações políticas e maquinações de toda sorte em favor apenas da própria “irmandade”, de suas lojas e ideologias particulares – exceção dada, é claro, para as célebres obras de filantropia, que servem bem para embelezar e lustrar sua imagem pública, além de auferir prestígio social para os maçons. Triste instituição.
Não sou a favor de transformar todo debate em disputas acadêmicas sistemáticas, cheias de citações diretas de autores renomados e normas da ABNT. Mas entendo que as pessoas precisam, ao menos, saber do que estão falando; precisam buscar conhecer bem o objeto do seu discurso antes de proferi-lo. Do contrário, arrisca-se a fazer apenas um leviano exercício de arremesso de opiniões e palpites, expondo-se à refutação fácil e à ridicularização.
Há maçons mais honestos que o nosso autor anônimo, eu sei. Mas quando a própria ideologia da instituição é uma coleção de sofismas que dão corpo teórico a um embuste completo, não se pode esperar que o raciocínio dos seus membros individuais seja impecável. E já que não podemos consertar a maçonaria, tratemos, contudo, de estudá-la a sério e compreender o que ela de fato é, e qual tem sido o seu papel histórico, assim como o papel do feminismo, do culto a Maria e de todas as concepções que exercem alguma influência significativa sobre os povos.
E sejamos honestos ao considerá-las. Pois, se é verdade que “o sono da razão produz monstros”, também o é que o sono da honestidade produz demônios.