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O que Jesus tem a aprender com Zeus?

Templo de Zeus
Por Padre José Eduardo

O cristianismo está em decomposição e dentro de algum tempo será engolido pelo paganismo politeísta, a religião natural do homem”. Com esta frase, o Prof. Luiz Felipe Pondé iniciou o seu artigo na Folha, no último dia 31. Ele contrasta a ideia do progresso rumo a um “mundo pós-cristão” com a de um regresso a um mundo pré-cristão, ou seja, ao paganismo da religião natural, resultante de uma “decomposição do cristianismo”, tal como descrita pelo argentino Silvio Maresa.

Seguindo a definição de Maresa, a religião seria uma “resposta à inconsistência ontológica do mundo” e, portanto, “o paganismo seria perene porque ele atende de forma muito mais satisfatória aquilo que o homem busca numa religião”.

Pondé analisa o fenômeno religioso a partir da perspectiva de um observador externo que o julga dentro dos parâmetros de um recorte muito estreito, para não dizer simplesmente inadequado: não como alguém que passeia por um shopping para observar vitrines, o que já seria pouco, mas como um médico que pretende fazer a biografia de um paciente com base em seu hemograma, o que é impossível.

Em outras palavras, uma religião não pode ser analisada adequadamente a não ser desde a sua própria perspectiva, que é intrinsecamente teológica, o que vale dizer, de fé. E aqui, obviamente, não caminhamos em círculos, mas retilineamente, a partir de premissas necessárias para a conclusão subsequente, e não inferindo conclusões a partir de premissas insuficientes.

Entretanto, o que ele afirma na sequência me parece ainda mais problemático. Segundo Pondé, o paganismo é mais ontologicamente adaptado à percepção humana porque um mundo mau é incoerente com um Deus bom, tal como apresenta o cristianismo, e este lapso teológico seria ainda mais agravado pela perda da mágica, que seria exatamente o que o homem procura, por assim dizê-lo, ao final do dia.

A ideia de que o paganismo em si seja metafisicamente mais adequado à percepção humana do que o cristianismo me parece, fracamente, uma inversão absurda. Vamos por partes.

Comecemos pela alegação do “Deus bom”. Embora a versão light do cristianismo, inventada nas últimas décadas, faça finca-pé numa espécie de bondade universal – e provavelmente seja a este simulacro a que se refere Pondé –, as Sagradas Escrituras e o cristianismo raiz afirmam categoricamente com Jesus:

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Ninguém é bom, senão um, que é Deus” (Marcos 10,18). Em outras palavras, “o mundo jaz no maligno” (1João 5,19) e “toda a criação geme e sofre como que em dores de parto” (Romanos 8,22) e, por isso, “aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus” (Romanos 8,19).

Aliás, como podemos esquecer que o centro do cristianismo é o mistério da Cruz? Nele, sumamente aparece o contraste entre o mal e o bem, e isto de maneira praticamente arquetípica: o mais bárbaro crime da história, o deicídio, em que Deus assume toda a maldade humana e a castiga em si mesmo, mediante o seu sacrifício expiatório, aceitando ser morto pelo ódio de suas próprias criaturas.

Algum paganismo terá conseguido exprimir o mal de modo tão metafisicamente preciso? A obra redentora de Cristo evidencia, ao mesmo tempo, a completude ontológica do bem, que encobre, pelo mistério do amor divino, a deficiência ontológica do mal, a ponto de ressignificá-lo. “Aonde abundou o pecado, superabundou a graça” (Romanos 5,20).

René Girad, em “O Bode expiatório”, mostrou como a narrativa do sacrifício expiatório de Cristo é a originalidade mesma do cristianismo, diferentemente das barganhas da paganidade, em que se pensava poder comprar deuses corruptos à força de presentes e mortes de animais. Em outras palavras, os pagãos sempre fizeram sacrifícios para Deus, mas o cristianismo é um sacrifício de Deus. Esta é a novidade do Novo Testamento.

Entretanto, como alguém pode alegar que existe mais adequação ontológica na… mágica? É isto mesmo? Se existe algo anti-ontológico por definição é a mágica. É por isso que o cristianismo se opõe à magia.

E não adianta alegar analogia entre ela e os milagres e sacramentos, pois a finalidade destes não é manipular as forças cosmológicas para obter tais ou quais resultados, mas sim fazer o homem penetrar espiritualmente no culto divino operado pelo Verbo Encarnado em seu sacrifício de adoração e ação de graças, de expiação e impetração, intensificando a fé em seu próprio coração.

O cristianismo é uma religião eminentemente soteriológica, mas que não salva o homem da vida, e sim para a vida. E esta diferença é justamente aquela que o faz ser metafisicamente mais adequado a este mundo, ao qual chamamos na Salve Rainha de “vale de lágrimas”.

Aqui não há falsificação nem mistificação, mas pé no chão, pecado chamado pelo seu nome, corrupção encarada como tal (inclusive não apenas moral, mas ontológica: é isso que está na noção mesma de “pecado original”) e o desafio de encontrar o caminho para a eternidade mediante o esforço racional, individual e intransferível, de entender a essência mesma da ética do amor neotestamentário como gratuidade obtida mediante o perdão e a reconciliação.

Neste sentido, podemos falar que, apenas externamente consideradas, a religiões podem ser estudas enquanto interpretação ontológica da realidade e, somente em alguns pontos muito marginais (afinal de contas, nenhuma religião pode reinventar a realidade inteira) podem coincidir ou não em algum aspecto.

Contudo, o cristianismo é não apenas a religião que mais se encaixa com o mundo real, sem misticismos espiritualizantes ou materialismos animalizantes, mas ele mesmo é constituído por um elemento concreto e fático: a Encarnação do Verbo, sua Morte expiatória e sua Ressurreição gloriosa, fatos testemunhados por centenas de homens idôneos e que deram a sua vida como fiadores da sua própria pregação, além de confirmados por uma série ininterrupta de milagres que atestam a sua veracidade e de uma síntese filosófico-teológica que fez confluírem as melhores tradições do pensamento humano na mais harmoniosa sinfonia, em que o sobrenatural aparece em sua inteira não-contradição com o natural.

É evidente que é mais fácil para o homem criar deuses à sua imagem e semelhança, ídolos tão sensuais, vingativos, intemperantes, interesseiros, vaidosos ou invejosos como ele. E, se é isso que Pondé chama de adequação ontológica, a isto eu chamaria simplesmente de antropomorfismo.

“Hoje a decomposição do cristianismo implica a dissolução do seu núcleo teológico em formas contemporâneas de paganismo. Ecocristianismo, expectativas reencarnacionistas, cirurgias espirituais, abertura a outras narrativas religiosas concorrentes, numa espécie de politeísmo inconfesso, sessões de ‘desobsessão espiritual’ em templos evangélicos, o hibridismo com religiões de matriz africana, um Jesus que combate a ganância dos capitalistas, como um Apolo que defende uns gregos contra outros, enfim, são muitos os sinais e sintomas do paganismo”.

Aqui, realmente, eu preciso concordar com Pondé, mas apenas parcialmente. Digo-o porque ele comete o erro gritante de imputar ao cristianismo verdadeiro os paganismos destes falsos cristianismos inventados nas últimas décadas.

Ele mesmo diz que um dos nossos dilemas seria que “as pessoas querem ressuscitar agora”, sem perceber que a dificuldade do “problema” que ele levanta é a solução mesma que ele tenta impugnar.

O cristianismo é uma religião essencialmente escatológica, ou seja, nós cremos que Deus se fez homem para nos redimir do pecado e dar-nos a vida eterna, que não é apenas uma vida quantitativamente interminável, mas que é qualitativamente rica de densidade, porque sua essência está na contemplação direta de Deus, com a consequente produção de um amor incomensuravelmente deleitoso.

Obviamente, a felicidade eterna é aquilo a que está ordenado o coração do homem e, como disse Pondé, este mundo é ruinzinho demais para proporcionar-lha.

Bento XVI, em Spes Salvi, com a sua altíssima fineza intelectual, mostra como a modernidade deslocou a escatologia do além para o aquém, prometendo ao ser humano um paraíso terrestre que, por definição, jamais poderia ser alcançado. Vieram as ideologias e transformaram a esperança cristã em utopia humanista.

Com o século XX, a virada teológica foi impressionantemente bem sucedida: apaixonados por este mundo brega, numa tentativa ainda mais brega de se enturmarem com a turma da vanguarda europeia ou com os guerrilheiros latino-americanos, os teólogos começaram a se encantar com tudo aquilo que de sacro não tem nada.

Foi assim que, ao invés de falar sobre a Trindade Santíssima ou a Divina Encarnação, começaram a discorrer sobre esgoto, reciclagem do lixo, maconha, prosperidade material e cura de perebas, até chegarem ao apogeu de messianizarem personagens como o Lula.

Não era de se estranhar que este cristianismo lançasse a Igreja na pior crise de sua história, visto que nasceu com a única finalidade de desaparecer e levar os seus zumbis consigo para o além tumba.

Fato é que hoje somos assombrados de todos os lados por essas figuras fantasmagóricas e vemos multidões de fieis serem lançados no mais grotesco paganismo. Daí que existam “cristãos” que banalizam a Eucaristia enquanto reverenciam solenemente a Mãe Terra ou as energias dos cristais.

A teologia da libertação ou a teologia da prosperidade, como qualquer outro tipo de teologia liberal, além de estarem confinadas no aquém, são geneticamente sincréticas, diluem a Revelação Divina nos cânones do mais desavergonhado concordismo, e, por isso, são pagãs. Totalmente pagãs.

Enquanto isso, as ideologias modernas conseguem se alastrar pelas sociedades ocidentais justamente porque se valem de conceitos maternalmente forjados pelo cristianismo, tais como o de liberdade e educação para todos, respeito e cuidado pelos mais vulneráveis, amor ao próximo, ética universalmente válida, sacralidade da vida e dos direitos individuais etc. Contudo, agora, trabalham como um câncer, tentando destruir o corpo mesmo do qual se alimentam.

Por isso, não é verdade que o mundo está desinstalando o cristianismo e regressando à “normalidade”. O cristianismo introduziu conceitos e valores que penetraram profundamente no Ocidente. Os próprios cristãos (ou infiltrados?) inventaram um pseudo-cristianismo que se valeu das estruturas eclesiásticas para imobilizar o cristianismo verdadeiro e, por fim, se auto-destruir, mais ou menos como Karl Korsh diz que o marxismo deveria fazer com a filosofia.

O que está se decompondo não é o cristianismo, mas este parasita desgraçado. É verdade que certo paganismo voltará com força nos próximos tempos, mas também é verdade que hoje os cristãos estão muito mais conscientes de quem são do que o estiveram no passado.

Em todo caso, não é a primeira vez na história que os homens da Bíblia passaram por mortes e ressurreições: no dilúvio, os justos foram reduzidos à família de Noé; no Egito, os hebreus foram oprimidos pela escravidão; no exílio da Babilônia, os israelitas foram expatriados de sua terra; na Paixão de Cristo, tudo parecia estar acabado; na queda do Império Romano, os bárbaros pareciam poder destruir a fragilidade da Igreja.

No renascimento e na revolta protestante, o catolicismo parecia estar condenado ao paganismo e a nova religião parecia triunfar; na revolução francesa, a Igreja parecia perder completamente a sua auto-determinação; e, de acordo com o Apocalipse, na grande tribulação, será feita guerra contra os santos e os poderes das trevas parecerão ter chegado ao seu apogeu…

Mas em todas estas circunstâncias, a fé cristã reapareceu mais forte do que antes e sempre será assim até a vinda gloriosa de Jesus Cristo.

Quando todas as esperanças parecem perdidas, de repente, Deus, que é aquele que é, cria tudo novamente e de um modo muito mais alto, porque Ele guia os fios da Divina Providência e tem um propósito na história. Por isso, se estamos num momento de ocaso do cristianismo, para nós, esta é uma excelente notícia: há uma ressurreição nos esperando logo ali.

Entretanto, sei que Pondé não enxerga a história a partir da perspectiva da fé e, portanto, tende a projetar este futuro, em si mesmo contingente, dentro das tendências humanas que ele consegue discernir, as quais, pelo que mostrei, são em si mesmas bastante contraditórias.

Ele termina o seu texto dizendo que Jesus deve imitar Zeus. Mas, brincadeiras à parte, o que Jesus tem a aprender com Zeus? A resposta metafísica é simplesmente: nadica de nada, e isto pelo simples fato de que Zeus não existe.

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