Ao preparar alguns artigos sobre a revolução litúrgica enquanto refletida na modificação da forma e da posição do Santo Altar, descobri um artigo publicado na revista jesuíta America há oito anos atrás. Escrito pelo Padre John F. Baldovin S.J, reflete uma forma mentis (isto é, mentalidade) que é comum a todos os “teólogos” neomodernistas. O que mais me chamou a atenção, porém, é um fragmento praticamente idêntico em essência à atitude vista na recente entrevista concedida por Andrea Grillo. Aqui está o fragmento em questão:
Como o historiador da Igreja Massimo Faggioli frequente e astutamente argumentou, a reforma litúrgica é uma chave interpretativa para todo o Concílio. Uma reversão à posição pré-conciliar do padre na Missa seria um sinal profundo de que os avanços que a Igreja deu no Vaticano II estão em questão. Suspeito que um bom número de pessoas que defendem o argumento ad orientem são a favor de tal reversão. (Ver aqui)
Evidentemente, o Padre Baldovin fala como se a reforma litúrgica não fosse só “uma chave interpretativa para todo o Concílio”, mas também uma espécie de destino irreversível. Esta maneira de se expressar está em plena concordância com as autoridades do Vaticano. É suficiente citar algumas palavras do Cardeal Parolin para que isso fique claro instantaneamente. Aqui está um trecho de uma notícia do site oficial Vatican News:
Respondendo à pergunta: “O que acontecerá com as reformas empreendidas pelo Papa Francisco?” O Cardeal Pietro Parolin insistiu na necessidade de oração e paciência e disse que o discernimento indicará, ao seu ritmo, “como prosseguir e o que institucionalizar”. Embora algumas pessoas possam preocupar-se – ou esperar – reversões, o Secretário de Estado da Santa Sé disse: “Precisamente porque é a ação do Espírito, não pode haver reviravolta”. (Link para a notícia)
Como já afirmei noutros artigos, os reformistas progressistas estão absolutamente convencidos de que é a inspiração do Espírito Santo que os guia. Mesmo que não invoquem necessariamente esta inspiração para si mesmos, creem que o Santo Padre tem um carisma alargado de infalibilidade (de acordo com a famosa tese de Albertus Pighius), que abrange todos os seus pensamentos e discursos – mesmo as entrevistas improvisadas dadas no avião. Perpetuamente inspirado pelo Espírito Santo, ele nunca pode estar errado. É por isso que as reformas propostas pelo Papa Francisco são e devem permanecer irreversíveis. E o que Sua Eminência, Cardeal Pietro Parolin, chama de “reviravolta” não pode acontecer (é claro, para aqueles que pensam assim, um exemplo de “reviravolta” foi a carta apostólica Summorum Pontificum do Papa Bento XVI; sabemos como terminou: irreversível).
Embora eu acredite que a maioria dos leitores estejam familiarizados com as opiniões de Andrea Grillo expressas na sua entrevista concedida ao site Messa in Latino, só mencionarei aqui uma de suas declarações mais radicais e decisivas. Ela expressa, de modo muito mais explícito e radical que o Pe. Baldovin, a atitude crítica para com aqueles que, pelo seu vínculo com a Liturgia Católica Romana, questionam a direção unidimencional estabelecida pelo Concílio e seguida pelo Vaticano:
A ideia de “fidelidade a Roma” deve ser contestada: para ser fiel a Roma é preciso adquirir uma “língua ritual” segundo o que Roma estabeleceu comunitariamente. Não se é fiel se tiver nos pés dois sapatos. A demonstração desta contradição é mérito de Traditionis custodes, que restabelece a única lex orandi vigente para toda a Igreja Católica. Se alguém me disser que é fiel ao Novus Ordo e ao Vetus Ordo ao mesmo tempo, responderei que não entendeu o que significa tradição, dentro da qual reside um legítimo e insuperável progresso, que é irreversível.
Todos aqueles que ainda desejam participar da Liturgia Romana codificada pelos Santos Papas Gregório Magno e Pio V são, para Andrea Grillo (assim como para o Cardeal Parolin), infiéis à evolução litúrgica inspirada pelo Espírito Santo através do Magistério do Igreja durante e depois do Concílio Vaticano II. A partir desta perspectiva, que é partilhada pelo Pe. John F. Baldovin S.J e pelo Papa Francisco, nada nem ninguém pode opor-se a esta evolução. Até mesmo a menor tentativa de argumentar diferentemente é vista por eles com a maior suspeita. Identificado, como vimos, com a manifestação dinâmica do Espírito Santo na história, o progresso é – como diz A. Grillo – “irreversível”. A mesma palavra foi usada pelo próprio Papa Francisco em várias ocasiões. Provavelmente uma das mais significativas foi o encontro de 2017 com um grupo de liturgistas italianos, quando o Santo Padre declarou o seguinte:
Depois deste longo caminho, podemos afirmar com certeza e com autoridade magisterial que a reforma litúrgica é irreversível. (Texto completo aqui)
Nesta perspectiva, intolerante com os dissidentes, só há um caminho para avançar sob a orientação do Espírito Santo: aceitar e refletir sobre as razões da reforma litúrgica. Isso é tudo, nada mais. Nenhuma discussão crítica é possível. Pois qualquer crítico da reforma litúrgica é, de fato, infiel ao Concílio Vaticano II e aos Papas das últimas décadas; ele é infiel ao próprio Espírito Santo. Esta é a convicção firme e profunda deles.
Todas as ações recentes, cristalizadas na carta apostólica Traditionis Custodes (2021), indicam a decisão de seguir esta linha de irreversibilidade da reforma litúrgica, o que necessariamente exclui a existência de uma alternativa no contexto da religião Católica Romana. Mais cedo ou mais tarde, quando aqueles que (por obstinação ou mal-entendido) rejeitam a ideia da reforma litúrgica forem eliminados ou esclarecidos, a harmonia universal de um único rito reinará sem contestação no novo reino (terreno) da fraternidade universal.
Neste contexto, o que particularmente me interessa é o processo de pensamento subjacente daqueles que podem fazer afirmações como esta que conclui a entrevista de A. Grillo:
A tradição não é o passado, mas o futuro. Sendo a Igreja e a fé coisas sérias, não podem ser reduzidas à associação de quem cultiva a nostalgia do passado.
A razão da reserva quanto ao passado manifestada nessas palavras é óbvia. Na verdade, assim como acontece com a aplicação insistente da noção de “irreversibilidade”, transmite algo mais: um apreço especial, por um lado, pelo novo e, por outro, pelo presente e futuro. Somente a partir deles o Bem – não interessa como possa ser – pode vir. É como aqueles anúncios onde o produto mais recente é necessariamente o melhor. Em contraste, do passado só podem surgir obtusidade, atraso, rigidez e, principalmente, o horizonte de restrições que impedem a felicidade presente – como as proibições da Igreja contra as práticas contraceptivas e a usura.
Além disso e sobretudo, o passado é às vezes associado à obstrução da manifestação do Espírito Santo na história, enquanto o presente e principalmente o futuro estão abertos às maiores conquistas da humanidade (incluindo a unidade das religiões). Assim, para Baldovin, Grillo e Papa Francisco (e todos os outros seguidores do “Espírito do Concílio”), a irreversibilidade significa a avaliação positiva do presente e do futuro: o que temos agora é categoricamente melhor, portanto superior, ao que tivemos no passado. É por isso que são absolutamente insensíveis às declarações críticas quanto aos frutos amargos do Concílio e das suas reformas. Tal reconhecimento entraria em contradição com a premissa essencial subjacente às declarações sobre a “irreversibilidade”: o presente e o futuro só podem ser superiores ao passado. Mas para que o que é novo e bom nasça, o que é passado e ultrapassado precisa necessariamente morrer. Bastante claro, não é?
Todos os devotos e pensadores que são fiéis à Tradição Cristã pensam fundamentalmente na direção oposta. Eles assumem o postulado correlacionado com o famoso mysterium iniquitatis proclamado por São Paulo (II Tessalonicenses 2:7). Este postulado afirma que a decadência acompanha irreversivelmente o curso da história. Assim como o homem pós-lapsariano inevitavelmente envelhece e morre, todos os seres e criaturas experimentam um processo de envelhecimento, degradação e morte.
Assim, em vez de perceberem uma evolução, os fiéis à Tradição percebem uma involução manifestada em todos os aspectos: litúrgico, dogmático, moral, político, etc. Na escala de toda a história, é como se retirassem todas as consequências da afirmação de que a vida e o mundo no Éden, antes do pecado original cometido por Adão e Eva, eram muito melhores do que a existência pós-lapsariana. Analogamente, a vida da primeira comunidade cristã, descrita nos Atos dos Apóstolos, foi muito superior às épocas subsequentes, assim como os períodos dos Padres da Igreja e dos Doutores e Reis Medievais foram superiores ao Renascimento e ao mundo Moderno. É claro que não falo de avaliações ideais e absolutas, mas de observações que sempre enfatizam a excelência das origens e das épocas pré-renascentistas – apesar das imperfeições que já existiam – em comparação com o que vem depois.
Aqueles que tiverem essa atitude em relação ao passado também demonstrarão cuidado com aquilo que recebem como herança dos seus antepassados: o rito, o culto e, sobretudo, a fé transmitida pela mediação da Sagrada Tradição. Eles não olham para o futuro, exceto depois de terem aprendido cuidadosamente e respeitosamente tudo o que foi transmitido do passado. Além disso, tendem a valorizar muito mais as tradições herdadas do que as novas: isto pode ser visto até mesmo nos menores gestos e preferências.
Um conhecido meu procurou por anos um breviário monástico beneditino do século XVII para substituir o novo que usava, inclusive economizou dinheiro suficiente para comprar o antigo. Seus conteúdos são quase idênticos. Contudo, o simples fato de rezar com um breviário que traz as marcas de cera das velas dos fiéis católicos que rezaram há três séculos simboliza para o meu amigo um valor invisível de grande valor: a Tradição.
Esta continuidade com as formas da religião cristã do passado esconde algo que um (neo)modernista parece incapaz de compreender. Trata-se dos traços palpáveis da manifestação do mesmo Espírito que anima tanto as orações do meu amigo no presente quanto as dos crentes de três séculos atrás. É uma maneira de discernir a presença de Deus na história na forma daqueles “sinais” – neste caso, um breviário monástico beneditino – que indicam a Sua presença perpétua e discreta. E também representa algo tanto significativo quanto importante, a saber, a prova concreta da adesão ao princípio declarado pelo São Apóstolo Paulo:
“Irmãos, permaneçais firmes; e guardai as tradições que aprendestes, seja por palavra, seja por nossa epístola” ( II Tessalonicenses 2:14).
Fonte: The Remnant