Aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele (Mc 10, 15)
É verdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para a própria perdição (2Pd 3, 16)
Os homens chegam à verdade, através de duas faculdades: a fé e a razão. De ambas as partes, isto é, quer estejamos com a fé, quer com a razão, sempre existe quem ataque à posição católica, que possui esses dons como fundamento de sua crença.
De um lado nos culpam por crer com demasiada simplicidade, de outro, de não crer com suficiente simplicidade.
Os católicos, são demasiadamente ingênuos em matéria de religião. Acreditam porque a Igreja vos manda crer nos dogmas e não porque provaram e experimentaram a verdade que professam, como fazem os homens razoáveis. A razão e o discernimento são dons de Deus, então porque renunciá-las na busca da suprema verdade?
Aceitamos, que a fé tem lugar de direito, mas queremos que a razão a prove e interprete, pois sem isso a fé se reduz à simples e pura tolice.
Tomemos essa palavra de Cristo, como exemplo: “Isto é o meu corpo” (Mc 14,22). Os católicos aceitam essa frase literalmente. À luz da razão, essa interpretação é absurda. Quando Jesus a pronunciou sentado à mesa, porventura não estava presente com seu corpo mortal? Como poderia segurar a si mesmo? Ademais, muitas vezes falou em metáforas, servindo-se de imagens, como exemplo chamou a si mesmo de “porta e caminho”.
Considerando essas palavras a luz da razão, é vidente que estava instituindo apenas um símbolo comemorativo, no qual o pão simbolizaria seu corpo e o vinho seu sangue.
Também dessa maneira devemos analisar a doutrina católica sobre o primado de Pedro e sua autoridade de ligar e desligar. A aceitação destes pontos, demonstra uma fé infantil, não corroborada pela razão; Deus nos forneceu a razão, pois bem, em seu nome, façamos bom uso dela!
Vejamos agora, as acusações opostas: A verdadeira religião é algo muito simples, é a atitude da criança que confia e não pede explicações. Por obra dos católicos, a religião degenerou em teologia. Jesus nunca escreveu uma Suma Teológica, limitou-se a uma narração simples dos fatos, os quais compreendem toda a religião cristã. Por que então, os teólogos católicos pretendem penetrar em regiões que Cristo não revelou.
Voltemos ao exemplo das palavras de Cristo: “Isto é o meu corpo”. Sem dúvida, são palavras misteriosas, mas Cristo não deu explicações, deixando-as na sua profunda e solene simplicidade. Observe como é vasta e complicada a teologia católica: Transubstanciação, Benção do Santíssimo, Congressos Eucarísticos, quantas explicações e devoções foram fundadas sobre este tema.
Os católicos argumentam, deduzem e explicam demais, até ultrapassar e ofuscar o simples esplendor do ato misterioso de Cristo. É melhor amar a Deus que formular doutrinas intelectuais sobre a Trindade Santa.
Somos, mais uma vez, alvos de uma dupla acusação.
As relações da Fé e da Razão e o lugar que cada uma deve ter na atitude do homem para com a verdade, oferecem vastas reflexão.
Consideremos por exemplo as relações que se estabelecem entre fé e a razão, referentes à ciência humana nos aspectos mais comuns.
Coloca-se um cientista a fazer observações sobre uma mosca; este seleciona o inseto e submete-o ao microscópio, observa e anota tudo. Estamos no reino da ciência, no domínio exclusivo da razão; entretanto durante este simples processo, existem vários atos de fé: acreditar que a mosca escolhida é realmente um inseto; confiar que as lentes estejam devidamente bem dispostas; que sua observação é exata, que sua memória não falhará no momento de fazer suas anotações. Todos esses atos de fé, são tão razoáveis que fazem que a razão os justifique, mesmo antes de serem executados. Não obstante, são e continuam sendo, em sua essência, atos de fé.
Assim também acontece quando um rapaz começa o estudo de uma língua estrangeira. A razão o ajuda a fazer atos de fé: aceitando o professor como apto para ensinar e por correta a gramática e as explicações fornecidas. Entretanto sem esses atos de fé, o rapaz não chegaria a prender uma língua estrangeira. Resumindo, não é possível nenhum conhecimento ou progresso de qualquer ramo da ciência humana sem o conhecimento da fé.
O mesmo acontece nos atos comuns da vida individual e social. Não posso descer as escadas na escuridão sem fazer um ato de fé nos degraus.
A sociedade não poderia manter um dia sequer, sua estrutura, caso viesse a faltar confiança recíproca entre as unidades que a compõe. Usamos indiscutivelmente da razão para justificar antes e verificar depois os nossos atos; mas entre esses dois processos, sempre fazemos um ato de fé. Cristóvão Colombo para atravessar o oceano, fez cálculos antes e alcançando a terra valeu-se mais tarde da razão para verificar a veracidade de sua descoberta; mas sem o sublime ato de fé, que houve nesses dois processos, sem aquele átomo de confiança quase temerário, que o fez levantar âncora, o seu cálculo não teria bastado para fazê-lo sair do âmbito da especulação abstrata e a América não teria sido descoberta. Foi a fé, que traduziu em ato a sugestão da razão, efetuou o que a razão apenas poderia vislumbrar.
Passemos agora a considerar a vinda de Cristo sobre a terra. Apresentou-se na qualidade de Mestre divino, descido do céu para operar a Revelação, e pedir aos homens um elevado ato de fé. Solicitava em termos que jamais foram usados, o supremo reconhecimento de sua majestade. Sem um ato inicial, não pode haver nenhum progresso nos conhecimentos divinos. Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus (Mt 18,3). Todas as almas que acolheram esse ensinamento na sua integridade devem, ante de tudo, aceitar o Mestre e sentar aos seus pés. Porém, antes de adiantar esta pretensão, Jesus não deixou de valorizá-la, apresentando suas credenciais, cumprindo as profecias, fazendo milagres e satisfazendo o anseio moral. As obras que faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim (Jo 10, 25).
Antes de pedir aos homens o ato fundamental de fé, o que torna possível e do qual depende o acolhimento da revelação, trabalhou para justifica-lo segundo a razão. Vejam o que faço, são testemunhas de minha vida, têm escutado as minhas palavras e presenciado minhas ações. Então, não é razoável que acolham os meus ensinamentos? Podem, colocar de modo diferente os princípios que estabeleci? Ou explicar o fenômeno de minha vida?
Jesus recorre ao juízo individual e a razão de seus ouvintes. Mas, ao pedir o ato de fé, convidou o juízo e a razão, para cederem seu lugar à Fé. Sabemos a resposta dos discípulos: “Tu és Cristo, o filho de Deus Vivo” (Mt 16,16).
Desde então, inicia-se um novo período. Os discípulos, usando a razão e o juízo individual, ajudados pela graça, chegaram à conclusão de que o ato de fé é o primeiro passo para chegar ao fim. Agora a razão lança-os ao controle da fé, a razão abdicando do que eram seus direitos, se retira para que a fé possa assumir o lugar que lhe compete. Portanto, agora a atividade dos Apóstolos para com o Mestre será radicalmente outra: a razão não desistirá mais das suas asserções; a fé, ajudada e impulsionada pela razão, as aceitará sem mais dificuldades.
Com isso, não cessa o trabalho da razão, apenas muda a sua finalidade. O seu trabalho, de agora em diante, será investigar se Cristo é Deus; aceito pela fé, a razão terá que penetrar, investigar, compreender e assimilar tudo o que Jesus tem revelado através de suas palavras.
Somente a Igreja Católica atua como agiu Cristo e oferece a resposta usando a fé e a razão. É evidente que Jesus, sabendo que sua Revelação deveria permanecer através dos séculos, designasse um meio e uma autoridade para garantir e conservar sua integridade. E como a Igreja Católica é a única que afirma possuir essas prerrogativas, usando argumentos objetivos e coerentes para confirmar esta pretensão, apresenta sua autoridade através da credibilidade de suas ações. Tanto assim, que para valorizar suas credenciais analogicamente, como o fez Cristo, mostra os milagres, as obras, a unidade de doutrina e ensinamentos morais, assim, faz um convite à razão, antes da exigência do ato de fé em sua Divindade.
Apenas a Igreja Católica possui semelhante pretensão, as seitas apóiam-se em livros, pseudo-revelações ou em seus fundadores para estabelecer sua autoridade.
As obras que faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim (Jo 10, 25). Façam amplo uso de vossa razão ao examinarem as credenciais da Igreja Católica. Estudem as profecias, a história, os padres apostólicos; depois, digam-me se não é razoável para a razão, abdicar daquele torno no qual esteve por tanto tempo, cedendo lugar à Fé. Usam a consciência e peçam a Deus que com o auxílio da graça, a razão se incline para a Fé e tome de agora em diante, o lugar que lhe cabe, não sobre o trono, mas sobre degraus que conduzem a ele.
Deverá a razão, então permanecer inerte para sempre? Toda a teologia encarrega-se de responder essa pergunta. Cardeal Newman, depois de se converter ao catolicismo, deixou de ser intelectual? Santo Tomás de Aquino deixou de usar a capacidade mental em seus estudos? Nem por um momento a razão permanece inativa, ao contrário, sua atividade cada vez mais se intensifica.
Certamente não se preocupará mais em examinar se a Igreja é divina, mas se ocupará com incessante esforço em tirar proveito desse fato, colocando em evidência as novas riquezas que lhes são fornecidas para descobrir os mistérios da Revelação; ordenando, refletindo e penetrando nas minúcias da visão da Verdade que brilha diante de seus olhos.
A Razão e a Revelação não podem se contradizer. A Razão tem que admitir sua insuficiência para investigar os mistérios de Deus, a impossibilidade de medir o infinito com o finito, sem nunca abandonar suas posições de fé, por mais difíceis que possam parecer.
Observem, como os atos de Cristo parecem evidentes através dos da Igreja. Somente a Igreja exige de seus filhos um ato de fé, como sendo a única verdadeira, porque sabe que Cristo comunica-se através dela. E como é divina, pede aos homens uma confiança completa, igual a das crianças. De outra forma, fazendo valer sua humanidade, usando a razão humana, produz uma teologia riquíssima.
Depois disso, como não se admirar que o mundo julgue a Igreja excessiva na fé e na razão. A sua fé transborda de sua divindade e sua razão tem origem em sua humanidade; dessa ação combinada deriva um ato de fecunda efusão Divina, uma tão solene demonstração Humana, uma incansável atividade de vencer a capacidade de compreensão do mundo, o qual na realidade teme tanto a fé como a razão.
Somente na Igreja Católica, podem ajoelhar-se unidos, os sábios e os simples, Santo Tomás de Aquino e as crianças, Santo Agostinho e o operário; indivíduos tão diferentes na humanidade e, mesmo assim, unidos na luz divina.
Desse modo a Igreja marchando para a vitória proclama ao mundo: “Primeiro usem a razão para se convencerem da Divindade da Igreja, depois levados por essa mesa razão, auxiliados pela Graça, conseguirão elevar a fé. Novamente usando a razão penetrem nos mistérios que aceitam, como verdade. Assim, pouco a pouco, a verdade se alargará e a doutrina resplandecerá com uma luz sempre mais viva; a fé será interpretada pela razão e a razão sustentará a fé, até o dia em que contemplarão face a face, Aquele que é ao mesmo tempo, o doador da razão e autor da fé”.
Fonte: Capítulo do livro Paradoxos do Catolicismo de Robert Hugh Benson