Escrevo este artigo para os católicos avestruzes, que diante de fatos gritantes e escandalosos, enterram a cabeça na terra para não ver; que, diante da tragédia, montam tortuosamente toda uma narrativa para não enxergar que a desgraça é desgraçada. Tal ocorreu com a promulgação de Traditionis Custodes. Se por um lado muitos acordaram; por outro, muitos tentaram minimizar o que estava claro no mesmo motu proprio: o intento era, sob pretexto de união, marginalizar todo um grupo.
Pois bem, se não estava claro naquela ocasião, temos agora uma resposta às dúvidas que o documento suscitou, de modo que agora está claro, claríssimo: a ordem é marginalizar e suprimir.
Antes, porém, devemos entender este fenômeno de certa covardia em querer ver a realidade. A realidade, por definição, é aquilo como as coisas são independente dos meus gostos e desejos. Realidade: as coisas como são. É fácil defini-la; difícil, percebê-la, visto que quando ela é desagradável, quando ela é muito difícil de ser digerida, tentamos fugir… Então nossa alma cria vários mecanismos para não querer ver o que é possível de ver, os chamados mecanismos de defesa.
Dois são os principais no caso dos avestruzes: negação e racionalização. Negação é quando o cidadão vê algo desagradável e, simplesmente, decide que não viu o que viu, que não sabe o que sabe, faz-se de bobo, de desentendido. Se, por exemplo, o Papa Francisco mente na Carta que acompanhou Traditionis Custodes ao dizer que a intenção de Bento XVI com Summorum Pontificum era somente fazer um movimento para regularizar a situação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que se acredite na mentira, mesmo sabendo que é, de fato, mentira. Ou ainda algo pior: dizer no motu proprio, logo no seu artigo primeiro, o mais essencial e que dará sentido a todos os outros, um absurdo teológico, a saber, que o Novus Ordo é a única lex orandi na Igreja Ocidental. Absurdo gritante, mas é mais fácil negar que o absurdo seja absurdo, e fingir que se trata de um artigo legítimo. Equivaleria dizer que só as laranjeiras são árvores, todo o resto, está deixando de ser. É um decreto contra a realidade, mas o que mais tem é decreto de bispo proibindo a Missa Tridentina com base neste absurdo.
O outro mecanismo para driblar a realidade é a racionalização: cria-se uma narrativa para a realidade ser sobrepujada. É uma espécie de arte do sofisma. Ora, qualquer um com bom senso e um pouco de noção lógica poderia facilmente ver que Traditionis Custodes visava marginalizar os fiéis e sacerdotes de Missa Tridentina; o que mais teve, porém, foram católicos dizendo que o Papa não estava perseguindo o rito, mas apenas penalizando o abuso que os participantes de Missa Tridentina estavam fazendo da concessão dada por Bento XVI, sobretudo em sua negação do Concílio Vaticano II.
Este pretexto falta ao bom senso, pois os participantes de Missa Tridentina são minoria da minoria na Igreja. E dos que participam de Missa Tridentina e estudam, ou melhor, possuem capacidade intelectual para estudar sobre a Crise da Igreja, assunto dificílimo, são ainda outra minoria. Ademais, há o princípio de que pelos frutos conhecereis: mais vocações religiosas despertam nos ambientes tridentinos, e os fiéis guardam em seu coração uma teologia mais ortodoxa. Quanto ao Concílio Vaticano II, foi um carteiraço do Papa. Seus antecessores abriram canais de diálogo sobre o tema; mas o Papa atual, de repente, diz que não cabe nenhuma discussão. Ora, que o CV II tenha, no mínimo, ambiguidades, é evidente. Que estas precisam ser esclarecidas é a consequência lógica desta percepção.
Aceitaram também esta pirueta justificatória do Papa: ele estaria repetindo o que tinha feito seu antecessor São Pio V. Outro absurdo também gritante, pois o Papa Francisco fez o contrário. São Pio V ab-rogou ritos com menos de 200 anos e canonizou a sacralidade, a ortodoxia e a Tradição no rito que chamamos de Missa Tridentina (mas que não veio de Trento, senão que de um desenvolvimento orgânico de séculos. Trento somente infalabilizou como lex orandi por excelência da Igreja, atestando sua ortodoxia). Ora, se o Papa Francisco estivesse repetindo a São Pio V, teria promovido a Missa Tridentina em detrimento da Missa de Paulo VI.
Tampouco faz sentido a intenção de unidade declarada na Carta. Que unidade é esta que marginaliza? Unidade não é sinônimo de uniformidade. Marginalizar e perseguir sob pretexto de unidade só faz sentido quando há um elemento cancerígeno que precisa ser expulso do corpo para que este recupere a saúde e continue vivo: deve ser um elemento alheio e nocivo ao sistema. Mas como poderia serem os católicos tradicionais os culpados pela crise de fé na Igreja e na sociedade, se são apenas uma minoria sem qualquer poder ou influência na hierarquia da Igreja?
Novamente percebemos que o texto não condiz com a realidade. Mas o que faz a racionalização? Toma o texto pela realidade. Vale tudo para não assentir à realidade, isto é, as coisas como são.
Freud viu e bem descreveu os mecanismos chamados de defesa. Contudo, trata-se de defesa do quê? Do ego. Em linguagem católica: do orgulho. Freud bem notou também que tais mecanismos são causadores de neuroses. Boa percepção junto com uma péssima filosofia fizeram com que a teoria freudiana desenhasse um aparelho psíquico incapaz de lidar com tais coisas. Para Freud, diante da neurose, deveria haver a transferência: trazer para o consciente o complexo que está no inconsciente e, após isso, fazer uma espécie de desabafo, para aliviar a tensão psíquica.
O detalhe que Freud esquece é que a transferência como cura para a neurose de nada adiantará se não houver a humildade, ou seja: eu preciso aceitar a verdade, isto é, a realidade. Não pode ser apenas uma descarga emotiva e sentimental. É preciso trazer para o consciente, ou seja, ver as coisas como são, não negar e nem distorcer a realidade, para que se possa lidar adequadamente com a realidade, sobretudo moralmente.
Para Freud, toda repressão é causa de neurose. Para o católico toda repressão contra a verdade, ou seja, o acolhimento à mentira, é que causa neurose. Justamente porque se está indo contra a realidade.
Se eu reprimir por “mecanismo de negação” uma maledicência contra o próximo, não terei neurose, pois a mentira não tem direito à existência. Porém, se eu teimar em não enxergar a mentira onde está a mentira, aí terei neurose, pois a todo momento a verdade aparecerá na minha frente e a todo momento terei que negá-la.
Não por acaso foi Allers, psicólogo católico, e não Freud, psicólogo ateu, quem matou a charada das neuroses: no fundo, toda neurose é uma mentira que foi aceita como verdade. Por isso a cura não é a transferência, mas a aceitação da verdade: conhecereis a verdade e ela vos libertará! Por isso o remédio não é a transferência, mas a humildade, ou seja, o amor à verdade e a prática do bem, uma vida moralmente reta.
Vida moralmente reta em amor à verdade: tudo o que a psicanálise freudiana despreza, a qual ironicamente cria toda uma teoria, usando de incontáveis racionalizações, para justificar o injustificável, sobretudo, os pecados sexuais.
Por isso não adianta querer curar a neurose geradora da Crise da Igreja tomando consciência da Missa Tridentina e transferindo-a ao gueto. Isso não gerará mais unidade, senão mais divisão, pois, por um lado, a hierarquia neurótica ficará mais neurótica, pois estará indo contra a legitimidade da Missa Tridentina, negligenciando a realidade teológica da Missa de Sempre e aumentando a tendência ao ódio e à perseguição; por outro, quem está consciente da sacralidade e legitimidade da Missa Tridentina, em respeito à realidade, por amor à verdade, buscará resistir, aumentando seu amor pelo sagrado e a fortaleza da fé.
Em resumo, a respeito dos avestruzes, quando a realidade é difícil ou a verdade cobra um preço alto para sua obediência, a covardia convida a negá-la ou a criar um mundo para não enxergá-la ou raciocínios tortos para distorcer a compreensão e justificar a falta de coragem para agir como é devido. É como o marido que flagra a esposa em adultério em pleno sofá da sala e resolve o problema trocando o sofá.
Explicado o porquê de muitos resistirem em ver o que está claro, vamos ao problema da guerra litúrgica promovida pelo Papa Francisco. A pergunta que deve ser feita é: por que o Papa está perseguindo a Missa Tridentina?
Como dito anteriormente, o estudo da atual crise da Igreja é dificílimo; exige vários tipos de conhecimento (teológico de várias matérias, psicológico, sociológico, histórico, etc.) e está cheio de nuances e sutilezas. Porém, de modo geral, paira sobre o chamado espírito do Concílio Vaticano II duas visões de Igreja. Uma é a visão Tradicional; outra, a modernista.
A visão tradicional compreende a Igreja como uma instituição divina que tem como missão guardar o depósito da fé: verdades dogmáticas dadas pelo próprio Deus que são importantíssima para a salvação das almas, ou seja, para que depois desta vida terrena, as almas possam ir para o céu. Como são ensinamentos divinos, trata-se de uma doutrina tanto infalível quanto imutável. Afinal, ao contrário do que pensam os malditos racionalistas, Deus não pode mentir, nem se enganar.
Já a visão modernista comporta várias ramificações heréticas, dentre as quais, a mais perniciosa e sedutora é o humanismo. Nesta linha, os dogmas são mutáveis: o que convinha ao passado, não convém ao presente. A história ou o contexto histórico mudam as verdades. Confundindo avanço do tempo histórico com evolução, esta mente chama de evolução do dogma o que é simplesmente relativismo e negação da verdade. Consequentemente, a missão da Igreja não pode ser outra senão o adaptar-se ao tempo a fim de melhor servir aos interesses do homem. É por isso que o Arcebispo Roche, prefeito da Congregação para o Culto Divino e o principal braço para a perseguição da Missa Tridentina, pôde dizer sem receios em entrevista para uma televisão da suíça:
“O que foi produzido em 1579 era totalmente apropriado para o tempo. O que foi produzido nesta época também está totalmente apropriado para este tempo”.
O trecho é curto, mas diz muito. Diz muita coisa sobre a mentalidade em torno da Traditionis Custodes. É uma declaração que ilustra muito bem o que estamos tentando expressar. Há um equívoco do Arcebispo: a Missa Tridentina, ao contrário da de Paulo VI, não foi produzida, o que ocorreu no Concílio de Trento (por isso ele cita a data de 1579) foi a formalização e canonização de um rito que foi se desenvolvendo organicamente ao longo dos séculos. Não foi, portanto, um rito fabricado, de modo que Monsenhor Roche está simplesmente julgando a Missa Tridentina com a medida da Missa de Paulo VI (esta sim controversamente fabricada).
Mentalidade Tradicional: os dogmas não mudam. Céus e terras passarão, mas as Palavras de Deus não passarão (cf. Mt 24, 35). Ou seja a Missa Tridentina – também chamada Missa de Sempre por remontar seu desenvolvimento desde os Apóstolos – foi formalizada em Trento como a síntese litúrgica da Tradição Ocidental da Igreja. Tradição = Entrega. Aquilo que foi entregue pelo próprio Deus e, portanto, deve ser preservada.
Bento XVI tinha certa consciência disso. Por isso escreveu – refutando por antecipação a Traditionis Custodes – algo que alegra o bom senso e a fé católica:
“Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar”.
Já a mentalidade modernista pensará diferente e opostamente: “Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, perde com o passar do tempo a sua sacralidade, e pode ser de improviso totalmente proibido para que as novidades gozem de maior prestígio. Faz-nos bem promover as novidades que surgem e crescem na sociedade, sempre buscando maior adaptação aos tempos atuais, dando ao velho o justo encarceramento (custodes)”.
Percebemos nisso tudo o espírito humanista: o homem, os desejos humanos no tempo histórico, é a régua para medir e se adaptar. E então aprendemos a essência do humanismo: a vontade do homem no lugar da Vontade de Deus.
Apliquemos isso à questão da Liturgia da Igreja.
A mente tradicional, ou seja, católica, busca na Missa um culto agradável a Deus. A mente modernista, ao contrário, vê nos caprichos do homem os desejos de Deus. Os modernistas, negando o dogma do pecado original (pois o dogma muda, e a história já absorveu o liberalismo, então na mente deles é uma doutrina ultrapassada), creem na evolução sempre constante da humanidade; não há regressão. Portanto, se o homem e a sociedade sempre evoluem para melhor, a Igreja precisa acompanhar tal evolução, acolhendo as “novas verdades”, que na realidade, são velhas heresias com roupagem nova. “O que era apropriado em certa época, não é mais hoje, logo temos que mudar substancialmente; de uma coisa, tornar-se outra”.
Não é por acaso que o Padre Castellani enxerga no humanismo – o homem no lugar de Deus, ou melhor, a vontade do homem no lugar da Vontade de Deus, e na maioria dos casos sob aparência de amor a Deus – a heresia suprema: será a heresia do Anticristo.
O Anticristo será um poder político e a apostasia religiosa fará grande parte da Igreja trocar a religião de Deus pela religião do homem (humanismo junto com o farisaísmo). Não é que o Anticristo será ateu, pelo contrário: poderá até usar o nome de Deus em vão (pois o falso profeta será o seu braço religioso) para agradar os caprichos do homem decaído. O verdadeiro Deus, que é Jesus Cristo, deixará de ser o centro.
Uma liturgia centrada em Jesus Cristo, sem ambiguidade, e guardiã confiável – atestou infalivelmente São Pio V – da lex orandi, e portanto das verdades da fé (a regra da oração determina a regra da fé) certamente prejudica os anseios do Anticristo, pois a Missa Tridentina é, ao mesmo tempo, a favor do homem, porque centrada em Deus, e tudo concorre para o bem dos Amigos Deus (Cf. Rm 8, 28), e anti-humanista, porque Deus rejeita a soberba humana e dá graças aos humildes (Cf. Tg 4,6).
A crença de que estamos em constante evolução para melhor é, ao fim e ao cabo, uma racionalização para colocar a vontade do homem (seus caprichos soberbos) no lugar da Vontade imutável de Deus. É um modo de negligenciar a lei eterna e natural, chamando de rígidos e rigoristas os que as defendem, em favor do relativismo permissivo aos desejos humanos imorais.
Estamos em tempos neuróticos, pois estamos em tempos de pós-verdades, onde vale mais a narrativa (racionalização) do que a realidade. Para agradar o homem, vale perseguir os que querem ser fiéis à Tradição, e a Missa Tridentina é a expressão mais visível desta Tradição. O núcleo da guerra litúrgica é este: o espírito modernista, com uma religião humanista e farisaica, querendo oprimir a Traditionis.
E Custodes significando carcereiro em vez de guardião. Ambiguidades e línguas bifurcadas, características do espírito diabólico.
Começas a entender, caro leitor, por que se escandalizam com uma mulher que vai de véu na Igreja, mas não com a que vai de mini saia e decote?
Longe de amenizar e resolver a Crise da Igreja, longe de curar a neurose pós-conciliar, Traditionis Custodes é antes o sinal de aumento desta Crise e da neurose que aflige a hierarquia eclesiástica.
Aqueles que têm coragem para ver, que vejam e resistam. Os que não têm, que finjam que tudo está bem quando tudo está mal; que veja primavera onde há apostasia; que veja Deus onde está o homem; que veja humildade onde está a soberba; que vejam obediência onde está injustiça; que vejam, enfim, o Espírito Santo onde está a mentira e a dissimulação.
Claro que nisso tudo estão as marcas do demônio. Ora, a mentira gera neurose. Sendo o diabo o pai da mentira, descobrimos então quem é o grande promulgador das mentalidades neuróticas. O humanismo é a doença, Jesus Cristo e a Tradição da Igreja são a cura.