O músico e arteterapeuta Lincoln Haas Hein faz uma palestra sobre a relação dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola com a Vocação Pessoal, bem como a importância da mistagogia no processo. O vídeo da palestra está logo após a transcrição da mesma.
Por questão de problema de comunicação e também de um pouco da Providência, foram dois dias para preparar essa palestra sobre os exercícios espirituais de Santo Inácio. Para este fim, foi utilizado um autor jesuíta que também influenciou em trechos importantes na escrita do livro “Coração Orante”: Padre Herbert Alphonso.
A idéia do padre Herbert em relação aos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola gira em torno da vocação pessoal. Muitas pessoas fazem os exercícios, mas no fim parece que não faz sentido para elas, porque imaginam que servem para definir o estado de vida – o que é uma possibilidade – ou, tendo já um estado de vida, servem para ver quais questões precisam de uma ajeitada para renovar o propósito de viver bem o estado de vida. Contudo, para o padre Alphonso não faz sentido tal perspectiva, pois se for para renovar alguns propósitos, levando em consideração esta ou aquela virtude, o exercício de um dia já estaria bom, não sendo necessário 30 dias de oração intensa, meditações e reflexões, direção espiritual contínua para discernir cada movimento interior.
Ele começa comentando o trecho inicial de Santo Inácio a respeito dos Exercícios Espirituais:
Por esse nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente e de outras operações espirituais conforme adiante se dirá, porque assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo modo de preparar e dispor a alma para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a Vontade Divina na disposição da sua vida para a salvação da sua alma se chamam exercícios espirituais.
Em negrito, está a definição fundamental dos exercícios espirituais de Santo Inácio. Em especial, a disposição da sua vida no trecho é a preocupação central. O que é a disposição da vida? É o arranjo, é a ordem, é a totalidade, como as coisas são coordenadas pela Divina Providência. Para esta disposição de vida, o padre Alphoso dá o nome de vocação pessoal.
Os exercícios espirituais servem para você identificar a vontade última de Deus sobre a sua vida. É aquele modo único e irrepetível que Deus lhe pede para você ser.
Aqui está algo interessante: a idéia de ser x função. No ser, trata-se daquilo que Deus quer que você seja. Já as funções, por exemplo, pai, mãe, padre… são tarefas que estão radicadas no ser. Todas as funções estão radicadas no ser, mas há algumas funções que podem estar mais entranhadas na alma, como caráter (marca). No caso da vocação pessoal, está presente o caráter de batizado: a maneira com que Deus quer que você reproduza a Cristo. Cristo contém em si a plenitude de toda santidade e todos os santos participam dessa plenitude, mas cada um a seu modo.
Nas Escrituras está escrito: Deus conhece as estrelas e cada uma tem o seu nome. No Apocalipse: Ao vencedor darei um nome novo. A idéia da vocação pessoal está relacionada com este nome. Na Bíblia, quando Deus dá uma missão, geralmente muda o nome da pessoa (Abrão virou Abraão, o pai de muitos povos). Jesus tem um nome específico que está relacionado com a missão dele, o Salvador.
Santa Elisabete da Trindade foi uma carmelita, morreu em 1906 com 26 anos. Nela a percepção desta vocação pessoal foi fulminante, desde muito cedo, ficando muito claro no fim da vida este tema do nome novo. Elisabete, o nome que recebeu no batismo, significa Casa de Deus; quando tinha seus 12, 13, 14 anos, começou a ter uma vida de oração e piedade mais intensa após a Primeira Comunhão, buscando combater os vícios dominantes (seu temperamento era colérico). Durante retiros que fazia, foi recebendo certas graças que só conseguiu entender quando leu O Castelo Interior de Santa Teresa d’Ávila. Em relação a estas graças, disse ao Diretor Espiritual que se sentia habitada, que era algo estranho. O Padre, que era dominicano e versado em teologia mística, disse que era isso mesmo, que a Santíssima Trindade habita na alma de todo batizado para lá receber o louvor que lhe é devido. Ao ouvir este ensinamento, ela entrou imediatamente em recolhimento infuso. À medida que ia progredindo em virtude, convertia sempre este olhar para dentro para encontrar Deus no recolhimento interior. Após muitas dificuldades, ingressou ao Carmelo. Antes disso, porém, sua mãe se esforçou para que casasse. Levava-a aos bailes e, todavia, os pretendentes, ao vê-la, notavam que seu olhar não estava neste mundo; seu olhar estava “perdido” em Deus enquanto dançava valsa com eles. Já no Carmelo, desenvolveu uma doença raríssima, chamada síndrome de Addison, que ataca as glândulas suprarrenais. É uma doença terrível, tão terrível que seu Diretor Espiritual chegou a dizer que ela parecia a imagem viva do Cristo crucificado quando estava nos últimos estágios da doença: vomitava tudo que comia, dores o tempo inteiro, etc.
Durante tais padecimentos, e mesmo antes, ela lia as Cartas de São Paulo, e para si tomou duas passagens fundamentais: fomos predestinados por Deus para sermos santos em sua presença no amor. Observa-se aqui o retorno da idéia da Casa de Deus que ela já vivia antes, de recolher-se em si mesma para se pôr na presença de Deus e então ser santa no amor. Há ainda um outro trecho: fomos predestinados por um desígnio de sua Vontade para sermos o louvor de sua Glória.
Quando ela leu isso, percebeu que era justamente o que buscava: viver para o louvor de sua Glória. No momento de sua doença, diante da piora, ela achou que iria morrer. As irmãs rezaram muito para que não morresse. Não só não morreu, como até começou a apresentar melhoras. Diante disse ela pensou: eu quase morri. Então, na verdade, era para eu ter morrido, mas não morri. Se eu não morri, é para que agora eu só viva para o louvor e glória da Santíssima Trindade. Então, a partir daquele momento, ela buscou viver cada instante procurando ser o louvor e glória da Santíssima Trindade.
Um trecho de Santa Elisabete da Trindade que está no livro Coração Orante: um ensaio mistagógico mostra de modo claro como foi para ela esta questão da vocação pessoal:
Parece-me que a atitude da Virgem, durante os meses que se passaram entre a Anunciação e o Natal, é o modelo das almas interiores, das pessoas por Deus escolhidas para viver ‘no interior’, no fundo do abismo sem fundo. Com que paz e recolhimento Maria se submetia e se prestava a tudo! Como as coisas mais banais eram divinizadas por ela – pois em tudo a Virgem permanecia a adoradora do dom de Deus! – Isto não a impedia de doar-se exteriormente quando se tratava de praticar a caridade.
‘Nele, predestinados pela decisão daquele que tudo opera segundo o conselho de sua vontade, fomos feitos sua herança para sermos o louvor de sua glória’. É São Paulo quem assim fala, São Paulo instruído pelo próprio Deus. Como realizar este grande sonho do coração de Deus, este seu desejo imutável sobre nossas almas? Enfim, como correspondermos à nossa vocação, e tornar-nos perfeitos Louvores de Glória da Santíssima Trindade?
No céu, cada alma é um louvor de glória ao Pai, ao Verbo, ao Espírito Santo, porque cada alma está fixada no puro amor e ‘não vive mais da própria vida, mas sim da vida de Deus’. ‘Então ela o conhece, diz São Paulo, como é por ele conhecida’. Em outros termos: ‘seu entendimento é o entendimento de Deus, sua vontade é a vontade de Deus, seu amor é o próprio Amor de Deus. É na realidade o Espírito de amor e de força que transforma a alma, porque ele, tendo-lhe sido dado para suprir o que lhe falta – como diz ainda São Paulo -, opera nela esta grandiosa transformação’. São João da Cruz afirma que falta pouco para que a alma, entregue ao amor, não se eleve, pela virtude e dom do Espírito Santo, e ainda nesta vida, ao grau que acabamos de falar! Eis o que eu chamo um perfeito louvor de glória!
– Um louvor de glória é uma alma que permanece em Deus, que o ama com amor puro e desinteressado sem procurar consolações; que o ama acima de todos os seus dons, e o amaria mesmo se nada dele tivesse recebido, e que deseja o bem ao Objeto amado. Ora, como desejar e querer efetivamente algum bem a Deus, senão pelo cumprimento de sua vontade, visto como essa vontade tudo ordena para sua maior glória? Por conseguinte, esta alma deve entregar-se a ele plena e apaixonadamente, até não poder querer outra coisa senão o que Deus quer.
– Um louvor de glória é uma alma de silêncio que se mantém como uma lira sob o toque misterioso do Espírito Santo, que nela tange harmonias divinas. Sabe que o sofrimento é uma corda que produz sons ainda mais belos, e por isso gosta de vê-la no seu instrumento, porque assim agradará mais deliciosamente o Coração de Deus.
– Um louvor de glória é uma alma que fita Deus na fé e na simplicidade; é um refletor de tudo o que ele é. É como um abismo insondável onde ele pode derramar-se, expandir-se. É ainda como um cristal onde ele pode refletir-se e contemplar as próprias perfeições e esplendor. Uma alma que permite assim o Ser Divino satisfazer nela a necessidade de comunicar tudo o que ele é e tudo o que tem, é realmente o louvor de glória de todos os seus dons.
– Enfim, um louvor de glória é um ser sempre em ação de graças. Cada um de seus atos, movimentos e pensamentos, cada uma de suas aspirações, ao mesmo tempo que enraízam mais profundamente no amor, são como um eco do Sanctus Eterno.
– No céu da glória, os bem-aventurados proclamam ‘dia e noite sem parar: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus Todo Poderoso… E prostrando-se, adoram aquele que vive pelos séculos dos séculos.
No céu de sua alma, o louvor de glória começa já o seu ofício da eternidade. Seu cântico é ininterrupto porque está sob a ação do Espírito Santo, que opera tudo nela. E mesmo sem ter sempre consciência disto – porque a fraqueza humana não lhe permite fixar-se em Deus sem distrações -, ela canta sempre, adora constantemente e transforma-se, por assim dizer, em louvor, em amor apaixonado pela glória da Santíssima Trindade (…) Um dia o véu caíra e seremos introduzidos nos átrios eternos, onde cantaremos no seio do Amor Infinito, e Deus nos dará o ‘nome novo prometido ao vencedor’. Qual será ele?… Laudate et gloria (pp. 106-108)
Outra autora interessante para entender a questão da vocação pessoal é Santa Edith Stein – Santa Teresa Benedita da Cruz. Ela, a partir de São João da Cruz, procura discernir algumas questões de psicologia, ou seja, de interioridade da alma, e como que a alma, a partir do centro último de si mesma, pode agir com plena liberdade interior.
O último capítulo de Coração Orante é A oração do Coração na pessoalidade de cada um: Coração, memória, o centro pessoal e sua relação com a vocação fundamental. Nele também há uma perspectiva mistagógica e psicológica sobre a questão da alma com a vocação pessoal.
Com conhecimento anterior de Santa Elisabete, Santa Edith Stein e o conhecimento de psicologia já possuído, foi possível compreender a idéia fundamental de Padre Herbert Alphonso, a de que os Exercícios Espirituais foram feitos fundamentalmente para a perceber a vocação pessoal e correspondê-la plenamente. Em síntese: entregar-se à vontade divina realmente, sem nenhum tipo de reserva.
Através dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, é feito todo um itinerário. É como se fosse um super intensivão, mas o que se vive neles é uma caminhada que todo cristão faz em sua vida. Este é um itinerário mistagógico, ou seja, é ser guiado até um mistério. É semelhante a pedagogia, que é dirigir as crianças em sua formação. Assim, mistagogia é dirigir a pessoa para o encontro com o mistério.
Como todo itinerário mistagógico, os Exercícios são compostos por etapas. Estas etapas passam pela via purgativa, pela via iluminativa e pela via unitiva. Não é todo mundo que chegará à via unitiva após os Exercícios, mas Santo Inácio estruturou de tal maneira este intensivo de modo que a pessoa pudesse se preparar para receber estas graças caso entrasse na via unitiva.
Santo Inácio explica que os exercícios da primeira semana são da via purgativa, que é a detestação e o afastamento do pecado, tal é o enfoque das meditações. Os exercícios da segunda semana são focados na vida de Cristo, e são voltados à via iluminativa. A partir da segunda semana, há dois exercícios especiais no meio da terceira e quarta semana que são voltados para a eleição. Esta eleição não significa escolher uma coisa qualquer, mas sim escolher a vontade divina sobre você. Da via purgativa para a via iluminativa, dentro dos Exercícios de Santo Inácio, trata-se do itinerário para que se descubra a vontade divina sobre você e, a partir disso, fazer a eleição.
Dentro desta eleição, existem as várias vocações e os vários graus. Um exemplo bem interessante dado pelo autor é o seguinte:
Se tomamos como exemplo um grupo de 10 sacerdotes jesuítas. Cada um deles têm os quatro níveis de vocação (hierárquico). Todo sacerdote jesuíta tem a vocação cristã (o chamado de Deus para que seja cristão), a vocação sacerdotal (todo sacerdote jesuíta é padre), a vocação religiosa (porque todo padre jesuíta também é religioso, pois faz os votos de castidade, pobreza e obediência) e é jesuíta. São, portanto, quatro vocações que estão ordenadas hierarquicamente.
A vocação pessoal de cada um não é uma quinta que estaria anexada às quatro, mas é o espírito que anima cada um daqueles níveis de vocação. Cada um (dos 10 sacerdotes jesuítas do exemplo) tem uma maneira própria de ser cristão, sacerdote, religioso e jesuíta.
A idéia da vocação pessoal é a de um espírito próprio. Por exemplo, na Bíblia diz que São João Batista veio no espírito de Elias, ou quando se fala espírito do carmelo, espírito dos carismas de cada congregação religiosa. Esses são espíritos dentro de uma vocação mais genérica, mas existe um espírito que é particular, que é o teu espírito.
Trata-se de como este espírito particular deve se configurar a Cristo; como deve agir, ser estruturado, para que se configure a Cristo, a fim de que se torne logos. Em grego, logos significa palavra, sentido, significado e muitas outras coisas. Assim, a vocação pessoal de cada um é essa configuração específica que Deus realiza na pessoa, um chamado específico para se configurar ao Logos, que é Cristo.
Em Coração Orante, há um trecho em que se fala sobre os nomes, porque é fundamental na oração do coração a glória de Deus e o louvor do nome. Nome de quem? Deus tem vários nomes que são dirigidos só para ele. Por exemplo: o altíssimo, Deus, etc. O interessante sobre os nomes divinos (pseudo Dionísio Areopagita tem um livro só sobre isso) é que toda criatura, sendo participante de Deus, pois recebe dele o dom da vida e da existência, tem algo que mostra de Deus. Então cada coisa, desde o grão de areia até o mais elevado serafim, tem um nome que expressa sua realidade essencial.
Se a filosofia nominalista prega que o nome é algo genérico que se aplica a um conjunto de coisas, temos o oposto disso na doutrina bíblica. Nela, o nome serve para falar da essência das coisas, ou seja, os nomes não são em vão. Eles servem para apontar o sentido, mostrando o significado da essência: o que aquilo é realmente. Sendo assim, cada coisa tem um nome, porque Deus quer que elas tenham um nome.
Ao homem, Deus deu a possibilidade de nomear as coisas a partir do seu conhecimento sobre elas. Entretanto, ao mesmo tempo, cada coisa tem um nome único que só Deus conhece, porque só Ele conhece plenamente as essências: por que foram criadas daquele jeito e o que elas são plenamente. É por isso que Santo Tomás disse que filósofo algum sequer esgotou a essência de uma mosca.
Portanto, a vocação pessoal é, ao fim, um mistério muito pessoal que só se consegue compreender fazendo um itinerário de discernimento sobre toda sua existência. Daí dos Exercícios Espirituais serem um caminho mistagógico que passa pela purificação das paixões (via purgativa), depois, aos poucos, a partir da purificação, ser iluminado por Deus para o discernimento de ver as consolações e desolações, os momentos de luz e dificuldades no meio dos exercícios para que, por este meio, consiga descobrir como que Deus te encaminhou até então em sua vida, como que sua existência tem seguido ou não a graça… Por isso que é preciso ter contrição das faltas, dos pecados, afastar-se daquilo que foi contra o chamado divino de buscar a Deus, etc.
As luzes vão indicando, pois, os caminhos da vocação pessoal para que se possa chegar ao ponto da via unitiva. Tal via consiste em desejar somente a vontade de Deus e mais nada. O termo que Santo Inácio de Loyola tem para a realidade da via unitiva é a santa indiferença.
Para quem está na via unitiva, pouco importa qualquer coisa. Estou doente? Bendito seja Deus! Estou com saúde? Bendito seja Deus! Estou com dor no pé? Bendito seja Deus! Não importa o que aconteça com o santo, ele possui a santa indiferença, porque está totalmente voltado para Deus.
No livro Coração Orante há um trecho que trata especificamente da oração de bênção. São Francisco de Sales, por exemplo, em seu Tratado do Amor de Deus, também fala a respeito disso.
Qual a vocação pessoal de Santo Inácio conforme comentada pelo padre Alphonso? É um lema que se fala o tempo inteiro: para maior glória de Deus. É parecido com o louvor e glória de Santa Elisabete, mas há um contexto específico dele, que é o para maior glória de Deus. Então, em Santo Inácio, tudo é para maior glória de Deus. Todos os exercícios espirituais são para maior glória de Deus. Todos os esforços para encontrar a vocação pessoal foi sempre para maior glória de Deus… Enfim, este foi o critério de discernimento para Santo Inácio: para maior glória de Deus. Se é para maior glória de Deus, então presta. Se não, não presta.
A vocação pessoal para um cristão tem um aspecto interessante. Um cristão, diante de dois bens, não pode escolher qualquer um. Ele precisa escolher o bem que está relacionado a sua vocação pessoal, ou seja, o bem que mostra qual que é a vontade divina para ele.
São Francisco de Sales fala sobre esse aspecto quando trata a respeito do estado de vida. Com efeito, o estado de vida é um dos aspectos da vocação pessoal, é uma maneira que te ajuda a viver a vocação pessoal. Por exemplo, não vai dar certo se um religioso que viva no mosteiro querer começar a agir como um pai de família, não será para a maior glória de Deus. A recíproca também é verdadeira, isto é, um casado querer agir como um religioso.
O pé é o pé, a mão é a mão, o coração é o coração. São muitos os membros, mas um só é o corpo em Cristo. Ou seja, cada um tem uma vocação pessoal, isto é, um lugar no corpo místico de Cristo, e precisamos descobrir isso. Daí a importância do itinerário mistagógico dos Exercícios Espirituais para descobri-lo, para descobrir o nome novo para o louvor divino.
Exame de consciência e exame particular
Para muita gente, o exame de consciência torna-se algo rotineiro e depois de um tempo pode até virar algo sem sentido. Às vezes é bom fazer um exame de consciência geral para uma confissão geral. Há aquele questionário de listagem de pecados conforme o mandamento que se infrinja e, conscientes deles, busque-se a confissão. Todavia, segundo padre Alphonso, o fundamental no exame de consciência é se colocar em relação à vocação pessoal. No momento do exame de consciência perguntar: eu agi conforme o chamado de Deus ou não? De que maneira eu agi ou não agi? Ou seja, acrescenta-se ao exame de consciência este exame particular.
Com o exame de consciência consegue-se ver no geral se as várias ações estão voltadas para Deus e, de modo particular, se as ações estão de acordo com a vocação pessoal.
Padre Alphoso dá o exemplo de Santo Inácio de Loyola. Já vimos que sua vocação pessoal é o para maior glória de Deus. Segundo dizem, os últimos 20 e tantos anos de vida de Santo Inácio o exame particular dele era somente contra a vanglória.
Isso pode soar estranho, pois como alguém focado no para maior glória de Deus se preocupar tanto com a vanglória, isto é, com a glória de si mesmo? Mas é justamente nesse contraste que está outro aspecto da vocação pessoal. Ora, se a vocação pessoal é aquele chamado único e particular para seguir a vontade de Deus para ti, então o demônio irá tentá-lo no sentido oposto à vocação pessoal.
Em santos que têm autobiografia, é possível perceber mais claramente suas vocações, porque, ao citar trechos da escritura, ficará destacado o trecho que para aquele santo foi O Trecho. É como se o santo, ao encontrar aquele trecho específico, não precisou de mais nada. A releitura daquele trecho sempre foi fonte de luzes novas para ele.
Toda vocação culmina na glória de Deus, mas cada uma tem sua nuance. Por exemplo, a vocação de Santa Teresinha era o amor misericordioso. Ela vê Deus como amor misericordioso e se oferece como vítima a esse amor: a pequena via da infância espiritual. Para Santa Teresinha, O Trecho foi de Isaías: pegarei as ovelhinhas e trarei elas ao colo. A partir disso ela via Jesus como o elevador que leva as almas para Deus. Eis o sentido da pequena via ser o amor misericordioso.
Não por acaso, a maior tentação de Santa Teresinha era a do desânimo da melancolia. Sendo assim, o modo de vencer esta tentação era justamente o abandono em Deus e a confiança na divina misericórdia.
O Coração Orante: um ensaio mistagógico
Este livro começou quando um amigo meu solicitou que eu escrevesse uma apostila de oração e mistagogia a fim de ajudar na formação da catequese de adultos. Não somente os Exercícios Espirituais de Santo Inácio estão estruturados nas três vias: purgativa, iluminativa e unitiva; mas todo o itinerário cristão que a Igreja propõe.
Aqueles que se preparam para o batismo, precisam passar por um processo de purificação das paixões e ordenação da alma, o qual passa por todo um aprendizado do mistério da Cruz de Cristo. Nos rituais da igreja, a via purgativa ocorria – e hoje isso foi mais ou menos restaurado – durante a quaresma, que era onde os catecumenatos se preparavam para receber o batismo. Já na páscoa, eles recebiam o batismo, também chamado de iluminação por alguns Padres da Igreja, já que, após o batismo, eles seriam iluminados pela fé que receberam. As promessas batismais que são feitas estão ancoradas na fé, o que marca o início da via iluminativa. A partir disso, na tradição antiga, esperava-se que as pessoas fossem crismadas somente muito posteriormente. É que até chegar à recepção plena do dom do Espírito Santo, a iluminação que segue do batismo deveria ir preparando a alma para ir conhecendo cada vez mais a Cristo. A lógica também se aplica à Eucaristia, pois é onde há a união plena com Cristo. É necessário, pois, uma iluminação para estar apto ao Crisma e à Eucaristia. A via unitiva também é chamada de mistagogia, que é onde predomina a mística sobre a ascese.
Diante dessas etapas de preparação do catecumenato, tentei escrever uma apostila. Foi uma tentativa de apostila, que não saiu assim porque o tema é muito denso. Necessitava de mais estudo e quanto mais eu estudava, mais coisa eu ia escrevendo. No fim, saiu o livro. Ele ficou engavetado e guardado até que apareceu a oportunidade de publicá-lo.
No meu livro, a abordagem das três vias são feitas e relação aos três efeitos da graça. Por que são três? Por causa da Santíssima Trindade. A graça, pois, tem três efeitos: purifica-nos do pecado, ilumina-nos na verdade e une-nos a Deus. Esses três efeitos são simultâneos, o que é fundamental que se perceba.
Não é porque a pessoa está na porta do castelo, acabou de se converter, que não tem nada de iluminação e união. O que predomina é a fuga do pecado, mas ela só consegue fugir do pecado, porque Deus também dá a graça de se unir a ele e também a iluminação para perceber que o pecado não presta. Portanto, os três efeitos estão intimamente relacionados. O que ocorre é que em cada etapa da vida interior há uma predominância de um deles.
No meu livro, falo mais sobre a via unitiva na primeira parte; iluminativa, na segunda; e purificação, na terceira. Esta, por sua vez, é a mais extensa e foca-se na purificação do coração, mas sem deixar de fora questões iluminativas e unitivas.
O tema do coração
Quando Sagrado Coração apareceu para Santa Margarida Maria Alacoque – religiosa das visitandinas, fundadas por São Francisco de Sales, congregação com o fim de imitação das virtudes do Coração de Jesus: a mansidão e a humildade – uma das coisas que disse foi que a missão dos jesuítas (e seu diretor espiritual era jesuíta) era a de propagar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Então após refletir um pouco mais os autores jesuítas, pude entender melhor como a questão do discernimento da vocação pessoal está relacionada ao tema do coração.
A palavra consciência tem várias acepções. Uma delas é a consciência moral. Consciência é a ciência com. É uma ciência que acompanha. Assim, quando se tem um julgamento moral, há uma ciência que acompanha tal julgamento. A ciência, por sua vez, é um saber que é dado pela sindérese (mais informações sobre sindérese, ler sobre o tratado da prudência em Santo Tomás de Aquino), há um julgamento do intelecto prático e este está ligado a consciência, ao saber que acompanha e dirige o processo.
Também há nisso a voz da consciência, que não é outra coisa senão o chamado de Deus: vocação. É aquela voz que está toda hora incomodando: “você está realmente seguindo a voz de Deus ou não?” Esta voz, porém, tem um outro fundamento que é uma outra consciência: o saber de si mesmo, ou seja, o saber que acompanha os seus atos psicológicos. Quando se pensa, sabe-se que pensa, ou seja, tem-se consciência de que se está pensando. Quando se age, sabe-se que se age (pelo menos se deveria, é que há graus de consciência). A esta consciência os antigos chamavam de memoria sui. E Santo Agostinho diz que a memoria sui deve ser purificada e guiada para a memoria Dei (memória de Deus). No momento da consagração, quando se diz fazei isso em memória de mim, não é a memória de uma lembrança qualquer, como se fosse uma comemoraçãozinha, mas se trata de uma memória que é um acontecer de novo, tornar presente novamente. Esta memória realmente acontece de verdade.
A memoria sui é estar consciente de si: sou eu mesmo que estou aqui e continuo sendo eu mesmo. É a consciência cada vez maior de nossa unidade como pessoa. A memoria Dei é lembrar-se de Deus que habita na alma; Deus como fundamento último da existência; lembrar-se que foi criado a imagem e semelhança de Deus; é encontrar no fundo da memoria sui, de si mesmo, a sede de Deus, do Deus que sempre está te chamando, uma vez que se buscamos a Ele, é porque ele nos buscou por primeiro.
A memoria sui, assim chamada por Santo Agostinho, pode ser, em latim e português, referida por outro nome: recordare (latim) ou recordar (português). Cordar é oriundo de cordis, que significa coração. Nas Escrituras, o coração é o centro da alma, a memória de si mesmo, centro íntimo onde se pode ter consciência de quem você é. A partir disso, pode-se agir de maneira correta ou não, porque nisso ainda existe os pensamentos do coração. Toda tradição monástica e dos Padres do Deserto está sustentada neste discernimento do pensamento do coração.
De repente, do fundo do coração, surge o pensamento: “que vontade de esganar fulano”. Este certamente não é um pensamento bom, mas é um pensamento do coração, pois é possível perceber que ele veio do íntimo. Neste caso, por ser ruim, veio de um mal hábito que está estruturado no íntimo. Quando tais maus hábitos, embora não sejam o coração, mas estão entranhados no íntimo a ponto de confundir-se com ele, é que dizemos que se tem um coração de pedra. O oposto é o coração de carne.
O único modo de ter um coração de carne é obedecendo a vontade divina, fazendo um processo de discernimento, não sendo por acaso que Santo Inácio estruturou os Exercícios Espirituais. Assim, discernindo os pensamentos do coração, de posse deles, perceber em si mesmo – dentro da sua memoria sui – como a sua existência se relaciona ou não com Cristo. Por isso, todas as meditações espirituais – segunda, terceira e quarta semana – passam pela vida de Cristo. Observação: a meditação do Rosário faz a mesma coisa.
Estar em contato com os mistérios da vida de Cristo leva a pessoa a ter o julgamento de si mesmo. Cristo é o espelho, o modelo, sendo assim, olhando para sua vida, podemos indagar se nossa vida corresponde ou não a dEle.
Estou sendo digno ou não do nome de cristão? E tudo isso de um modo pessoal e único, pois cada pessoa é única e se relaciona com as três pessoas divinas. Há, pois, a questão do vínculo pessoal e único.
A relação que se pode ter com Deus, olhando para as Sagradas Escrituras, compara-se ao matrimônio. Abordo isso no livro quando falo do matrimônio espiritual. A comparação é feita porque de fato existe uma troca de intimidades. Em um matrimônio bem vivido, há possibilidade de construção de uma intimidade pessoal, reconhecendo quem você é para poder doar-se plenamente para o outro e vice-versa. No matrimônio místico, isso acontece com Deus.
O que é fundamental na vocação pessoal é entender que se trata de uma vocação cristã, pois te une a Cristo. O que Cristo faz é se doar na cruz, um ato de total doação. Portanto, a vocação pessoal – a descoberta da oração do coração, aquela oração íntima só sua e de mais ninguém – é a descoberta da doação pessoal. Descobre-se a melhor maneira para se doar a Deus e aos irmãos. À medida que se vai descobrindo isso, simplifica-se bastante a vida, porque se vai se tornando quem se é: somos filhos de Deus, resultando e maior integridade de vida e culminando na maior glória de Deus.