Trecho da conclusão do livro História de uma Família: o lar onde floresceu Santa Teresinha de Stéphane Joseph Piat
À medida que tentávamos descrever o interior da rua da Ponte Nova, da Rua de S. Brás e dos Buissonnets sentíamo-nos obcecado por uma idéia. Não se apresentaria este lar aos olhos dos nossos compatriotas como anacrônico? Não haveria quem se lembrasse de repetir a propósito dele a palavra “cárcere”, que polemistas libertários ousaram aplicar outrora à união nupcial selada pelo sacramento? Um exemplo de tamanha elevação não causaria vertigens?
É um fato que os modernos julgaram libertar-se das suas cadeias atentando contra a divina arquitetura da família. A revolução francesa deu o primeiro golpe de picareta quando instituiu o casamento civil que nega praticamente o caráter religioso do contrato conjugal. Arrancado de Deus o edifício e entregue às mãos dos homens, não tardou que a vaga furiosa das paixões o conseguisse demolir. Até os alicerces foram atacados. Era lógico. Com que direito pretenderia um legislador humano disciplinar o mais imperiosos dos instintos?
Servidão, a unidade do lar. Não será crueldade limitar a tal ponto as manifestações de sensibilidade de um coração imenso?
Servidão, a indissolubilidade do laço. Como recusar aos casais desunidos a válvula de segurança do divórcio?
Servidão, o próprio laço. O amor filho da boemia pode admitir leis?! “O teu corpo é teu”, eis a fórmula do futuro.
Servidão, a prole, testemunha importuna que prejudica as evoluções sentimentais. Vamos lá, que ainda assim haja “o único” para perpetuar o nome. Mas para longe com os múltiplos nascimentos que impõem abnegação onde tudo deve ser licença!
Servidão, a educação. O Estado que tome à sua conta. Não é ele desde Jean-Jacques Rousseau, o pai universal encarregado da fiscalização da raça?
Servidão, a autoridade do marido. No entender de certo feminismo, as fronteiras dos sexos desapareceram. O tipo de “mulher perfeita” é doravante o do “homem falhado”.
O prazer em comum, o egoísmo absoluto dos cônjuges, a aventura precária, eis o que a nova moral sem obrigação nem sanção põe no lugar do compromisso estável e do dom pessoal. Jules Guesde dava disto a definição quando dizia despudoradamente no seu Catecismo Socialista, publicado em 1878: “Deverá conservar-se a Família? – Não, pois foi até agora uma das formas da propriedade e não a menos odiosa… Tanto o interesse da espécie como dos elementos que entram na composição da família, exigem que este estado de coisas desapareça”.
O que adveio à humanidade em consequência de tais doutrinas, disseram-no os acontecimentos com brutal eloquência. Como evitar a guerra quando as riquezas amontoadas num solo despovoado fazem dele simultaneamente uma tentação e uma presa inerme? Como fugir ao excesso de produção e à falta de trabalho quando o número de consumidores decresce de ano para ano? Como sustentar os velhos, os doentes, os mutilados, se não surgem os novos para garantir a sua aposentadoria? Como forjar caracteres, como encontrar chefes se o recuar perante a vida, generalizando-se, destrói a iniciativa, o gosto do risco e o espírito de empreendimento? Quando todas as pedras estão gastas e minadas por dentro pode o edifício conservar ainda durante algum tempo o equilíbrio e a fachada vistosa, mas caminha fatalmente para a ruína. Um país vale o que valerem as suas famílias. Vive de sua vitalidade e agoniza com elas. Quando estas cedem, os encarregados das estatísticas podem inscrever nos seus gráficos inexoráveis, nas suas previsões o desmoronamento e finalmente o desaparecimento da nação.
Mas com o sacrifício da pátria, ter-se-ia ao menos conseguido a felicidade? Que é que se ganhou em aprender a arte de amar na escola das “estrelas” e vedetes que povoam o cinema, a rádio e o teatro? Na crônica dos filmes, nas páginas provocantes de romances de escândalos, anda o crime passional ao lado do amor. Sobe, de todos os hospitais, a queixa lúgubre daquelas a quem um dramaturgo ousado chamava os “avariados”. Regressa-se a passos largos ao paganismo em que a mulher se encontrava em situação desonrosa, escravizada à luxúria e aos grosseiros trabalhos manuais. A volúpia desenfreada devasta e obscurece o espírito. O lar de Karl Marx não será um pálido símbolo desta desolação do lar? Das três filhas do mestre do socialismo, duas acabaram pelo suicídio, a primeira por ter suportado os maus tratos de um discípulo do seu próprio pai, para mais entusiasta de Darwin, a segunda por ter ligado sua sorte à de um militante francês, Paul Lafargue, que se envenenou com ela deixando estas palavras de explicação: “Morremos porque a vida já não tem alegrias para nos dar”. A frase é significativa da desorientação das almas sem Deus. As alegrias expulsaram a alegria; os amores expulsaram o amor. Sob o aspecto elegante de uma civilização refinada, este mundo onde a gente se diverte apenas serve para se morrer sufocado. Paul Bureau reuniu no seu belo livro, A Indisciplina dos Costumes, um dossiê esmagador a este respeito. Publicou-o logo a seguir à outra guerra. Que diria ele, assados vinte e cinco anos?
Sobre os escombros do solar antigo instalou-se a estatolatria condenada por Pio XI. Fala-se hoje muito de cruzada em favor dos direitos da pessoa humana. Não será o lar o berço e centro da vida pessoal? Arruinado o lar, ficou apenas frente a frente o indivíduo-átomo e o Estado Moloch que subjulga e o devora. Só a família pode resistir a esse poder totalitário que o próprio Nietzsche denominava um dia “o mais frio dos monstros frios”. Ou “regresso à família” ou “Tudo para o Estado”, não há outra alternativa. Pio XII afirma-o quando reivindica, nas suas mensagens, “o espaço vital da família”.
Depois de ter feito este balanço de falência que convida à modéstia os partidários do “amor-livre”, talvez haja motivo para apresentar como modelo aos nossos contemporâneos um lar onde reinou aquilo que chamam, por vezes, com uma pontinha de ironia, a boa moral tradicional.
Fonte: PIAT, Stéphane Joseph. História de uma família: o lar onde floresceu Santa Teresinha. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2018. pp. 421-424.