A cada um o que é seu, tal é o axioma basilar da virtude de justiça; logo, a autoridade, tendo estritamente direito à submissão dos súditos, a obediência é um dever de justiça. Este direito de serem obedecidos, os superiores o recebem de Deus. Durante quase dois séculos a noção da autoridade tem sido completamente falseada no espírito da maioria; a teoria de J. J. Rousseau tem geralmente prevalecido nas sociedades modernas. Esta representa os que exercem a autoridade como meros mandatários de seus subordinados; admite mesmo que se eles têm poder é tão somente porque estes últimos lhes confiaram o cuidado de dirigi-los e, portanto, consentem em obedecer-lhes. A sociedade existiria apenas porque aprouve aos homens associarem-se e, da mesma maneira, tudo quanto está a exigir o estado social, como os poderes legislativo, executivo e judiciário, não seria senão o efeito da vontade humana. Todo superior se assemelharia ao presidente de um circulo ou de uma sociedade financeira, musical ou literária, que só tem os poderes que lhe foram outorgados pelos outros membros; não seria, rigorosamente falando, um superior, mas, apenas, o representante da coletividade, encarregado por seus iguais de zelar pelos interesses de todos.
Aqui está um erro profundo, filho do orgulho, que tem produzido males inumeráveis. Os que deveriam mandar dependem dos que têm obrigação de obedecer; em vez de dirigi-los no caminho da virtude, dobram-se, muitas vezes, a seus caprichos, adulam e favorecem seus vícios. Não, a sociedade não é o efeito da livre escolha dos homens, mas da vontade de Deus que a estabeleceu; e Deus, estabelecendo a ordem social, estabeleceu, de uma feita, a autoridade, sem a qual tudo seria desordem e anarquia. «Não há autoridade, diz o Apóstolo inspirado, que não dimarre de Deus e as que existem foram instituídas por Ele. Por isso, quem resiste à autoridade, resiste à ordem que Deus fixou e os que lhe resistem atrairão sobre si uma condenação» São Pedro pronuncia uma sentença não menos terrível: «Deus reserva os maus para serem punidos no dia do juízo, sobretudo os que se entregam às impuras inclinações da carne, os que desprezam a autoridade e são insolentes e arrogantes.»
Há entre os homens dois espíritos contrários: o espírito do mundo, que, provindo do orgulho, de um desejo de igualdade quimérica, do amor à independência, do apego tenaz ao modo de ver e à vontade própria, impele à insubordinação, à crítica, ao murmúrio, às queixas; e o espírito evangélico, baseado na humildade, no amor à vontade divina, e que leva à submissão, ao respeito, ao afeto para com a autoridade. Talvez não haja indício mais certo de bom espírito do que este respeito à autoridade e este amor à obediência. «O cristianismo, no dizer de Moris. Gay, é um mistério e uma doutrina de obediência, a Igreja uma sociedade de obedientes, o céu uma cidade cujos cidadãos todos obedecem a Deus.»
Logo no princípio, Deus experimentou a obediência do homem. O fruto que proibira a Adão de comer, não era ruim em si; mas, abstendo-se de tocá-lo, devia o homem mostrar sua docilidade. Sua desobediência arrastou consigo todos os males. Noé, pelo contrário, obedece ao Senhor, construindo a arca, o que, aos olhos de todos, não passava de uma loucura e foi salvo do dilúvio. Abraão obtempera às ordens do Senhor deixando sua terra sem saber para onde ia e levou a obediência até o heroísmo, preparando-se para sacrificar a Isaac; assim mereceu tornar-se o pai dos crentes, o ascendente de Jesus. Saúl, pelo contrário, por haver transgredido as ordens divinas, foi rejeitado por Deus, apesar dos protestos de arrependimento, sem dúvida, pouco sinceros.
Jesus é o grande modelo e o grande doutor da obediência. Filho que Ele era, diz São Paulo, ensinou por seus próprios padecimentos o que é obedecer, e, agora que chegou ao termo, salva para sempre os que Lhe obedecem. Ensinou por seus próprios padecimentos o que é obedecer: obedecer é, pois, sofrer; a vontade de seu Pai era que chegasse à felicidade pelos sofrimentos, à vida pela morte. É Jesus que disse: «Não vim para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou,» e acrescentou ainda: «A minha comida é fazer a vontade de meu Pai.» e fez e suportou tudo o que quis seu Pai. Por obediência renunciou aos bens mais preciosos aos nossos olhos, a honra e a vida. «Fez-se obediente, diz são Paulo, até a morte, e até a morte» horrível e vergonhosa «da cruz. Por isso Deus exaltou-O e deu-Lhe um nome acima de todos os nomes;» « pela Sua obediência tão excelentemente praticada, ao nome de Jesus, todo joelho se dobra no céu, na terra e no inferno.» Apaixonado pela obediência, não só obedeceu a Seu Pai, mas ainda a Suas criaturas, a Maria, a José e até a Caifás, quando este homem indigno, mas revestido da dignidade pontificai, o adjurou a que declarasse se era realmente o Messias, e Jesus sabia que, obedecendo, lavrava sua condenação.
Ele mesmo, o meigo Salvador, exigia uma obediência cega. Se os criados de Caná não houvessem cumprido a ordem, aparentemente irrazoável, que lhes dera de encherem de água as medidas, Ele não haveria feito seu milagre. Se o cego de nascença não houvesse atravessado Jerusalém, levando nos olhos a lama que Jesus neles pusera e não houvesse chegado à piscina de Siloé para lavar-se, não haveria recuperado a vista. Se os apóstolos que, durante toda a noite haviam lançado suas redes sem nada apanhar, não houvessem recomeçado, à ordem de Jesus, a pesca milagrosa não se haveria verificado. Se são Pedro não houvesse consentido que seu Mestre lhe lavasse os pés, não teria tido parte com Ele.
Deus havendo dado aos superiores o direito de mandarem, é a Deus que se obedece obedecendo-lhes, e é contra Ele que se revolta quem contra eles se levanta. «Quem vos ouve, a mim ouve, disse Jesus a seus apóstolos; quem vos despreza, a mim despreza.» Aos Israelitas que tão amargamente haviam censurado Moisés e Aarão de os haverem conduzido ao deserto, aquele respondeu: «Não murmurais contra nós, mas contra Jeováh.» Com efeito, o Senhor repetidas vezes castigou os murmuradores e até Maria, irmã de Moisés, mostrando-se ofendido na pessoa do Seu representante. «Não é a ti que rejeitam, mas a Mim, para que Eu não reine mais sobre eles,» diz o Senhor a Samuel.
Quantas vezes o Senhor manifestou a Sua vontade de que o homem recorra às autoridades constituídas por Ele? Manda um anjo ao centurião Comélio, e este anjo que tão bem o podia instruir, ordena-lhe de ir ter com São Pedro. Jesus fulmina Saulo na estrada de Damasco, exprobra-lhe a perseguição que move contra os fiéis; mas, em vez de instrui-lo, dirige-o a Ananias. Quer tanto que se obedeça à autoridade estabelecida por Ele que, ainda que se houvesse recebido uma revelação, dever-se-ia obedecer antes ao representante de Deus do que a esta revelação. Nosso Senhor pedira a santa Teresa um carmelo em Sevilha; o padre Graciano preferiu fundá-lo em Madrid. A santa conformou-se com a vontade do padre Graciano. «Posso enganar-me, dizia ela, julgando da verdade de uma revelação; mas andarei sempre no reto caminho obedecendo a meus superiores. E o Senhor lhe disse, como sempre fazia em tais casos: «Minha filha, fizeste bem em obedecer.» Acrescentou: «Vai, pois, para Madrid; serás bem sucedida; mas terás muito que padecer.»
A docilidade e o respeito à autoridade são, pois, necessários para a manutenção da ordem estabelecida por Deus. A obediência é o fundamento sólido sobre o qual edificou sua Igreja; é o sustentáculo de toda sociedade, da família, do Estado; é, além disso, para cada indivíduo, um dos meios mais poderosos de fixar-se na virtude e de nela progredir. «A obediência, ensina Santo Agostinho, é a mãe e a guarda de todas as virtudes.» Segundo São Gregório, «ela introduz e conserva na alma as demais virtudes.» Santo Tomas afirma que é a mais excelente das virtudes morais, porque a alma, por ela, para permanecer fiel a Deus oferece-Lhe o sacrifício mais meritório, o da própria vontade, muito mais perfeito que o sacrificio dos bens terrenos ou dos prazeres do corpo. Ela é, com efeito, conforme ensina São João Clímaco, «o túmulo onde está sepultado a nossa própria vontade.» A vontade própria é a fonte não só de todo pecado, mas ainda de toda imperfeição; vicia até nossas boas obras que, não sendo mais feitas unicamente para agradar a Deus, perdem, pelo menos, uma parte de seus merecimentos e, às vezes, perdem nos inteiramente. «A vontade própria, diz por sua vez São Bernardo, é um mal muito grande, desde que faz tuas boas obras cessarem de ser boas para ti.»
A obediência torna invencível contra os assaltos do inferno. «Pelas outras virtudes, declara são Gregório, combatemos os demônios, mas, pela obediência, os destroçamos. Sim, são vencedores os que obedecem, porque, sujeitando perfeitamente sua vontade à de Deus, triunfam dos anjos rebeldes que caíram pela sua desobediência.» A alma obediente chama sobre si catadupas de graças: a quem pede ao Senhor como São Paulo: «Domine, quid me vis jacere? Senhor, que quereis que eu faça? o Senhor responde como ao cego de Jericó: «E tu, que queres que eu faça?» Ele faz a vontade dos que Lhe fazem as vontades: Voluntatem timentium se jaciet E que segurança para uma alma que sempre obedeceu, saber que ela está onde Deus quis colocá-la, e faz o que Deus quer que ela faça! Bem pode aplicar a si mesma a promessa tão consoladora do Salvador: Ego elegi vos et posui vos, ut eatis et jructum ajj eratis et jructus vester maneat: Sou eu que vos escolhi e ali vos pus, para que andeis e deis fruto, e vosso fruto permaneça.