NATUREZA DA HUMILDADE
«Toda a vida de Cristo é, para nós, um ensinamento, na opinião de santo Agostinho, mas é, antes de tudo, a sua humildade que se oferece à nossa imitação.» Foi Ele que revelou ao mundo esta grande virtude. Antes de Jesus houve, é certo, atos de humildade, mas eram raros, pouco apreciados pelos homens e, geralmente, pouco profundos e muito distantes desta perfeição de que Ele nos deu o exemplo e que se tornou tão frequente desde a Incarnação. Os filósofos pagãos censuram o orgulho quando muito chocante; ensinam a moderar o fausto, evitar a ostentação, mas nenhum deles jamais recomendou a humildade tal como o cristianismo a entende e pratica.
A humildade cristã é uma virtude pela qual o homem, conhecendo a Deus e a sua própria fraqueza, despreza-se a si mesmo, aceita sem se irritar, sentindo-se até feliz, que os outros o conheçam e desprezem.
Há, pois, dois elementos na humildade: o conhecimento de sua própria abjeção e a aceitação amorosa de sua indignidade. Conhecer seus defeitos e sentir-se despeitado de sua imperfeição, é uma prova de orgulho e não de humildade. Esta, como aliás todas as demais virtudes, consiste essencialmente numa disposição justa e reta da vontade. Se o conhecimento das próprias misérias não constitui por si só, rigorosamente falando, a humildade, é dela o princípio e a condição necessária, como também a sua consequência. «Quem imagina ser alguma coisa quando nada é, ilude-se a si mesmo.» Conhecendo-se imperfeitamente, sua vontade repelirá com horror toda humilhação. Por outro lado, quem se compraz em seus próprios méritos, não quer confessar sua miséria, procura elevar-se a seus próprios olhos e assim chega à cegueira completa. Pelo contrário, quem compreende bem o nada da criatura e a fealdade de seus defeitos, é inclinado à humildade. Como aceita amorosamente ser digno de desprezo, descobre muito melhor, à luz da graça, as razões que tem para se desprezar.
O conhecimento de Deus é necessário também à humildade. Quando se tem uma justa ideia de Deus, quando se compreende sua grandeza, seus direitos, o poder e a universalidade de sua ação que a tudo se estende, entende-se também que a criatura, incapaz de subsistir sem Ele, não pode nem agir, nem sequer ter um simples bom pensamento e não merece senão esquecimento e desprezo. Por isso, santo Agostinho dirigiu a Deus esta oração: «Noverim te, noverim me; fazei que eu Vos conheça e me conheça;» fazei que
Vos conheça para Vos admirar e Vos amar e me conheça para me desprezar. «Que tens que não o hajas recebido? diz são Paulo; e, se tudo recebeste, porque te engrandecer como se o não houvesses recebido?» Até as boas obras que fazemos, são o fruto da graça: que mérito tem o jovem discípulo de haver traçado uma linda página de escrita, se o mestre lhe guiou a mão? Não resistiu, é verdade, submeteu-se à ação do professor, mas é este que teve a habilidade, não o aluno. O mesmo acontece com todas as obras que se atribuem ao talento, ao gênio, à virtude, ao heroísmo: são de Deus muito mais que do homem.
E ele, homem, que possui de si mesmo? «Que sois? exclama são Bernardo. Um saco de imundícies. Que vireis a ser? O pasto dos vermes.» «As árvores, diz o papa Inocêncio, produzem flores e frutos, ao passo que o corpo humano é uma cloaca infecta.» E os defeitos espirituais são ainda mais repelentes e odiosos que as chagas corporais, pois que, ao menos em parte, nos são imputáveis. Os pecados que voluntariamente cometemos, são mais fétidos que as matérias de eliminação do nosso corpo: «As vossas justiças todas, diz Isaías, tornaram-se semelhantes a um pano manchado.»
VANTAGENS DA HUMILDADE
Na opinião de santa Teresa, a humildade é a verdade. Por ser sincera, justa e santa, a humildade agrada eminentemente ao Senhor. «Abaixarei os meus olhos sobre aquele que é humilde e está com o coração magoado.» «Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado,» declarou o Salvador. Sim, os humildes tiveram sempre as preferências de Deus; a humildade sincera e profunda sempre atraiu caudais de graças. Pelo contrário, almas boas e virtuosas ficam frequentemente estacionárias, ou, embora progridam algum tanto, não atingem o grau de amor que lhes estava reservado, porque não praticam como devem esta grande virtude.
As outras virtudes crescem quando cresce a humildade; perdem seu surto quando a humildade cessa de progredir. A fé torna-se mais simples, mais viva e mais firme na alma humilde pois que melhor entende a palavra do Senhor e lhe aceita amorosamente todas as lições, até as que a dobram e a amesquinham. A humildade torna a esperança mais ardente, porque livra a alma dos desejos do amor próprio, desapega-a das honras, da estima dos homens, e assim fá-la suspirar mais ardentemente pelos bens sobrenaturais e desconfiando mais de si, a alma humilde confia mais em Deus. A humildade purifica e intensifica muito o amor de Deus, porque, quanto mais a alma se esquece de si própria e se despreza, tanto mais se une a Deus. A caridade fraterna é exercida com mais dedicação e delicadeza, quando o amor de si próprio não lhe cria obstáculos. Graças à humildade, a paciência não se desmente, a doçura toma-se mais habitual; a pureza mais circunspecta e a fortaleza, apoiada exclusivamente em Deus, magnânima e indomável e a mortificação, enfim, sendo praticada com intenções puríssimas, é admiravelmente mais eficaz e conduz à renúncia completa, ao perfeito amor.
EXERCÍCIO DA HUMILDADE
Para adquirir esta virtude tão importante, é mister, como para qualquer outra, recorrer aos dois grandes meios que, simultaneamente empregados, são irresistíveis: orações instantes, esforços generosos e perseverantes. Quantas almas, aliás piedosas, embora a estimem muito, nenhum progresso fazem nela, porque não a pedem com ardor e constância, e não se aplicam com bastante coragem na sua prática. «A humilhação, ensina são Bernardo, conduz à humildade, como a paciência à paz e o estudo à ciência. Se quiserdes tornar-vos humildes, não fujais da humilhação.»
Eis as práticas de humildade que um cristão piedoso deve observar:
1. Estimar-se a seu justo valor e aceitar sua abjeção: portanto pensar amiúdo no seu nada, nos seus defeitos e culpas e comprazer-se em se fazer pequenino diante de Deus, admirando-Lhe ao mesmo tempo as grandezas e o amor.
2. Lançar um olhar sobre sua própria miséria, sempre que se vê o próximo cair em falta, lembrando-se a palavra de santo Agostinho: «Nosso irmão não comete nenhum pecado que nós mesmos não cometeríamos, se a misericórdia divina não nos segurasse constantemente pela mão.»
3. Humilhar-se igualmente quando se recebe algum elogio. «É fácil, escrevia santo Agostinho ao bispo Aureliano, aceitar não ser louvado, mas é difícil ficar insensível aos louvores recebidos.»
4. Repelir do seu espírito todo pensamento e do seu coração todo sentimento de complacência, de vanglória ou de ambição, cortando logo qualquer desejo de estima ou de louvor, toda amargura ocasionada pelas palavras ou maneiras irritantes do próximo, afastando cautelosamente todo devaneio, todo cálculo em que tivesse parte o amor próprio.
5. Evitar com escrúpulo toda palavra tendente a realçar o próprio prestígio, os próprios méritos preferindo falar daquilo que humilha. Humilhar-se, sobretudo, com seu confessor e diretor. As palavras de humildade devem ser sinceras, antes de tudo. Quantos há que falam mal de si como para obrigar os outros a lhes tecerem elogios! É o que se tem chamado humildade de gancho, porque, da mesma maneira que se aproveita de um gancho para atrair a si os objectos afastados, utiliza-se esta falsa humildade para captar os louvores.
6. Praticar atos de humildade, como vestir roupas de pano grosseiro, escolher ocupações menos honrosas, bem-dizer ao Senhor quando se experimenta alguma contrariedade ou quando se sofre alguma afronta, tomar para si o que tem menos valor, beijar o chão fazendo um ato de contrição. Santo Agostinho, comentando o ato do Salvador que lavou os pés de seus apóstolos, observa, com muito acerto: «Quando fazeis um ato exterior de humildade, prosternando-vos, por exemplo, aos pés do vosso irmão, fazeis brotar no vosso coração um sentimento de humildade, e se este sentimento ali já estava, desenvolve-se e confirma-se.»
7. Enfim, e sobretudo contemplar os aniquilamentos, os opróbrios do Verbo incarnado, do presépio ao Calvário e à Eucaristia, e amar a este Deus tão humilhado. É este amor de Jesus que, melhor do que qualquer outra indústria, nos há de ensinar o gosto e a prática perfeita desta grande virtude.
Ladainha da humildade
Senhor, tende piedade de mim.
Jesus, manso e humilde de coração, escutai-me.
Jesus, manso e humilde de coração, attendei-mo.
Do desejo de ser estimado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser amado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser procurado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser louvado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser honrado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser consultado, livrai-me, Jesus.
Do desejo de ser aprovado, livrai-me Jesus.
Do desejo de ser poupado, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser humilhado, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser desprezado, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser desgostado livrai-me, Jesus.
Do receio de ser caluniado, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser esquecido, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser ridicularizado, livrai-me, Jesus.
Do receio de ser injuriado, livrai-me, Jesus.
Ó Maria, mãe dos humildes, rogai por mim.
São José, protetor dos humildes, rogai por mim.
São Miguel, que vencestes primeiro o orgulho, rogai por mim.
Santos todos, que vos santificastes, sobretudo pelo espírito de humildade, rogai por mim.