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[Saudreau] O abuso das graças e suas consequências

Carregando a Cruz - Subindo o Monte com a Cruz
Por A. Saudreau

Os obstáculos até agora apontados como opostos aos progressos na piedade provém ou da imperfeição e das misérias da nossa natureza, ou dos ataques e das ciladas do inimigo, ou ainda das provas a que o Senhor nos submete. De todos eles nos podemos aproveitar como meios, pois, se os vencermos, concorrerão para o aperfeiçoamento de nossas almas; e, afinal de contas, somos responsáveis por eles quando não procuramos diminuí-los. Outros há, imputáveis a nós, mais difíceis de vencer; são os que se originam das nossas resistências ás graças divinas.

Por sua infinita bondade, Deus propende a encher de graças suas criaturas, às quais deu e pelas quais sacrificou seu Filho; mas, havendo-as criado livres e querendo dar-lhes a felicidade eterna, na medida em que se houverem tornado dignas delas, leva em conta, na distribuição de suas graças, a fidelidade com que são aceitas e as resistências que se lhes fazem.

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Quem corresponde a uma graça, atrai outras sobre sua alma e dispõe-se a aproveitá-las; quem rejeita uma graça voluntariamente, priva-se de outras e coloca-se numa disposição que lhe tornará menos fácil a correspondência. É, pois, razoável dizer: quanto menos fazemos para Deus, menos queremos fazer; quanto mais nos sacrificamos por Ele, tanto mais nos queremos sacrificar.

Jesus nos convida incessantemente à renúncia: as inspirações da graça, de ordinário, qualquer que seja a sua forma renovam este convite do Salvador: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, carregue sua cruz todos os dias e siga-me.” Quem recusa renunciar a si próprio comete um pecado: ou mortal, se o ato que não quer praticar é gravemente obrigatório, se a obra que quer absolutamente cumprir é proibida; ou venial, se há matéria para pecado, porém matéria leve, ou ainda uma simples imperfeição se a ação ou o sacrifício que a graça lhe inspira não é senão de conselho, e os efeitos destas resistências à graça diferem muito, como muito diferem entre si as resistências. Mas todas estas infidelidades quando cometidas de sangue frio, com pleno consentimento e após madura deliberação (o que não se dá sempre com as duas últimas), produzem certa diminuição de luz e certo enfraquecimento da vontade. O efeito é pequeno, quando se trata de um ato isolado de infidelidade à graça, mas se esta infidelidade se repete amiúdo, se a alma persiste nela, se recusa obstinadamente o que Deus lhe pede, sobrevém, então, a cegueira de espírito e o endurecimento da vontade, causas extremamente funestas. A cegueira e o endurecimento são parciais, se as resistências se referem a alguns pontos, e a alma permanece fiel nos outros e estendem-se quando já não se viola uma só virtude mas várias.

Deixemos de parte os que habitualmente vivem no pecado mortal e cuja cegueira e endurecimento são tão perigosos para a salvação. Falemos dos que, fiéis aos deveres essenciais do cristianismo, cometem faltas veniais ou se entregam a algumas imperfeições das quais têm plena consciência, e a cuja correção não se aplicam, procurando até desculpá-las. Nestas almas, as luzes diminuem à medida que se obstinam em fechar os olhos aos clarões da graça: elas se tornam menos perspicazes, entendem muito menos perfeitamente a beleza, a grandeza, a importância das virtudes que não querem praticar; não percebem mais, ou percebem menos claramente a glória que Deus tiraria destas virtudes, as vantagens eternas que lhes adviriam; não reconhecem, não confessam até que ponto se mostram miseráveis, resistindo constantemente ao divino Espírito Santo, obstinando-se no que é culpa ou imperfeição. E ao passo que assim o espírito se entenebrece, a vontade se apega cada vez mais ao pecado, à sua própria satisfação e cada vez mais ele se desvia da virtude, que não tem a coragem de praticar. É assim que se deve explicar como almas boas e since­ramente piedosa conservam defeitos que surpreendem; como, sendo fiéis em certas virtudes, nada entendem de outras; como apesar de suas qualidades, de seu amor à oração, da observância exata dos exercícios de piedade, nunca alcançam um verdadeiro fervor.

Os efeitos destas resistências à graça são evidentemente muito mais funestos quando vão até o pecado venial plenamente deliberado. Quando uma pessoa a quem foram concedidos grandes auxílios para o seu adiantamento nos caminhos de Deus, multiplicou suas resistências, os desejos de progresso, desejos que significam graças preciosíssimas, minguam e acabam apagando-se, o que é sinal inequívoco de um relaxamento deplorável: Minime pro certo est bonus, diz são Bernardo, qui melior esse non vult: não é certamente bom, aquele que não almeja tomar-se melhor.

Esta alma decaída pode ir ainda mais longe. Acostumando-se a afastar tudo quanto a incomoda, preferindo uma vida toda de relaxamento e de gozo a uma vida de amor e de generosidade, acaba fixando-se na disposição de banir de sua vida todo sacrifício, salvo os indispensáveis para evitar os pecados mortais; já não se alarma com as culpas veniais e as comete sem o mínimo comedimento. E vive sossegada sobre seu estado, porque se compara e se julga superior aos que vivem no pecado mortal.

É este o estado de tibieza, estado tão perigoso. “Antes fosses frio ou quente; mas, porque és tíbio, isto é, nem frio nem quente, vou lançar-te de minha boca” Que foi feito do amor divino nesta alma egoísta? Desta disposição decorre um abuso contínuo de graças, uma tremenda responsabilidade e um perigo extremo de cair no pecado mortal, de permanecer nele e, finalmente, de se perder. Estas almas, com efeito, partiram, com o tempo, dentro de si, todas as molas da virtude; são fracas, moles, inertes, para o bem e, ao mesmo tempo, cegas e obstinadas em seus maus hábitos. É o que torna tão difícil a sua conversão.

Entretanto, nada há de impossível para a graça. Quando uma alma tíbia se apercebe deste seu estado, quando fica horrorizada e como que se espanta ao notar sua miséria, deve dar graças ao Senhor e se encher de confiança, pois recebeu uma grande graça, e deve alimentar a esperança de receber outras. Reze e reze ainda: a oração consegue tudo, mormente quando unida ao sacrifício. Faça, pois, ela grandes esforços, imponha-se mortificações; e assim sairá do seu abatimento, sentirá a graça tornar-se cada vez mais poderosa e cada vez mais solícita, sua inteligência recobrará as luzes perdidas e o verdadeiro amor renascerá em seu coração.

Sobre A. Saudreau

Fonte: Manual de Espiritualidade

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