A regra moral essencial para amar corretamente é amar de acordo com a realidade. Isto significa adorar a Deus, amar às pessoas e usar as coisas – Peter Kreeft
Amor e desejo são duas coisas diferentes; nem tudo o que se ama se deseja, nem todo o que se deseja se ama – Miguel de Cervantes
Ao coração comumente se chega não por meio da razão, mas da imaginação – Cardeal John Henry Newman
O assunto do amor é imenso. Os múltiplos sentidos do termo, ricos e diversos, e seu conteúdo carregado de conotações religiosas – especialmente cristãs, onde é um elemento central -, não permitem um tratamento simples. Trata-se simplesmente do Tema por antonomásia. Por isso me limitarei a falar do amor romântico que pode surgir entre um homem e uma mulher. E dentro desse tema ficarei mais circunscrito a uma série de problemas que, creio, dizem hoje respeito aos jovens e que mostra como a natureza ou essência desse tipo de amor é amplamente mal interpretada. Por isso, deixarei forçosamente de lado aspectos tão fundamentais como a reciprocidade (que quem ama seja ao mesmo tempo amado, que cada um tome e se dê ao outro) e a comunhão, passiva e ativa (que impulsiona os amantes a se fundirem e se tornarem um só, sem deixar de ser dois).
Creio que muitos dentre vós notaram, como eu mesmo notei, que atualmente se generalizou uma concepção equivocada desse tipo de amor, e, provavelmente, poucos concordarão comigo que esse conceito errôneo se encontra ancorado entre o verniz intelectual que, em seu tempo, foi outorgado pelo francês Stendhal e as paixões baixas sobre as quais advertiu Platão.
A ideia do perigo que acompanha à paixão amorosa, sobretudo se advir de uma paixão desordenada, vem de longe. Cervantes e Lope testemunham isso em suas obras, O labirinto de amor (1615) e A prova dos ingênuos (1617), respectivamente. Lope chega a escrever, “beber veneno por licor suave, / esquecer o proveito, amar o dano”. Mas é algo que podemos rastrear voltando ainda mais atrás. O poeta romano Catulo escreveu seu famoso Odi et amo, há 22 séculos:
Odeio e amo. Por que faço isto, talvez perguntes.
Não sei, mas sinto que é assim e me torturo
Não obstante, a modernidade acentuou os males e riscos de um amor desordenado e, o que é mais grave, trabalha para que não sejam tidos como tais, senão como bonanças naturais e próprias do amor.
Dizia Platão em seu Diálogo Fedro (370 a. C.) que, se uma alma não está em equilíbrio, sendo movida por suas paixões desordenadas e quase possuída pela loucura, buscará algum tipo de plenitude amorosa totalmente irreal. Neste frenético transtorno encontraremos, curiosamente, todas as características do amor romântico desenhado pelo romancista francês Stendhal em sua obra Do amor (1822). Mas enquanto Platão nos insta a rejeitá-lo por ser uma ilusão, Stendhal quer que nos regozijemos em aprender que se trata apenas disso, de uma uma ilusão.
O romancista francês conclui que só um amor que repouse em prazeres imaginados pode ser constante. Do contrário, se for dirigido a um objeto real, será saciado de imediato, já que, uma vez que este é possuído, o amor necessariamente morre. Deste modo, a vida amorosa seria um movimento incessante de desejo a desejo cujo único motor seria a satisfação pessoal, reduzindo assim o sujeito amado unicamente a um meio para obtenção desse fim. O amante viveria impulsionado por desejos que nunca poderiam ser satisfeitos, mas apenas alimentados por ilusões intermináveis.
Por outro lado, embora Platão critique duramente uma concepção de amor similiar à stendhaliana, seu idealismo radical o afasta igualmente da verdade. Porque ao final, embora o desejo do amante platônico não fosse de prazer, se trataria igualmente de um desejo, e mesmo que seu anelo pudesse parecer mais nobre, aquilo que por fim perseguiria seria também uma ilusão parecida à do stendhaliano.
Conseguem ouvir a melodia? Irrealidade, prazer, egoísmo, dissolução do eu…
E assim, tanto Platão quanto Stendhal, se encontram imersos no erro, porque viviam de costas à realidade. É que o amor verdadeiro, mesmo quando falamos do meramente humano, se funda na individualidade. Era o filósofo dinarmaquês Kierkegaard quem dizia que “a individualidade é o pressuposto básico para amar“. Porque, como nos recordou o Papa Bento XVI em sua primeira encíclica, “nem a carne nem o espírito amam: é o homem, a pessoa, a que ama como criatura unitária, da qual formam parte o corpo e a alma“.
Portanto, para que haja amor, o amado deve ser um indivíduo real, pessoal e distinto. Não alguém a ser usado como uma coisa – como propunha Stendhal; nem alguém para se dissolver, perdendo a singularidade – tal como postulava Platão. Simplesmente uma pessoa para se unir sem perder a identidade. O poeta Wendell Berry escreveu:
E te amo
como amo ao baile que te distingue da multidão
na qual vens e vais.
E esta é, como veremos, a concepção cristã do amor.
Afinal, o que é amar senão o bem de um outro, de uma pessoa real e concreta? Assim nos diz Santo Tomás. Um querer que supõe um movimento. No entanto, em contraposição ao conceito moderno de paixão sem freio, esse movimento deverá ser voluntário e dirigido a um duplo fim: não só para o bem que se deseja para alguém, mas também para aquele a quem se lhe deseja esse bem.
E isso muda completamente a perspectiva. O egoísmo, o prazer e a coisificação do outro, tão em roga hoje, perdem repentinamente o chão.
Primeiro, porque, antes de qualquer coisa, o amor passa a ter por objeto e fim unicamente o bem. Dizia nosso Lope sobre o amor:
Não encontra fora do bem centro e repouso.
Segundo, porque não se trata de qualquer bem, mas o do outro, razão pela qual, de nós mesmos, o foco passa a ser o que está ao nosso lado. E isto não significa que não devamos buscar o próprio bem. O que ocorre é que este também se encontrará ali. A afirmação de São Bernardo de que o amor puro é sua própria recompensa expressa este paradoxo.
E, por fim, porque, de um sentimento ou paixão individual e subjetivo, seu fim passa a ser o bem objetivo, o que em muitas ocasiões requer um ato de vontade.
Isso, num tempo onde o subjetivismo, o sentimentalismo, o individualismo e o relativismo imperam, é uma revolução. Por isso não é fácil de ensinar, nem tampouco de aprender.
Mas, lamentavelmente, isso não é tudo. O erro moderno não reside unicamente no reducionismo quanto à consideração do amor, seja uma conduta exclusivamente individualista – e, portanto, egoísta -, seja um ato dissolutivo do eu – e, por conseguinte, desintegrador -, tal como Stendhal ou Platão entendiam. Não. Existe outro erro moderno que se une a esses dois, e cuja raiz descansa em confundir os desejos e os efeitos emocionais associados ao amor com o próprio amor. Conforme recomendava o Papa Pio XI, vejamos outra vezes Santo Tomás de Aquino, que nos diz:
Fala-se do amor como… gozo [ou] desejo… não essencialmente, mas casualmente.
O Aquinate quer aqui dizer que o prazer ou alegria que se sente por ou com outra pessoa, e o desejo que se tem por estar com ela, não são em si mesmos o amor, mas efeitos por ele causados. De modo que, apesar da ausência dos mesmos denotar uma deficiência a corrigir, sua mera presença, isolada do bem verdadeiro que o amor deve perseguir, não supõe por si só a existência deste.
Infelizmente se trata de algo que hoje também é complicado de entender.
Porque, apesar da surpresa ou escândalo que possa causar em muitas mentes modernas, o amor pode existir sem essas sensações ou sentimentos agradáveis (seja em nós, seja no amado), uma vez que é possível querer o bem do outro mesmo que esse outro não gere uma resposta afetiva agradável, ou também quando o bem que lhe desejamos suponha – nele ou em nós – ou uma contrariedade, ou a privação de um prazer. Porque, às vezes, o amor crescer no meio da dor. Nas palavras de George Macdonald:
O fruto do ano deve cair para o que o fruto do ano possa chegar,
e o inverno mesmo é o caminho do Rei para a primavera.
E sobretudo, essa natureza volitiva do amor é a que demonstra sua autenticidade e sua pureza.
E isto é o que acontecerá se decidirmos seguir o mandamento incondicional de Cristo de amar a nosso próximo como a nós mesmos, e inclusive amar o inimigo. E poderá também ocorrer ao segui-lo com nossos filhos ou com nossos superiores, e inclusive com nossos cônjuges, e por isso é igualmente aplicável às relações amorosas entre um homem e uma mulher. Por esta razão, amar de verdade requer vontade, o prudente uso da vontade. Diz Pedro Salinas:
Perdoa-me por ir assim buscando-te tão torpemente, dentro de ti.
Perdoa-me a dor, alguma vez.
É que quero tirar de ti teu melhor tu
Tudo isso nos leva a um segundo ponto: o mero sentimento ou sensação prazerosa ou agradável nem sempre implica o atuar conforme a nossa natureza e, portanto, em pró de nosso bem ou do amado. Por conseguinte, esses sentimentos agradáveis não podem ser condição suficiente para o amor. Este ponto é de fácil compreensão se nos afastarmos do tema: Quantos alimentos nos causam prazer, mas temos que os rejeitar, já que são prejudiciais para a saúde?
Mas no amor tudo se confunde, porque, ao intervir nele poderosas paixões (o prazer, o deleite, a alegria), se gera com frequência uma desordem por causa da dificuldade de controlar aquelas.
Desta formidável força atribuída ao sentimento provém, também, a extensa falácia de que a paixão amorosa (seja do tipo que for, romântica ou sensual) justifica quase qualquer coisa, como se fosse um salvo-conduto que purifica toda corrupção e que corrige todo erro; e mesmo quando se esteja atuando contra a ordem natural e, portanto, contra o nosso próprio bem. Deste modo, a afirmação do filósofo David Hume de que a razão se tornará escrava das paixões adquire forma em nós.
E assim vemos como hoje o mero prazer pode substituir ao bem objetivo como finalidade do amor (por exemplo, em um comportamento sexualmente imoral). O filósofo Edward Feser recorda-nos que já Platão e Santo Tomás nos advertiam que o vício sexual é, entre todos os vícios, o que tem a maior tendência a destruir a racionalidade. E continua nos dizendo que, tendo o desejo sexual o poder de nublar seriamente o intelecto mesmo nas melhores circunstâncias, quando seus objetos são contra naturam, a ideia mesma de uma ordem objetiva e natural das coisas se torna odiosa.
Não obstante, como o desejo e o sentimento dos amantes não é a causa de seu amor, mas uma de suas consequências concomitantes, seu mero sentir não pode sustentar aquele por si só, ou justificar o mal e o erro, nem sua ausência pode tampouco pô-lo fim. Porque, com intuiu Platão, só “o amor ajustado à razão é um amor sábio e sujeito ao belo e ao honesto“.
Todavia, o verdadeiro significado deste amor do qual lhes falo não nos dá o mundo. Tampouco nos dá em sua totalidade a filosofia natural. Somente Cristo é que nos dá:
O amor vem de Deus, e todo o que ama é nascido de Deus (I João, 4,7)
E isso supõe uma mudança total de paradigma. É tão diferente de tudo o que conhecemos hoje, é tão manifestadamente escandaloso e louco, que, ante as dificuldades e obstáculos do mundo para amar verdadeiramente, só nos resta proclamar o que o senhor dom Quixote disse a seu bom amigo Sancho:
Eles são gigantes; e se tens medo, fuja-te daí, e reze no espaço, porque eu vou entrar com eles em uma feroz e desigual batalha.
Em uma feroz e desigual batalha, sem dúvida. Contudo, apesar desta dificuldade, não devemos perder a esperança. Porque, precisamente, o caráter louco e rebelde deste amor, sua forma de enfrentar a desordem estabelecida, de questioná-la e desafiá-la sem titubeios, pode atrair nossos jovens.
No entanto, para isso deverão antes conhecê-lo.
E talvez uma das maneiras de dá-los a conhecer é submergi-los nas grandes histórias onde essa ideia de amor ganha vida. Mas não de forma enjoativa e doce ou a base de rígidos sermões, mas de modo que capte e alimente sua imaginação. O padre dominicano Aidan Nochols, seguindo esta linha, nos diz: “As artes são ou deveriam ser uma educação no uso da imaginação moral. (…) Por seu esplendor, as artes podem fazer este serviço mais eficazmente do que o didatismo moral“.
E a literatura é uma dessas artes. Há livros que falam do amor, desse amor verdadeiro e esquecido, e a eles deveríamos nos aproximar, e conosco nossos filhos.
Por isso vou tratar de encontrar algum desses livros. Me acompanham?
Fonte: InfoCatólica